"PORTUGAL AMORDAÇADO"
A publicação pela Imprensa Nacional de Portugal Amordaçado da autoria de Mário Soares e a sua apresentação na Fundação Gulbenkian, no dia em que o antigo Presidente da República completaria 99 anos, são motivo de séria reflexão, já que se trata de um texto político fundamental para a história contemporânea. Daí a grande importância desta coleção dirigida por José Manuel dos Santos. Como salientaram João Soares e Jaime Gama, em intervenções de grande oportunidade, não poderemos compreender a institucionalização da democracia sem o entendimento do contexto e dos termos em que se situou o papel fundamental de Mário Soares, quer quando correu o risco do exílio, quer quando decidiu a fundação de uma nova força política, que se tornaria matricial para a afirmação da liberdade, de um consenso nacional, do pluralismo e de uma opção europeia.
Temos de lembrar que Mário Soares, quando decidiu avançar com o livro, estava num momento difícil da sua trajetória política. Como afirmou Jaime Gama, o Portugal Amordaçado "não é um livro escrito no quadro de um percurso de normalidade ou de facilidade, porque Mário Soares tinha não só o problema de se confrontar com uma ditadura, mas tinha também o problema de gerir o seu espaço como líder político". E assim "usa este livro em estado de necessidade", procurando "evitar que o seu exílio fosse um passo mais no sentido da sua destruição. Porque os exílios podem ser - e muitas vezes são - passos mais degradativos para a destruição de um político do que a própria prisão”. E Mário Soares teve a agudíssima consciência disso. “O livro ficou pronto em 1972, teve boa imprensa. (…) Escrevi-o com determinação (disse-o a Maria João Avillez), sempre de jacto e de memória, embora com grandes interrupções. Sempre fui visceralmente incompatível com a Ditadura, sentindo o dever moral, irrecusável, de a combater por todos os meios ao meu alcance (…). Mas nunca tive ilusões acerca da dificuldade do caminho. Para dizer a verdade, até pensava que o Governo de Salazar era bem mais sólido do que, finalmente, se revelou ‘a posteriori’”. E acrescentava: “As ideias estão certas. São as mesmas de sempre e estão certas. O livro dá uma larga panorâmica da Oposição durante o tempo de Salazar e de Caetano. O contraponto da propaganda oficial. (…) É um livro que constituiu um marco”. Importava, afinal, definir a autonomia estratégica do “socialismo democrático”. Por isso, houve que estabelecer com as outras forças políticas, boas relações, pontes, diálogo. A preocupação fundamental era “ganhar forças e apoios de toda a ordem para bater e derrubar o fascismo – um regime gasto, serôdio e de traição nacional aos interesses de Portugal”. Assim se exprimia quem conhecia a história, designadamente da Primeira República, tendo consciência de que havia um campo complexo para explorar. Portugal Amordaçado antecipa os acontecimentos. Depois, Francisco Sá Carneiro e Miller Guerra denunciam que a “evolução na continuidade” não tinha futuro, e renunciam aos lugares de deputados da “ala liberal”, nos inícios de 1973, por manifesta falta de condições para o exercício da livre expressão do pensamento. No Congresso da Oposição Democrática de Aveiro de abril de 1973, José Medeiros Ferreira levanta, premonitoriamente, a hipótese da intervenção militar para abrir caminho à democracia e em setembro iniciar-se-iam as ações do Movimento das Forças Armadas, que culminariam em 25 de abril de 1974 com a operação coroada de êxito, antecedida pela declaração “O Movimento das Forças Armadas e a Nação”, em cuja redação Ernesto Melo Antunes teve papel determinante, antecipando o Programa do Movimento, num percurso que culminaria na nossa democracia civil de perfil constitucional europeu. Nos dias de hoje, a releitura do livro de Mário Soares tem, assim, de ser feita como memória de um caminho de coerência e determinação, que foi o de uma vida inteira, como exemplo para a democracia contemporânea.
GOM