A VIDA DOS LIVROS
De 18 a 24 de dezembro de 2023
Em Alberto da Costa e Silva a pluralidade da língua portuguesa compreende-se a partir da reflexão sobre “A Enxada e a Lança” ou sobre “A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700”, além de “Um Rio chamado Atlântico” – sobre “a África que moldou o Brasil e o Brasil que ficou na África”.
SAUDOSO AMIGO
Dediquei ao saudoso amigo Alberto da Costa e Silva, que agora nos deixou, o texto publicado em maio intitulado “Brasil, Tão Perto”, por ocasião da entrega do Prémio Camões a Chico Buarque. E lembrei então Antonio Candido, por ter desenvolvido na análise da cultura do Brasil, o facto de a obra de Sérgio Buarque de Holanda utilizar a “admirável metodologia dos contrários”. Trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e percurso afetivo – os pares que o autor de “Raízes do Brasil” destacou no modo-de-ser e na estrutura social e política, para analisar e compreender o País e os brasileiros. Se dediquei esse texto a Alberto da Costa e Silva, o inesquecível visionário de uma compreensão de largo prazo da realidade brasileira, fi-lo porque ele entendeu melhor que ninguém, na sua obra multifacetada, o Atlântico como presença influente nos continentes americano e africano, designadamente no complexo movimento triangular que une as nossas diferenças. A pluralidade da língua portuguesa compreende-se a partir da reflexão sobre “A Enxada e a Lança” ou sobre “A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700”, além de “Um Rio chamado Atlântico” – sobre “a África que moldou o Brasil e o Brasil que ficou na África”. Assim, invocando a língua e as lusofonias, é necessário estudarmos um Atlas prospetivo sobre o que será o Atlântico Sul dentro de meio século, para entendermos o surgimento de um “rio” de incomensuráveis partilhas, nova casa miticamente comum, desde a Macaronésia ao planalto do Huambo e ao grande e múltiplo território brasílico. E recordei ainda o facto de António Correia e Silva, no estudo sobre o caso de Cabo Verde, evocar o ponto de encontro dos polos fundamentais do Atlântico Sul, salientando a importância da “crioulidade”, com variantes dialetais insulares, enquanto manifestação rica da cultura popular, fundamental para a coesão social e para a afirmação da unidade cabo-verdiana. O crioulo é, de facto, uma criação multissecular, com base na língua portuguesa e uma fecunda ligação às variantes culturais africanas. De facto, a cultura africana moldou em parte significativa a cultura do Brasil, ao lado das culturas da língua portuguesa e Alberto da Costa e Silva entendeu-o como ninguém.
LEMBRANÇA DO BENIM
Leia-se “Francisco Félix de Souza – Mercador de Escravos” (a biografia do célebre “Chachá”) e compreenda-se como o seu autor, em 2004, considerou a historiografia complexa sobre o tema num contexto das diferentes perspetivas complementares, evitando transposições ou apreciações anacrónicas e preservando não só as condições concretas dos diversos momentos históricos, mas também o sentido crítico e a transposição para as condições do tempo presente. “Ninguém era bondosamente traficante de escravos. A profissão era cruel e exigia dureza e frio na alma. Quem a exercia estava sempre de chicote na mão. Compravam-se, porém, e se vendiam escravos com a mesma indiferença, ou falta de remorso, aflição ou angústia, com que um empresário contemporâneo despede empregados e despenca famílias na indigência. Algum desassossego, ou mais que isso, um sentimento de pecado, devia, contudo, frequentar o espírito de alguns dos que comerciavam com seres humanos” … É certo que havia uma ponta de melancolia em alguns e noutros oferendas expiatórias, mas “como tantos de seu tempo, na Europa e nas Américas, provavelmente (o traficante) não considerava os africanos como seus semelhantes, mas, sim, uma humanidade à parte ou uma subumanidade, de cuja barbárie a escravização resgatava”. Para Alberto da Costa e Silva, Francisco Félix de Souza seria “um homem de notável inteligência, incomum habilidade e grande encanto pessoal, no trato com os brancos e com os grandes do Daomé”. Gilberto Freyre disse, um dia, que tinha, porém, “alguma coisa de malandro carioca”. Mas o biógrafo discorda: «Não tinha: era cumpridor, zeloso e sério. Mas fico com o resto da frase de Freyre: devia ter o ser tanto ‘de fidalgo pernambucano’ e ‘muito mais do baiano maciamente diplomata’». Em vida do Chachá (que em 1844 teria provavelmente a idade de 90 anos) assiste-se à transição lenta do comércio de gente para a transação de óleo de palma ou azeite-de-dendê e os navios negreiros começaram a adaptar-se, bem como os seus mercadores. Mas os britânicos apertavam cada vez mais o cerco ao tráfico de escravos de Ajudá, o que se traduziu em grandes prejuízos financeiros dos negreiros. Assim se explica que Francisco Félix tenha morrido, em 1849, sem a opulência de outrora, endividado e com o negócio condenado. Contudo, ficou a fama do nome e da família, e tive oportunidade de conhecer pessoalmente o Chachá VIII, Honoré Feliciano Julião de Souza, com evidente influência local. Mas Alberto da Costa e Silva recorda como, ao seu ouvido, um cidadão do Benim, que o acompanhava de visita, salientou, com naturalidade, que Félix de Souza não foi aquele grande homem a quem cantam loas, “mas a principal personagem de um medonho pesadelo”.
A ENXADA E A LANÇA
Agostinho da Silva referiu-se no início de “A Enxada e a Lança” ao “Embaixador que nunca larga o Poeta”. “Sabe ele toda a história / geografia palmo a palmo / com saber apaixonado / ao mesmo tempo que calmo // mas o que mais lhe louvamos / ao livro de bom narrar / é o principal intento / que permite formular // para termos definido / o que o Brasil nos vai ser / como faísca do mundo // que do nosso vai nascer // pelo toque brasileiro / o de dádiva e de amor / o de alegria na vida / e de divino esplendor…” Para Alberto, a escassez e a fragilidade dos dados sobre o passado africano impuseram uma prosa plena de advérbios de dúvida, além de uma análise em que as hipóteses sobre o passado se associaram aos projetos de futuro. “Se é verdade que toda narrativa histórica é uma aproximação hipotética de acontecimentos que o autor não viveu — o papel escrito, embora pareça neutro, é quase sempre parcial e, como as tradições que a memória coletiva guarda e adultera, também mente, dissimula, cala e ilude, além de ser lido de modo distinto de geração em geração —, esse relativismo se acrescenta, ao tratar-se da África, pois os menos obscuros dos testemunhos de sua antiguidade são os objetos e as imagens de cerâmica, bronze, latão, madeira ou pedra, a indicarem o alto nível de mestria técnica e a agudeza de sensibilidade e inteligência que lhes deu origem”. No fundo, a interrogação sobre as raízes foi para Costa e Silva essencial para a compreensão da cultura como convergência de influências e desenvolvimento de esperanças.
Guilherme d'Oliveira Martins
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