Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“Quand les cimes de notre ciel se rejoindront Ma maison aura un toit.”, Paul Eluard (Bachelard 1994, 38)
Umbrella House (1959-1961) de Kazuo Shinohara é uma casa total e muito pequena completamente exposta à imponente estrutura que a cobre e que a sustenta.
Shinohara percepciona uma casa como sendo como uma obra arte - um lugar onde se expressa subjectividade. Uma casa é muito mais do que a concretização de determinadas tarefas quotidianas. É acima de tudo a materialização de uma ideia, cuja relação com qualquer contexto deve ser universal. É um lugar que permite o sonho, a expressão, o movimento, a hesitação, a demora, a espera, o encontro e a solidão. É claro constituída por hábitos e ritmos, mas é sobretudo testemunha de pensamentos e sentimentos irrepetíveis. É passado, presente e futuro. É intimidade, presença e abismo. Por isso, a Umbrella House não é só um contentor funcional mas sim um invólucro espiritual. É espaço que transcende e que é difícil de compreender.
Nesta casa objecto e sujeito fundem-se. Shinohara deseja simular um espaço sem referências explícitas, nem detalhes concretos em relação a exemplos tradicionais japoneses. Talvez o templo ou a casa do chá sejam as referências mais próximas, onde a enorme cobertura piramidal é unidade. O nome atribuído à casa - umbrella (guarda-chuva) - traz à memória as delicadas construções de papel. A sua cobertura flutuante transforma esta casa num objecto singular, num todo único e indeterminado, que pode ser compreendido por inteiro. Shinohara ao expôr, no seu interior, a estrutura de madeira que suporta a cobertura, afirma a capacidade que uma casa tem de proteger e de abrigar.
Numa casa tão pequena, Shinohara corporiza o espaço não funcional ou abstrato (em reação contra o conceito de Existenzminimum dos anos 30) através de uma simplificação radical das funções necessárias para o habitar. Para Shinohara, só foi possível desenvolver a ideia de espaço não usado e não existente tornando imanente o espaço vazio. Espaço, para Shinohara, não é algo físico nem substancial - é fluxo, transitoriedade, transparência, impermanência e imersão.
Ao enfatizar-se o esvaziar cósmico e a ausência de funções - principalmente numa casa tão pequena e perante uma sociedade extremamente mecanizada - possibilita-se assim a imensidão da vida humana.
“The real work of design is not the mere production of housing as a social goal, but should instead be the creation of spaces that will strongly appeal to people. Unless it attains the status of a work of art, a house has no reason for being. The strength of my conviction that 'A House is a Work of Art' was born of the struggle with this small house. I wished to express the force of space contained in the doma (earthen-floor room) of an old Japanese farmhouse, this time by means of the geometric structural design of a karakasa (oiled-paper Japanese umbrella).", Kazuo Shinohara, text for Umbrella House, October 1962 (first published in English in The Japan Architect, vol. 38, Tokyo, February 1963).
Com data de 4 de Outubro, o dia da festa de São Francisco de Assis, e 8 anos depois da publicação da encíclica Laudato Sí, Francisco publicou a Exortação Apostólica Laudate Deum, com a intenção de partilhar com todas as pessoas de boa vontade a sua “profunda preocupação pelo cuidado da nossa casa comum”, porque, “com o passar do tempo, dá-se conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe está-se esboroando e talvez aproximando de um ponto de ruptura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida de que o impacto da alteração climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e noutros âmbitos.”
Entre a primeira afirmação do texto: “Louvai a Deus (Laudate Deum) por todas as suas criaturas” e a última: “Laudate Deum é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior inimigo para si mesmo, Francisco desenvolve o seu grito profético em cinco pontos: 1. a crise climática global; 2. o crescente paradigma tecnocrático; 3. a fragilidade da política internacional; 4. as conferências sobre o clima e o que se espera da COP28, no Dubai; 5. as motivações espirituais: um “antropocentrismo situado”.
1. Começa por chamar a atenção contra os negacionistas. Escreve: “Por muito que se tente negá-los, escondê-los, dissimulá-los ou relativizá-los, os sinais das alterações climáticas impõem-se-nos de forma cada vez mais evidente.” E dá exemplos dos últimos anos: fenómenos extremos, períodos frequentes de calor anormal, seca e “outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis de uma doença silenciosa que nos afecta a todos”. E, se não se tomar medidas, há a ameaça de esses fenómenos extremos se tornarem mais frequentes e intensos. E é necessário sublinhar que se trata de um fenómeno global e não se pode atribuir a culpa aos pobres, pois “a realidade é que uma reduzida percentagem mais rica do planeta polui mais do que os 50% mais pobres de toda a população mundial”.
Faço notar que o relatório anual científico Lancet Countdown, publicado já neste mês de Novembro, traça cenários dramáticos para a Humanidade, se a actual trajectória de emissões de gases com efeito de estufa continuar: o número de mortes associadas ao calor extremo, por exemplo, pode mais do que quadruplicar até 2050.
2. “A origem humana — ‘antrópica’— das alterações climáticas já não se pode pôr em dúvida.” Foi com o progresso industrial que as emissões dos gases com efeito de estufa, causadoras do aquecimento global, sofreram aumento: nos últimos 50 anos “a temperatura aumentou a uma velocidade inédita”.
O que está na base deste processo de degradação ambiental é o paradigma tecnocrático. Nunca a Humanidade teve tanto poder, mas “nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considerar a maneira como o está a fazer.” O aumento de poder não significa sempre um progresso para a humanidade, pois pode destruir a vida. Desgraçadamente, “a lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum.”
3. É evidente que estas questões são globais. Por isso, frente à fragilidade da política mundial, Francisco insiste na necessidade de “favorecer os acordos multilaterais entre os Estados”. “Não basta pensar nos equilíbrios de poder, impõe-se também responder aos novos desafios e reagir com mecanismos globais aos desafios ambientais, sanitários, culturais e sociais, sobretudo para consolidar o respeito dos direitos humanos mais elementares, dos direitos sociais e do cuidado da casa comum.”
4. É verdade que há já decénios que os representantes de mais de 190 países se reúnem para enfrentar a questão climática, mas o que se passa é que “os acordos tiveram um baixo nível de implementação, porque não se estabeleceram mecanismos adequados de controlo, revisão periódica e sanção das violações.” Avisa quanto ao limite ideal máximo de aumento global da temperatura de 1,5 graus do acordo de Paris: em breve poderemos atingir “o risco de um ponto crítico”: 3 graus.
A próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, de 30 de Novembro a 12 de Dezembro próximo, tem lugar no Dubai.
Francisco, que estará presente, espera que constitua “um ponto de viragem”, que “se torne histórica”. Para isso, repete: “Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?”
5. O Papa dirige-se a todas as pessoas de boa vontade. Quis, porém, reservar um ponto para as motivações espirituais, concretamente no contexto da Bíblia, que conta que “Deus criador, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa”. A terra pertence-Lhe e os seres humanos são “hóspedes”. Assim, “a responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo”.
É claro que o ser humano é especial e único, tem “um valor peculiar e central no meio do concerto de todos os seres, mas hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível defender um ‘antropocentrismo situado’, ou seja, reconhecer que a vida humana não se pode compreender nem sustentar sem as outras criaturas.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 25 de novembro de 2023
No centenário do nascimento de Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), invocamos a sua obra multifacetada, designadamente «Os Insubmissos» (1961), além da poesia e ensaio, onde se encontram as raízes da cultura e a compreensão da importância da emancipação humana.
“A Primavera vem dançando / com seus dedos de mistério e turquesa / Vem vestida de meio dia e vem valsando/ entre os braços de um vento sem firmeza // Nu como a água o teu corpo quieto e ausente / Só este inquieto esvoaçar do teu sorriso /Loiro o rosto o olhar não se mente / se de tão negro e parado é um aviso / do destino que me fixa finalmente / Ai, a Primavera vai passando / com os seus dedos de mistério e de turquesa / Segue Primavera vai cantando / Que será do nosso amor nesta praia de incerteza” – ouvimos o poeta Urbano Tavares Rodrigues e relacionamos o tema com a sua vitalidade criativa.
Filho de proprietários agrícolas alentejanos nas imediações de Moura, o escritor nasceu em Lisboa a 6 de dezembro de 1923. O Alentejo marcou-o profundamente na beleza da paisagem, na força da natureza, no culto do sol e da luz e na tomada de consciência das injustiças e da pobreza, das desigualdades e dos contrastes. O Baixo Alentejo marca-o, ligando velhas tradições republicanas e a emergência dos movimentos sociais emancipadores. "Por um lado, recebi a oralidade e a magia das conversas dos camponeses, por outro lado, tive uma relação muito próxima com a natureza, com o rio onde aprendi a nadar, com os cavalos [...] tudo, a lua, as estrelas, as árvores, os animais eram-me muito familiares. [...]ao longo dos livros [...] quando volto ao Alentejo, creio que é quando eu encontro uma certa qualidade lírica e mágica da linguagem". Em Lisboa, depois de frequentar o Liceu Camões, vem estudar Românicas para a Faculdade de Letras, aí iniciando uma carreira académica. Entre 1949 e 1955 leciona em França, nas Universidades de Montpellier, Aix-en-Provence e Sorbonne - Paris. Casa-se com a romancista Maria Judite de Carvalho. Uma vez que tinha apoiado a candidatura de Humberto Delgado em 1958 é impedido de ensinar em Portugal e torna-se jornalista no “Diário de Lisboa” e professor no Colégio Moderno e no Liceu Francês Charles Lepierre.
Envolve-se na ação política, participando em diversas iniciativas de luta contra o regime, nomeadamente na designada Revolta da Sé (1959) e no assalto ao Quartel de Beja (1962). Em 1963 é preso no Aljube, sendo por diversas vezes detido às ordens da polícia política. Exilado em França, conhece os meios da emigração. De regresso a Portugal, após a revolução de 1974, foi professor na Faculdade de Letras, sob proposta de Luís Filipe Lindley Cintra, e será crítico literário, ficcionista, ensaísta e investigador. A figura de Manuel Teixeira Gomes, Presidente da República, Embaixador, escritor referencial na primeira metade do século XX, atrai-o especialmente, tornando-se um estudioso fundamental do autor para a compreensão da importância do cidadão e intelectual para a cultura de língua portuguesa. Autor de obras marcantes como Os Insubmissos, Bastardos do Sol ou A Estação Dourada, foi agraciado com inúmeros prémios literários que distinguiram a sua obra, como os prémios Ricardo Malheiros, Aquilino Ribeiro e Fernando Namora; bem como da Associação Internacional de Críticos Literários; da Imprensa Cultural; ou o Prémio Vida Literária — atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores; além do Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco.
A título de exemplo, na antologia intitulada “A Estação Dourada”, Urbano Tavares Rodrigues reúne vinte e uma narrativas breves, escritas ao longo de uma década, e que, no seu conjunto, constituem uma perspetiva multifacetada da realidade contemporânea. O título da coletânea é tirado da narrativa inaugural e pode ler-se como uma celebração da estação estival, tanto no sentido meteorológico como simbolizando a maturidade, com os seus aspetos positivos, mas também com os seus reveses e dúvidas. O Sul está bem presente, quer na dimensão das planuras alentejanas, como no anúncio algarvia, que o autor aprendeu a conhecer e as amar, sob a influência marcante do Mestre Teixeira Gomes, exemplo de bom gosto e de talento, sobremaneira admirado por Urbano Tavares Rodrigues.
Numa obra vasta caracterizada pelo culto da poesia e da narrativa, pela paixão das viagens e da diversidade da natureza, o escritor escreveu ainda “Torres Milenárias”, “A natureza do Ato criador”, “O Mito de D. Juan e outros Ensaios de Escreviver” ou “O Texto sobre o Texto”. Como diz Fernando Pinto do Amaral: “Autor muito prolífico e sempre atento à evolução da sociedade portuguesa, Urbano Tavares Rodrigues partilha ainda com o neorrealismo evidentes afinidades ideológicas (…), mas inscreve-se já no quadro do existencialismo pela atenção que presta à interioridade de cada uma das personagens por vezes adensada em virtude de uma dimensão claramente erótica que acaba por individualizar o seu universo ficcional”. Falecido, em Lisboa, a 9 de agosto de 2013, aos 89 anos, é um autor a que hoje regressamos com a possibilidade de continuarmos a reviver uma experiência literária com qualidades … A língua torna-se expressão de sentimentos e compreendemos a como a existência apela a uma permanente emancipação.
Um ser humano é um combinado de egoísmo, sofrimento e necedade. Não comove ninguém. Uma pedra não comove ninguém. A beleza é um acidente banal e pressupõe a morte; muitas vezes se rodeia de sandice, e se nos fala, chega a ser assustador. A inteligência, refrescante como um duche, sabe bem, no Estio; mas agora, que é Inverno toda a vida, que lugar atribuir à inteligência? O de criada de servir nos aposentos da ganância. Não comove, é evidente, ninguém. A bondade, sim, comove. Mas é tão débil e tão rara que ninguém a ouve. Não é fácil, assim, encontrar algo que possamos amar. Eu tenho procurado, eu juro que não sei o que fazer: tudo me parece, até a música, produto de uma falha. Vou por essas ruas ao acaso e não acerto a conhecer quem me convença que bem outra poderia ser a vida. Tudo se mostra sob espelhos deformantes, tudo arde numa estranha aceitação. Francamente, que alguém me demonstrasse que não tenho razão.
in Movimentos no Escuro, 2005
Wild Strawberries – Ingmar Bergman (1957)
A human being is a blend of selfishness, pain and foolishness. Doesn’t move anyone. A stone doesn’t move anyone. Beauty is an ordinary hazard and presupposes death; it’s often surrounded by folly, and if it speaks to us, it can be frightening. Intelligence, refreshing like a shower, feels good in the summer; but now, when it’s forever winter, what place shall we allocate intelligence? The one of a maid servant in the chambers of greed. It doesn’t obviously move anybody. Goodness does. But it’s so frail and so rare that nobody hears it. It isn’t easy, therefore, to find something we can love. I’ve been searching, and swear I don’t know what to do: everything, even music, seems to me the result of some flaw. I wander these streets at random and don’t come across anybody who can convince me that life could well be different. Everything is seen under distorting mirrors, all burns in strange acceptance. Frankly, I wish someone would prove me wrong.
Não te tenho escrito, talvez por mágoa. Nada tenho contra ti, nem nunca terei. Mas sofro a dor do teu silêncio cruel, porque voluntário e premeditado. Diabolizas-me, tornas-me personificação do mal, mas deverás saber, no fundo mais sólido do teu coração, que jamais desejei o menor mal fosse a quem fosse. Quero bem a todos, a começar pelo bem da luz que nos liberta das trevas - a tal que levou o homem primitivo a adorar o sol e inventar o fogo em que se guardaria da noite. Não pretendo ter razão, falo, discuto, debato, com a gana de um troglodita que esfregava pedras para criar faísca. Pensarmos é o nosso modo obrigatório de termos consciência no tempo mutante. E é sempre, também, o início da comunicação, da comunhão com os outros. O diálogo é pensamento expresso e silêncio expectante do pensamento do outro. E por aí fora. Aliás, a própria mística é o pensamento que procura escutar Deus. Em silêncio. Eis o que os apologetas apressados, os falsos pregadores, não entendem: o silêncio como escuta. Tal como os desconfiados, muitas vezes, preferem calar-se. Hoje, aliviado momentaneamente das dores que me limitam o movimento físico, fui buscar, às prateleiras altas destas estantes cheias de livros e pó, uns álbuns de fotografias antigas que a tua irmã carinhosamente guardava. Entre elas, achei várias da "divina condessa" - tão parecida com ela, fisicamente. Virão as parecenças do ramo florentino da família, os Lamporecchi, mas entre a nossa G. e a Virginia Oldoini, condessa de Castiglione, não há outra semelhança. A G. poderia ser enérgica, impositiva, autoritária até, mas era esquecida de si, procurava o serviço dos outros e não olhava para o espelho. A condessa era narcisa. Foi muito bela, desde muito cedo soube que o era, muito tarde se deu conta de que a beleza física é um episódio. Tinha 41 anos quando, vivendo então em Paris, se encerrou num apartamento na Place Vendôme, protegido do exterior por três portas de entrada, e no interior pintado muito de preto, sem espelhos nem vidros refletores. Até então, tivera inúmeros amantes, pelo gosto inato de exercer o poder da sua sedução. Um deles foi Napoleão III, diz-se que por ter sido enviada por outro dos nossos Camillo, o Cavour, primeiro-ministro de Vittorio Emanuele, rei do Piemonte, para aliciar o imperador dos franceses para a causa do "risorgimento" de Itália contra os Habsburgos... Teria então 19 anos, estava casada havia dois, era mãe de Giorgio, com um. As fotografias que a tua irmã guardou mostram-na, sempre em estúdio, ou quase sempre, personificando heroínas e mitos, com uma presença e uma intensidade dramática que me lembrou a Callas, de que tanto gosto. Poderá ser mais bela e pura e certa a voz da Renata Tebaldi, mas a Callas tem... esse não-sei-quê, que mexe connosco! A nossa "divina condessa" - assim a conheciam admiradores e amantes - para mim, de divino pouco tinha, de condessa o título do marido atraiçoadíssimo que a adorava, de marquesa o título dos pais, quando menina. Não será pessoa de que uma família conservadora e católica se possa orgulhar muito... Não é, de modo algum, o "meu género". E, todavia, ao olhar para estas fotografias, com as loucuras que as habitam, não é a superficialidade de quem andou nas bocas do mundo, por ser mulher fatal nos braços de muitos, que mais me impressiona. O que, afinal, me atrai, ao ponto de chegar a ferir-me, é a solidão quase inimaginável, para mim, pelo menos, de uma mulher que se pensou como não era, de um ser humano que procurou, quiçá, um encontro em tantos desencontros. Ou de quem sonhou com a satisfação impossível do amor pela conquista, pela sedução ou pelo engano... Ou ainda, talvez, que sei eu disto?, de quem, mesmo nos dias tardios da vida, não se deixou vulnerabilizar, e se quedou fechada. No caso de Virgínia Oldoini, num apartamento oposto ao olhar dos outros por três portas, e ao seu próprio olhar por negras paredes e ausentes espelhos. Lembra-me o inferno, o supremo castigo da incomunicabilidade. Ela morreu um ano antes de eu ter nascido. Há mais de 70 anos. Pouco me falaram dela, talvez por ser conversa aconselhavelmente evitável. Entrou hoje no sossego quase monástico do meu gabinete de trabalho. E, mesmo tão diferente de mim - ou tão longe do que eu sinta como gosto meu - sentou-se, altiva, hermética, à lareira do meu coração. E, por um qualquer milagre - como outros que me surpreenderam e comoveram na vida - vi-lhe uma lágrima escorrendo pela face até ao sorriso súbito e breve. Talvez se salve. Que sabemos nós da misericórdia de Deus?". Sou herdeiro e depositário desse álbum. E da misteriosa comoção de Camilo Maria.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 20.08.13 neste blogue.
“Seja qual for a perspetiva, o monolinguismo veicular duma língua tem sempre subjacente a ideia de que uma herança linguística diversa é um obstáculo para a homogeneização do mercado, não coincidindo com as necessidades de unicidade do mercado global, dado que a globalização pressupõe e impõe a unicidade, entrando em confronto com várias zonas linguísticas que comportam a existência de vários mercados. A ideia que prevalece é a de que quem tem o poder impõe a língua. E um dos argumentos mais comuns para se usar o inglês e não usar outras línguas é o mesmo: os custos. Usar inglês é mais barato, permitir o uso de outras línguas é dispendioso e nocivo” (A Língua Portuguesa no Mundo V - Monolinguismo, Diversidade e Neutralidade Linguística).
Dada a hegemonia do inglês, como língua franca, de comunicação global e internacional por excelência, há os que têm essa supremacia como inevitável, uma benesse, uma ameaça à diversidade, um idioma de apetência glotofágica, género “erva daninha” de destruição linguística.
Se a globalização impõe a unicidade a nível económico, financeiro, científico, político, militar, o mesmo sucedendo no campo linguístico, dado que a existência de várias zonas linguísticas suporta a existência de mercados em concorrência e parciais, como compreender que cada vez mais, em termos mundiais, haja mais pessoas que falam duas ou mais línguas sendo, no mínimo, bilingues?
É sabido que muitos falantes que têm o inglês como língua materna são monolingues, sendo como nativos uma minoria e estando em inferioridade, o que nos interpela sobre o que sucederá se a diversidade linguística desaparecer e a esmagadora maioria de nós falar um único idioma.
A par da universalização do inglês como língua franca, vai crescendo a ideia de que o melhor é sermos poliglotas, sermos capazes de nos exprimirmos em vários idiomas, de que o inglês é fundamental mas não basta, de que já não basta falar uma só língua estrangeira (além da nativa), de que o mais importante, a nível global, a começar pelos negócios, é a convicção de que comunicarmos com clientes, concorrentes ou colegas de profissão na sua própria língua pode ser decisivo num acordo ou reunião, havendo cada vez mais profissões em que falar várias línguas é um valor acrescentado às nossas qualificações académicas e profissionais.
Cada língua tem um tipo de relação especial com a realidade, é um valor que pertence à esfera do conhecimento e do saber difícil de quantificar, sendo saudável para a civilização manter a diversidade linguística, pelo que é arriscado contar só com uma língua e negar a diversidade de perspetivas que a biodiversidade e o multilinguismo proporcionam com o aumento da probabilidade de uma resposta mais adequada, proporcional e razoável.
Segundo os cientistas, assim como precisamos de fazer exercício físico para manter saudável o nosso corpo, também os exercícios cognitivos beneficiam a nossa saúde mental, enriquecida pelo falar de várias línguas, ganhando as mentes flexibilidade, atividade cerebral reforçada e aprendendo a realizar diversas tarefas ao mesmo tempo, tendo-se como enormes os benefícios do multilinguismo a nível cultural, profissional, social, psicológico e neurológico.
Ao invés da Torre de Babel bíblica em que os homens queriam apenas constituir um povo e falar uma única língua (dominação e imperialismo linguístico), construindo uma cidade e uma torre que chegasse aos céus, tornando-se famosos e evitando que se dispersassem pela Terra, intui-se que a diversidade é garantia de toda uma série de opções democráticas de abertura, durabilidade e estabilidade, da ausência de um poder dominante de tudo e de todos, tipo uma Babel poliglota.
Apesar de, com a inteligência artificial e os avanços tecnológicos, ser possível “(…) que no século XXI surjam máquinas de tradução e interpretação automática, tornando desnecessário, em termos de comunicação, o conhecimento mútuo de uma língua franca, estando as Nações Unidas a desenvolver o projeto “Universal Networking Language” (UNL), uma linguagem universal de tradução automática para uso na internet e em computadores, usando cada pessoa o seu idioma” (ler, neste blogue, A Língua Portuguesa no Mundo XXX - Observações e Críticas ao Pessimismo de Fisher), a unidade na diversidade linguística sobrevive, como património da Humanidade, tendo falhado a tentativa de uma interlíngua ou língua neutra, como o esperanto, por se entender que um idioma artificial e sem identidade não pode servir de língua identitária em termos supranacionais.
“Tante Olga” de Anatol Herzfeld simboliza uma nova forma de conduzir a vida.
“Kunst ist Seelsorge (A Arte sustenta a alma)”, Anatol Herzfeld
Anatol Herzfeld (Karl-Heinz Herzfeld, 1931-2019) foi aluno de Joseph Beuys, mas começou a sua carreira como polícia e pugilista. Manteve a sua ligação à polícia, enquanto artista, através da educação rodoviária para crianças, na qual explicava aos seus alunos as regras de trânsito através de fantoches por si criados. Ao longo do seu trabalho como artista, as crianças foram também um tema fundamental do seu trabalho, uma vez que tinha um fascínio pela extraordinária intuição que as crianças têm quando se exprimem - e que frequentemente é suprimida na escola.
Anatol, tal como Beuys, sempre alargou a sua prática artística muito para além da pintura e do desenho, pois ambos acreditavam que a arte tem a capacidade de transformar e curar o ser humano. Ao utilizar frequentemente elementos como a cadeira, a mesa, a casa, mas também o soldado, o peixe e a flor crucífera, Anatol deseja transmitir a ideia de que a arte talvez não constitua uma profissão especializada, mas sim uma atitude humanitária intensificada.
Uma das obras-chave que Anatol realizou para a Documenta 6 de 1977, em Kassel, foi um barco feito de folhas de fibra de vidro - com a forma de um barco de papel - chamado "Tante Olga”. Anatol navegou este barco desde o Norte da Alemanha até Kassel. O barco recebeu o nome de Olga Tapken, que era a proprietária de um restaurante em Oldenburg, e que concedeu, a ele e aos seus colegas artistas, o terreno para a academia "Freie Akademie Oldenburg", que ele fundou juntamente com o artista local Eckart Grenzer. Trata-se de uma escola secundária destinada a formar artistas, independentemente da sua educação escolar, na tradição de Joseph Beuys, que se opunha às rígidas regras de candidatura às universidades de arte que exigiam um nível A (Abitur) para a admissão. A escola atraiu, para além do próprio Joseph Beuys, também Blinky Palermo (esta alcunha foi também dada por Anatol em memória de um famoso pugilista com o mesmo nome), que trabalhou e actuou juntamente com Anatol em vários eventos. O lema desta escola era "Kunst ist Arbeit--Arbeit ist Kunst” (Arte é trabalho, trabalho é arte) - um princípio que Anatol também promoveu com os seus eventos artísticos "Arbeitszeit" (tempo de trabalho).
O objetivo da viagem do seu barco “Tante Olga” era levar todos os sonhos das crianças até Kassel. Mas representava também uma acção / protesto contra a divisão de Friesland em dois distritos distintos de Wittmund e Ammerland (revertida em 1980). Na sua opinião, não podia ser aceitável destruir uma área que cresceu una culturalmente durante séculos. Joseph Beuys comentou após esta viagem que “Finalmente a arte era livre em terra, no mar e no ar".
O barco como símbolo representa uma travessia e uma descontinuidade, simboliza um meio para chegar a um outro modo actual de ser. Se a vida e a existência são uma viagem, o barco possibilita a transição e a transformação. A possibilidade de um renascimento, a oportunidade de passar de um estado a outro mais essencial. Por isso, este barco de Anatol simboliza uma nova forma de conduzir a vida.
Com a sua viagem, Anatol pôde trazer para Kasssel o seu apoio às crianças e também o seu princípio de "Arbeitszeit”. Foi a partir daqui que Anatol se estabeleceu igualmente como artista performativo, utilizando as suas obras para transmitir mensagens políticas. Um exemplo mais recente é um enorme canhão de ferro puxado por um tractor que Anatol utilizou para lançar sementes de flores e borboletas de papel em vários locais. O barco “Tante Olga” ainda existe e atualmente está exposto no espaço exterior de uma escola em Kassel.
Em todas as licenciaturas, há uma cadeira se imporia: Antropologia, pois é sempre o ser humano que está em causa.
1 . E quando falamos do ser humano, temos de ter sempre em consideração que se trata de uma unidade em tensão. Assim, ele apareceu na história da evolução e, por isso, é preciso dizer que ele vem da natureza, mas, ao mesmo tempo ele é na natureza, pois é nele que a natureza e a evolução sabem de si. Ele é no tempo: vem do passado, vive no presente e projecta-se no futuro. Ele é simultaneamente impulso, emoção e razão. É consciente, consciente de que é consciente, mas mergulha no inconsciente, o isso em nós sem nós, de tal modo, que por vezes perguntamos: eu fiz isso?, aí não era eu. Limitado, o ser humano é uma abertura ilimitada, nunca estamos suficientemente feitos, estamos abertos a tudo, à Transcendência.
2. Deste modo, encontramos o cuidado. Cuidaram de nós e nós devemos cuidar: cuidar de nós (desde o que comemos ao repouso...), cuidar dos outros (só sou eu face ao tu), cuidar da natureza (há uma ligação estreita entre a saúde e o ambiente), cuidar do Sagrado, de Deus.
3. G. K. Chesterton escreveu: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Aqui, porque por vezes, nos sentimos mal e caímos doentes, encontramos a medicina. Precisamos de alguém com conhecimentos e técnica que nos ajude, mas no quadro de um conceito holístico de saúde. Quando vamos ao médico, esperamos evidentemente encontrar alguém que perceba do assunto, mas que simultaneamente nos trate como pessoas e atendendo àquela unidade tensa já exposta. O encontro médico não pode reduzir-se a este quadro: de um lado um técnico e do outro uma máquina desarranjada, pois deve ser um pacto entre alguém que sabe e outro alguém que precisa de ajuda. Há estudos que mostram como uma boa relação de confiança entre o médico e o doente é fundamental para a cura — em latim, cuidado diz-se cura.
Quando estamos atentos às palavras, elas dizem o essencial. Clínica vem do grego klínein, que significa inclinar-se : o clínico inclina-se sobre alguém em necessidade. Hospital vem de hospes, hóspede: é como tal que o doente deve ser tratado.
4. Sobre a importância decisiva da saúde dizem as nossas saudações quotidianas quando encontramos alguém, e isso nas várias línguas: “Como está, como estás?” A palavra valor vem do latim: vale!, a palavra usada pelos romanos para saudar alguém, também na despedida: “passa bem!”. É essencial um conceito holístico de saúde — do grego hólon, que significa o todo, não enquanto soma das partes, mas o todo que é mais do que essa simples soma.
Vamos de novo às palavras e ao seu étimo, e encontramos o elo entre a espiritualidade, a religião e a saúde. A palavra medicina tem na sua base um radical med-, que dá origem a moderação, meditação e medicina. Saúde provém do latim salus, salutis, na base também de salvação. E saudar vem de salutem dare. Em inglês, saúde diz-se health e santo diz-se holy, em conexão com the whole ( o todo); em alemão, temos heilig para santo e heilen significa curar. Em português, de uma pessoa com saúde dizemos que está são, a mesma palavra que usamos para São João e São José...
E vamos ao encontro de estudos científicos que mostram uma relação globalmente positiva entre a religião e a saúde – repito: significativamente, o étimo latino de saúde e salvação é o mesmo: salus, salutis. Apenas alguns exemplos — quem estiver interessado poderá procurar outros e um estudo mais aprofundado da questão no meu mais recente livro, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?
Mario Beauregard, investigador de neurociências na Universidade de Montréal, escreve que se acumulam provas consideráveis que mostram que as experiências religiosas, espirituais e/ou místicas “estão associadas a melhor saúde física e mental.” Na sua obra The Spiritual Brain, cita 158 estudos médicos sobre o efeito da religião na saúde, concluindo que 77% fazem menção de um efeito clínico positivo. Outro estudo mostrou que “os adultos mais idosos que participam em actividades religiosas pessoais antes do aparecimento dos primeiros sinais de handicap nas actividades do quotidiano têm mais esperança de vida do que os que não o fazem.” O neurocientista Miguel Castelo-Branco, da Universidade de Coimbra, escreveu: “A medicina baseada na evidência tem sugerido que a religiosidade e a espiritualidade influenciam de forma efectiva o desenlace em muitos domínios clínicos, incluindo a dependência de drogas... A experiência espiritual é benéfica para a saúde humana e o tipo de bem-estar psicológico que proporciona pode ser activamente procurado.”
Neste contexto, encontramos, evidentemente, a questão fulcral da religião e do sentido. Foi concretamente Viktor Frankl, sobrevivente de Auschwitz e fundador da chamada terceira corrente de psicoterapia de Viena, que sublinhou, a partir aliás também das suas terríveis experiências dos campos de concentração, a relação entre o sentido e a cura. O que move o ser humano é o sentido, de tal modo que tudo suportará, se encontrar um sentido, e a religião tem a ver precisamente com o sentido de todos os sentidos, o Sentido último. Na busca de Sentido Último, a pessoa, inconscientemente, procura Deus — Der unbewusste Gott (O Deus inconsciente) é uma das suas obras.
Escusado será dizer que é essencial a imagem que se tem Deus. Que Deus?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 18 de novembro de 2023