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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 25 a 31 de dezembro de 2023

 

“A Bíblia Tinha Mesmo Razão?” de Francisco Martins, S.J., publicado por Temas e Debates, constitui um precioso e fundamental roteiro sobre os grandes marcos do Antigo Testamento.

 

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A PRUDENTE INTERROGAÇÃO

As histórias de Israel e Israel na História levam-nos à investigação de um competente jesuíta que permite uma análise cuidada sobre a verosimilhança dos acontecimentos fundamentais do Antigo Testamento. Em 1955, o jornalista e ensaísta alemão Werner Keller escreveu uma obra que deu brado. Referimo-nos a “E a Bíblia tinha razão”, livro que se propunha mostrar que as descobertas arqueológicas disponíveis confirmavam a veracidade dos relatos bíblicos. O que muitos consideravam mito, lenda ou referência ilusória tinha acontecido de facto, e era possível prová-lo cientificamente. E assim a conquista de Canaã, relatada no livro de Josué, ou a fundação do reino de David, a quem sucederia Salomão, segundo os livros de Samuel e dos Reis, corresponderiam a acontecimentos cuja memória podíamos confirmar com provas históricas. O mesmo afirmava Keller relativamente ao dilúvio universal, relatado no Genesis, às dez pragas do Egipto, referidas no Livro do Êxodo, ou no surgimento do Maná do deserto… Importaria encontrar indícios naturais que pudessem confirmar a memória longínqua desses acontecimentos, como a ocorrência de uma grande inundação na foz do rio Eufrates ocorrida cerca de 4000 antes de Cristo, cujas marcas eram encontráveis, ou a decisão do Faraó de deixar partir o povo judeu, o que só poderia explicar-se sob o efeito de uma ameaça sem dúvida avassaladora. Já quanto ao Maná do deserto, Keller encontrou como explicação as secreções de um inseto-escama que se alimenta da seiva dos tamariscos… A partir desta obra, Francisco Martins S.J., professor de literatura bíblica na Universidade Pontifícia Gregoriana de Roma, apresenta-nos uma investigação que, segundo um método diferente, transformou a afirmação de Werner Keller numa pergunta, procurando investigar o que podemos saber sobre a história do povo judeu, que nos legou na Bíblia o relato do que o marcou e lhe deu uma identidade própria. Urge, assim, responder às perguntas que devem animar um estudo sério sobre o tema, desde as condições sociais que promoveram o surgimento da realidade coletiva, até à compreensão de como se afirmou a expressão política dessa identidade, nos séculos que correspondem ao período do Antigo Testamento. Trata-se, no fundo, de compreender melhor, corrigindo anacronismos e sem forçar os acontecimentos, qual a relação entre a Bíblia e a História. Foi esse o caminho seguido pelo investigador, e o certo é que os leitores são largamente beneficiários de tal método e da atitude crítica.

 

UMA ATITUDE CRÍTICA

Em vez de responder sim ou não à pergunta do título, o que empobreceria a nossa compreensão sobre o perfil e o horizonte da literatura bem como sobre a reconstrução histórica, deveria partir-se do texto bíblico para uma análise crítica das circunstâncias do mesmo. Podemos compreender, assim, a linha do tempo que ela acompanha. Daí explicar-se que Frei Bento Domingues, O.P. tenha afirmado ser este livro o melhor dos presentes de Natal. Seguindo um caminho cronológico, deparamo-nos com o período das origens, desde Abraão até à época dos Asmoneus; depois estão em causa os relatos patriarcais e as dúvidas sobre quais as razões para o caráter tardio das composições literárias sobre os patriarcas, com forte risco de anacronismo e mistérios por resolver. “Envoltas em ‘roupagem’ literária do primeiro milénio a. C., as histórias de Abraão, Isaac, Jacob-Israel e seus descendentes (Gn 12-50) e a épica libertação do Egipto (Ex 1-15) preservam muito provavelmente o ‘eco’ de figuras e eventos mais remotos, mas subtraem-nos os contornos históricos concretos em nome da reelaboração que as transformou em relato fundacional”. Por exemplo, no relato sobre o papel desempenhado por José junto de um Faraó, não encontramos confirmação na história das fontes egípcias. Após o Êxodo do Egipto, encontramos a emergência do monoteísmo, a importância de Yahvé – sendo que o seu culto exclusivo e a proclamação da unicidade divina resultaram de um longo processo histórico que não culminou senão depois do exílio. No caso do surgimento de Israel e da terra de Canaã, sentimos o contraste entre os livros de Josué e dos Juízes e a procura de um síntese harmoniosa. No caso da controvérsia sobre o início da monarquia (século X a. C.) e sobre as figuras de Saul, David e Salomão podemos, por isso, explorar os limites da reconstrução histórica, perante a dificuldade de emitir juízos seguros sobre esse tempo. Perante a “história normal” dos reinos de Israel e Judá, há condições para uma maior certeza histórica. E assim os escritores sagrados construiram narrativas nas quais os acontecimentos históricos são pretexto para mostrar a relevância teológica do que acontece na História.

 

A GÉNESE DO JUDAÍSMO

O Reino de Judá chegará ao fim dos seus dias pela captura da cidade de Jerusalém em 586 a. C. e pelo início do exílio em Babilónia. É o livro de Jeremias que nos dá o ambiente no interior da cidade sitiada e os sinais de resistência. Nabucodonosor ordena destruição da cidade. Mas ao sucesso segue-se a queda do império babilónico, a que sucede a conquista do rei Ciro da Pérsia, que muda a sorte dos exilados na Babilónia. O período persa permite o regresso do povo e a reconstrução do Templo de Jerusalém, a reedificação das muralhas de Jerusalém e o início da escrita da Bíblia ou proclamação da Torá – o Pentateuco, considerado como lei local. O nome “judeu” ganha, assim, dois significados – ou designa o indivíduo natural ou com uma ligação histórica ao reino de Judá ou à Judeia, ou corresponde a quem professa a religião judaica. Os séculos VI e V a. C. são o período charneira para o surgimento da Bíblia e assim se passa do Yahvismo (o povo escolhido por Deus) para o judaísmo, baseado no “código dos códigos” da cultura ocidental, sendo a Bíblia, motivada pelo trauma do exílio. E deste modo o “livro”, mais do que a “terra”, adquire o estatuto de pátria e de “religião”. E o período persa e o período helenístico, sob o domínio macedónio, abriram um novo horizonte que será, nos séculos seguintes, enriquecido pelo cristianismo…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença