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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PERANTE O HORROR, O SILÊNCIO DE DEUS

  


Actualmente, porque, com a televisão, temos acesso às imagens, talvez seja sobretudo perante os horrores das guerras que se pode ficar estarrecido perante o silêncio de Deus. São bombardeamentos que não deixam pedra sobre pedra, que matam indiscriminadamente homens, mulheres, crianças, e ficamos esmagados sobretudo pela dor, o clamor, as lágrimas, a desorientação das crianças inocentes. Onde está Deus?


Joseph Ratzinger, chamado aos 17 anos para o serviço militar do Reich, foi desertor e prisioneiro dos americanos. Já Papa Bento XVI, como já aqui escrevi,  esteve em Auschwitz e fez um discurso dramático e deveras emocionante: "Tomar a palavra neste lugar de horror, de crimes contra Deus e contra o ser humano sem precedentes na História, é quase impossível, e é particularmente difícil e deprimente para um cristão, para um Papa que procede da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras; no fundo, só há espaço para um atónito silêncio, um silêncio que é um grito interior para Deus: Porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque se calou?”


Perante o horror do mundo e todos os mortos e todas as vítimas — ah!, as vítimas inocentes —  e o aparente silêncio de Deus, percebemos a tentação do ateísmo. E até poderá tratar-se de um ateísmo moral, um ateísmo ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus, que é preciso recusar por causa da moral: um mundo com tanta dor, tantas injustiças, tanto sofrimento de inocentes, tanto cinismo brutal do poder, como pode ser criação de um Deus bom? Mas a quem recusa Deus assalta-o outra pergunta: se Deus não existe, donde vem o bem e a nossa revolta, desde a raiz de nós, contra o mal e a morte, clamando por justiça e salvação para as vítimas inocentes? Porque, sem Deus, afundamo-nos no nada e anula-se, em última análise, a própria diferença entre bem e mal. Por isso, segundo Jürgen Habermas, para mim o maior filósofo vivo, agnóstico, o que mais nos inquieta é “a irreversibilidade dos sofrimentos do passado — a injustiça contra as pessoas inocentes vítimas de maus tratos, aviltamento e assassinato — sem que o poder humano possa repará-los”, acrescentando:  “A esperança perdida da ressurreição” sente-se como um grande vazio.”


Há uma pergunta decisiva — para Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt, a que Habermas também está ligado, é mesmo “a pergunta fundamental de Filosofia” —: o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes clamam, e um grito sem fim, ensurdecedor, percorre a História. Há uma dívida incontável para com essas vítimas. Quem a pagará?


Max Horkheimer e Theodor Adorno, principais representantes da Escola Crítica, com quem Bento XVI entrou em diálogo na sua encíclica sobre a esperança, “Salvos em Esperança”, viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível a edificação de uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e então seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por essas vítimas, e então não era humana, porque não solidária.


Adorno e Horkeimer exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições  no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, “o anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra.”


Esta esperança tem de traduzir-se numa práxis solidária tal que, como disse de modo incisivo Kant, “a práxis tem de ser tal que não se possa pensar que não existe um Além.” Nesta práxis, está implicado o pensamento do Absoluto, como exigência moral e como anelo de que o finito e o mundo da injustiça não sejam a ultimidade e o definitivo. Também neste sentido, Adorno escreveu que “o pensamento que não se decapita desemboca na Transcendência”. Neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. A pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.


No seu diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o ser humano está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavras” convence da necessidade da ressurreição dor mortos e da vida eterna. 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 4 de novembro de 2023