POESIA
ODISSEIA (6)
XX
Se existir um leitor que reúna qualquer dia
com o próprio dia,
para ele escreverei
no sentido de o ouvir,
no sentido de abrir coisas,
no sentido de me dizer da morte antes do nascer
e do que significam as coisas antes de significarem.
XXI
Existe sim, uma arte no encurvar-se,
mas não sob um peso,
antes sob um não falar e um não calar
porque ambos abrem algo
num tempo
que se vai mostrando.
XXII
O que vi?
Vi sempre a mesma coisa:
tanta forma de morte que até se assiste ao seu envelhecer;
tanto pólen da piedade dos deuses
sem linguagem para o final,
quando até a bondade humana
se confunde.
XXIII
Embora hoje os sinos toquem,
eles estão equivocados.
Ainda a última morada antes da última se não escolheu
e ainda nem desafiámos o que nos resta,
nem sequer sabemos se o pensamento será fiel às suas ruínas
ou até se não existimos o suficiente.
Afinal.
XXIV
Receio qualquer porta que não reconheça a morte,
enquanto sem entrar e sem sair
e sem tempo,
aqui estou sem ter escrito uma escrita que um dia se possa ler
num algoritmo de milho.
XXV
É chegada a hora da canção.
Canta ela que para cá e para lá da morte ainda resta a transgressão
do muito que se não conhece.
XXVI
Debaixo da mesa, numa das suas raras entrevistas,
a morte afirmava nada saber do que lhe perguntavam.
Acrescia mesmo que se calhar, ela era vida num tempo diferente,
numa parte do real fora do nosso alcance,
ou não fosse impossível entender uma realidade
fora dela mesma,
como quem coloca flores que já emigraram ou ainda não chegaram,
dentro de uma jarra.
Teresa Bracinha Vieira