Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Luís Filipe Thomaz apresentou no Museu de Arte Antiga o seu livro Nanban-Jin – Os Portugueses no Japão. A curiosidade está no olhar de muitos. Simbolicamente junto da mesa onde se vai falar do livro, estão reproduzidos dois biombos Nanban do Museu onde se encontram imagens cheias de humor e realismo, nas quais os portugueses, acabados de chegar ao país do sol nascente, são representados de um modo caricatural, com os narizes longos, ora em exercícios rocambolescos, ora em equilíbrios impossíveis, algumas pessoas de cor negra, indumentárias largas e circunspectas, óculos para o sol, um burro, um elefante… Os recém-chegados causam espanto nas atitudes, nos costumes e nas artes de que são capazes. E Luís Filipe Thomaz diz-nos: “os Portugueses de Quinhentos nem eram, como por vezes se tem dito, candidamente admirativos de tudo quanto achavam, por esse mundão de Cristo, como se fossem desprovidos de qualquer escala de valores; nem, como em contrapartida se tem insinuado, etnocêntricos, fechados às demais civilizações e fanaticamente alérgicos, fechados a quanto não fosse cristão. Do Brasil, ainda neolítico, à China de civilização requintada e milenar, passando pela África bárbara e pela Índia mística, foram, aliás, tantos e tão diversos os povos com que lidaram que dificilmente poderiam deles colher uma impressão uniforme. De uma maneira geral, admiraram nas outras gentes os traços que mais os surpreenderam e as qualidades que mais em sintonia lhes pareceram com os seus próprios ideais e valores: no Brasil e na África a simplicidade ingénua dos nativos, na Pérsia a formosura das mulheres na Ásia do Sul e Sueste a piedade dos ascetas búdicos, na China a perfeição da máquina administrativa. Foram sem dúvida os japões o povo que globalmente considerado, lhes mereceu maior admiração”. E, em contrapartida, temos de lembrar, como o faz o prefaciador da obra João Paulo Oliveira e Costa, “no Japão, os portugueses são famosos e queridos porque os seus antepassados foram responsáveis pela descoberta do mundo pelos nipónicos”. E num mundo de pequenas singularidades luso-nipónicas – a introdução da espingarda pelos portugueses resolveu uma longa guerra civil e possibilitou a centralização política, enquanto foram os portugueses que introduziram a religião cristã no país, sob o impulso de S. Francisco Xavier, merecendo destaque a experiência dos cristãos escondidos, exemplo raro de permanência na fé.
O livro inclui duas partes, uma primeira, de Sagres a Tanegaxima, e uma segunda sobre os portugueses no Japão. Na primeira, temos a lenta aproximação de dois extremos, começando pela pré-história da expansão lusitana, juntando os ingredientes da Reconquista e da Cruzada, incluindo os primeiros passos da aventura expansionista, a política ultramarina de pendor mercantilista de D. João II, a dobragem do Cabo, o imperialismo messiânico manuelino, a criação do Estado Português da Índia, a queda de Albuquerque, o governo frouxo de Soares de Albergaria abriram campo à mercancia, o golpe de 1518 e a nomeação de Diogo Lopes Sequeira ainda deram esperanças ao imperialismo, mas a consideração da China determinou o canto do cisne do imperialismo manuelino, antecipando as mudanças do reinado de D. João III. Estamos, assim, perante um processo complexo e longuíssimo da história da Humanidade, que na expressão do autor não deve ser confundida com a história do colonialismo. De facto, desde o século XVI, o império evoluiu de acordo com os estímulos locais e regionais mais do que por via de um planeamento central. Luís Filipe Tomaz assume um modelo interpretativo moderno de cariz globalizante, assente na complexidade, livre das amarras de quem não se dá conta de que o mundo não se explica apenas por uma visão eurocêntrica baseada na lógica colonialista dos descobrimentos. Um apaixonante modo de compreender a História sem preconceito.
Tanta gente que foi morta ao longo dos séculos, vítima do ódio e de interesses económicos, políticos, geoestratégicos, imperativos de monopólio religioso, e em nome de Deus!... Haverá coisa mais abjecta e absurda? É evidente que o deus em nome do qual arbitrariamente se torturou, se assassinou, se vandalizou, não existe. Não passa de um ídolo execrável, que serviu de legitimação a interesses brutais, sujos, selváticos. Escusado será dizer que esse deus idolátrico produz e tem de produzir inevitavelmente ateísmo. Matar, mandar matar está nos antípodas do santo nome do Deus vivo.
E hoje essa tragédia continua. E porque entre nós não se fala disso, quero (entre parêntesis) apresentar alguns números sobre a perseguição dos cristãos, sabendo-se que o cristianismo é hoje a religião mais perseguida no mundo. Não é a única, evidentemente — pense-se, por exemplo, nos rohinga, adeptos da religião muçulmana e na sua perseguição brutal em Myanmar, país maioritariamente budista. Segundo a ONG “Puertas Abiertas”, no seu relatório de 2024 referente à perseguição dos cristãos, acabado de ser publicado, entre 1 de Outubro de 2022 e 30 de Setembro de 2023, 14.766 lugares de culto foram destruídos ou encerrados e 4.998 cristãos foram assassinados. Um em cada 7 cristãos é perseguido no mundo — um em cada 5 na África, 2 em cada 5 na Ásia, um em cada 16 na América Latina. A Coreia do Norte voltou a encabeçar o ranking negativo de perseguição mais severa, seguindo-se Somália, Líbia, Eritreia, Iémen, Nigéria, Paquistão, Sudão, Irão e Afeganistão, ocupando Índia e China os lugares 11 e 19, respectivamente. Segundo o Relatório, são 57 os países onde os cristãos enfrentam uma perseguição severa...
Voltando à temática das religiões, constatamos que a corrupção do óptimo é péssima. A religião, que é, pode e deve ser a pátria da expansão in-finita do ser humano, da libertação, da dignidade e dignificação de todos, do amor, da alegria, da paz, do sentido último, também foi, é e pode tornar-se o espaço da loucura toda, à solta. Na religião, houve e há o melhor e o pior: nela, aconteceu e acontece a subida ao céu do humano heróico até ao divino; nela, desceu-se até ao inferno da desumanidade diabólica. Neste início ainda do século XXI, com a confusão e o medo instalados, reflectir sobre esta realidade é imprescindível.
O que durante tanto tempo Hans Küng, recentemente falecido, sublinhou — a necessidade do diálogo inter-religioso para ser possível a paz no mundo — é cada vez mais urgente. Entende-se mais claramente do que nunca que a obra do famoso teólogo se oriente pelo lema: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial."
Este diálogo assenta em quatro pilares fundamentais. Primeiro: todas as religiões, desde que não só não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o afirmem e promovam, são reveladas e verdadeiras. Segundo: as religiões são manifestações e encarnações da relação de Deus com o Homem e do Homem com Deus. Todas são relativas, no duplo sentido de relativo, dito já no étimo latino: relativas, na medida em que estão inevitavelmente inseridas num determinado contexto histórico-social, e relativas, no sentido de que estão referidas, isto é, em relação com o Absoluto, mas elas próprias não são o Absoluto. Precisamente este segundo pilar exige o terceiro: se não são o Absoluto, embora referidas a ele, então os homens e mulheres religiosos devem dialogar para melhor se aproximarem desse Mistério divino já presente em cada religião, mas sempre transcendente a cada uma e a todas. Não se trata, portanto, de mera tolerância religiosa, que pressupõe ainda uma superioridade de quem tolera o outro considerado inferior. É o próprio Mistério infinito de Deus que exige o diálogo para que os crentes se enriqueçam mutuamente num sempre a caminho do Mistério que se revela e ao mesmo tempo se oculta, e do qual o ser humano não pode apoderar-se nem dominar. Deste diálogo fazem parte os ateus, pois são eles que permanentemente previnem os crentes contra a idolatria e a desumanidade. Finalmente — é o quarto pilar —, se Deus é o Mistério que tudo penetra e a todos envolve, então o respeito pelo outro crente, pelo outro homem, por todas as criaturas, não é algo de acrescentado à fé religiosa, mas exigido pelo próprio dinamismo dessa fé. Acreditar em Deus implica em si mesmo acreditar no ser humano, em todo o ser humano.
E uma última observação, essencial. Não haverá paz entre as religiões e com as religiões, sem dois pressupostos fundamentais, e, aqui, peço desculpa por fazer um apelo nomeadamente ao islão, porque aquilo que custou tanto a perceber e concretizar na e pela Igreja católica, vai ser muito mais difícil para o Islão. Primeiro: condição fundamental é a leitura histórico-crítica dos textos sagrados, que não admitem de modo nenhum uma leitura literal. Segundo: a laicidade do Estado, a separação do Estado e da(s) Igreja(s), o Estado não tem nenhuma religião, para poder salvaguardar a liberdade de todos, o que não significa de modo nenhum laicismo, que seria a pretensão de remeter a religião só para o espaço privado, como se ela não tivesse lugar no espaço público.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 27 de janeiro de 2024
«Noites de Peste» de Orhan Pamuk é uma narrativa histórica que põe na ordem do dia temas atuais e que nos permitem refletir sobre o futuro.
UMA PESTE ANTIGA Orhan Pamuk começou a escrever o seu último romance antes da pandemia, mas estava longe de esperar que o tema pudesse tornar-se tão premonitório. A narrativa de Noites de Peste (Presença, tradução de Marta Mendonça) refere-se aos acontecimentos que tiveram lugar na ilha imaginária de Mingheria no Mediterrâneo Oriental durante o surto de peste de 1901. A narradora que o romancista criou, cuja identidade descobriremos mais tarde, propôs-se fazer a introdução editorial relativamente a cento e treze cartas que a princesa Pakize, terceira filha do sultão Murad V, escreveu a sua irmã mais velha, a sultana Hatice, de 1901 a 1913. Temos, assim, a construção de um enredo, no qual a imaginação permite apresentar uma interpretação verosímil sobre a aceleração dos vários sinais de decomposição de um império, que coincidem com a ocorrência de uma epidemia de peste. Ninguém teria sido capaz de abordar o tema com tanta perspicácia e atenção à diversidade de pormenores como a princesa Pakize, que nos apresenta relatos espirituosos e cheios de vida. E o romancista idealiza um lugar fictício, bem definido, e assume a pele de uma narradora, que compreende não só a perspetiva feminina da filha do sultão, mas também a sua cultura, numa evolução surpreendente, reveladora de um domínio seguro da construção literária. A protagonista e “autora dessas cartas raramente saiu da ala residencial do Palácio do Governador e só descobriu o que estava a acontecer na cidade por meio das histórias contadas pelo seu marido médico!” Hoje podemos avaliar a dimensão e características desse confinamento, aqui traduzido nas quarentenas, que uma criatividade fértil permite dar à protagonista e ao seu marido, uma princesa e um cientista, um papel histórico literariamente muito rico. A narradora, que nos transmite a leitura dos acontecimentos da ilha de Mingheria, revela-nos antes do mais, que essa era a sua terra-natal e descobriremos depois que a sua ligação ao que nos transmite é muito mais intensa do que à primeira vista pode parecer. Se as outras pessoas viam a ilha como um lugar mítico e lendário, para ela “a princesa Pakize era uma heroína típica de um conto de fadas”. E assim Ohran Pamuk, fazendo jus ao Prémio Nobel que ganhou em 2006, demonstra inequivocamente como “a arte do romance reside na capacidade de contarmos as nossas próprias histórias como se pertencessem a outas pessoas e de contarmos as histórias alheias como se fossem as nossas”…
UMA METÁFORA No início do século XX, um navio a vapor partia de Istambul em direção a sul, rumo a Alexandria, passando pela ilha de Rodes ao fim de quatro dias de viagem, e entre águas turbulentas, avistava, passado meio dia, as delicadas torres do castelo de Arkaz, que identificam Mingheria, descrita por Homero na Ilíada como “uma esmeralda feita de terra rosada”. O romance é marcado pela sequência da chegada à ilha da embarcação real Azizye, tendo a bordo a princesa Pakize, filha de um sultão deposto, acompanhada do marido e príncipe consorte doutor Nuri e de Bonkowski Paxá, químico real, que teria um fim dramático Cada qual vai desempenhar uma missão. A catástrofe que se aproxima não se limita, porém, à peste bubónica, avassaladora que grassa na ilha. O Império Otomano está em crise, e a independência do 29º Estado da Grande Porta é evidente sinal dessa tensão, que o romancista descreve com minúcia, não só nas diversas peripécias públicas, mas nos sentimentos expressos pelos protagonistas e em especial pela jovem princesa, perante o evoluir dos eventos.
Na sucessão de acontecimentos trágicos, a princesa é chamada a desempenhar um papel muito relevante e o jornal parisiense Le Figaro noticia a declaração de independência do pequeno estado otomano. Os nacionalistas de Mingheria escolhem como rainha a princesa, que assim se vê no centro dos acontecimentos, sem que o pudesse prever. A tensão entre a princesa e o seu marido médico, com funções importantes no combate à peste, não deixa de se fazer sentir. Mas com o surto de peste ativo e as comunicações com o novo governo cortadas, a ilha continuou sob o bloqueio dos navios britânicos, franceses e russos. A princesa alimenta sentimentos contraditórios, já que a instabilidade psicológica acompanha a angústia geral pela situação da ilha. Mas a nova rainha alimenta a ilusão de que pode estabelecer a coesão e a confiança entre o povo da ilha nesse momento de grande dificuldade. É uma nova realidade que se constrói. E, apesar de tudo, os sinais de abrandamento da peste fazem-se sentir, a ponto de no dia 16 de outubro de 1901 não ter havido uma única morte de peste na ilha.
“As andorinhas e os estorninhos que, segundo a princesa Pakize, sabiam que o surto tinha acabado esvoaçavam de um lado para o outro, com chilreios empolgados e cheios de vida. Havia imensas altercações entre as pessoas que regressavam aos seus lares e as pessoas que os tinham ocupado ilegalmente na sua ausência, ou entre comerciantes furiosos cujas lojas tinham sido pilhadas e os aldeãos que se tinham instalado na cidade perante a peste, e não havia polícias nem soldados no Regimento de Quarentena suficientes para sequer tentarem intervir. Contudo, nenhum desses problemas conseguia ofuscar o sentimento de euforia que devolvera a capacidade de sorrir às pessoas…”. Contudo, apesar do entusiasmo, Mingheria deveria pertencer aos mingherianos. Mazhar Effendi assumiria o poder. E os tempos de liberdade chegavam ao fim. Regressada a normalidade, a princesa, tornada momentaneamente rainha por razões fortuitas e o Dr. Nuri Bei, príncipe consorte, compreenderam como a peste se juntara a uma revolta política, de que eram meros instrumentos. Afinal, tinham chegado à ilha a caminho da China, numa missão especial determinada pelo sultão Abdul Hamid II, para onde agora prosseguiriam, com seis meses de atraso, fixando-se em Hong Kong, onde os ingleses chegaram a prometer-lhes “oferecer” o reino de Albânia, que não aceitaram por falta do domínio da língua albanesa.
Em outubro de 1912, a Itália reconheceria oficialmente a independência de Mingheria, mas tratou-se de uma espécie de semi-independência, pois a bandeira italiana passou a partilhar com a bandeira mingheriana a posição cimeira no mastro do Palácio do Governador. E descobre-se que a autora do estudo que serviu de base ao romance era a bisneta da princesa Pakize e do príncipe consorte. A história de Mingheria é simbolicamente a história do fim do império otomano e de uma espécie de utopia sobre o futuro de uma ilha perdida, pretensa candidata à União Europeia, numa lógica romanesca. A bandeira otomana foi substituída pela mingheriana de 1901 a 1912; de 1912 a 1943 houve a partilha com a italiana; de 1943 a 1945, ondeou a cruz suástica alemã; entre 1945 e 1947 o Union Jack britânico tomou o lugar em nome dos vencedores da Grande Guerra, regressando a bandeira mingheriana, como símbolo da vitória da literatura e do sonho… E ao longo do romance sente-se a explicação de muitas interrogações que enchem o nosso tempo de incerteza e de incompreensão.
Ouvia o mar – quando o sono demorava – espalhando-se em humidade salgada em todo o ar da casa, até aos lençóis da cama: como em tudo na casa, há mar na cama De manhã auscultarei a bruma, a promessa do sol auscultarei as vagas, o seu porte, porque eu amo o poder do mar Atravessaremos o pinhal, o forte cheiro das raízes molhadas, a áspera proximidade da vegetação de duna – chorão, camarinhas, lírios de areia e as suas gotículas de água Iremos comprar pão à Serra, tomar café e ler o jornal entre moscardos Ah mas ao fim da tarde, ao pôr do sol, é que o cheiro da duna rescendia de uma tal vida… ! Depois das travessias do sol e das nortadas O que eu não sabia… (meu Deus eu não sabia nada)
in Lugares, 2010
West Coast
I could hear the sea – when sleep took its time – spreading in salty humidity all over the house, even onto the bed sheets: as with everything else in the house, there’s sea in the bed In the morning I’ll see about the mist, the promise of sun I’ll check out the waves, their height, for I love the power of the sea We’ll walk across the pinewood, strong smell of wet roots, rugged nearness of the dune’s vegetation – weeping willow, bear berry shrubs, sand lilies, their droplets of water We’ll buy bread up on the Serra, have coffee and read the paper with the flies Ah, but when afternoon ends, when the sun sets and the dune’s scent springs into such life…! After striding the sun and the north wind So much I didn’t know… (Good God I knew nothing)
Estou novamente em Paris, conto desta vez com a companhia do Alberto, que veio a negócios. Gosto dele, da sua grande alegria de viver, como dessa melancolia tão portuguesa que sempre me lembra o cair da tarde em dias sem vento, no fim do Verão. Falei-lhe de ti, de como me habitas o coração, com a insistência que tão bem diz esse verso do Rilke: "Wie soll Ich meine Seele halten dass Sie nicht an deine rührt?"E ele logo veio com um sentimento português: "Saudade...sabes o que é a saudade? Escuta:" Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe... ...Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, pela ventura, a que me fez ser leda. Mas depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha." Assim escreveu Bernardim Ribeiro, no século XVI. Já no século XIII, reza uma crónica que um frade dominicano, de regresso ao seu convento no alto de Montejunto, se lembrou da água pura que ali o saciara e "sentiu grande soledade daquela água"...É isso a saudade: é estar sozinho de alguém, e a solidão só se sente quando uma presença não nos larga." Sejamos ambos portugueses, pelo tempo deste segredo que te digo: sinto grande saudade de ti, porque me habitas. Pensossinto-te fora do tempo, do lugar e da memória. És. Assim descubro que te amo essencialmente. Não te pensossinto em função da beleza, da idade, do teu modo de ser ou da tua história. Mas tão só pela ternura que me descobriste imensa e me inunda. Para mim és, todos os dias, o amor que desperta, a alegria intensa e inesperada da revelação. "É no invisível que se produz o essencial", disse Jacques Maritain sobre a sua relação com Raïssa, mulher da sua vida, mesmo depois de morta, com quem se casou aos vinte anos e se converteu ao catolicismo. Com quem viveu sempre uma intimidade em que se confundiam, mesmo - ainda ou talvez mais - depois de se terem feito voto de castidade. Penso muitas vezes neles, quando me lembro de nós e deste amor a que a renúncia dá uma dimensão intangível. Mas tenho pensado nos Maritain, também pela necessidade que senti de algum regresso a S. Tomás de Aquino. Quem os acompanhou na escalada espiritual e intelectual da conversão foi um dominicano, francês e monárquico, o padre Clérissac, que mereceu de Raïssa esta referência tão sentida e tão bonita: "Caiu sobre nós, e recebemo-lo - o Jacques e eu - o olhar estrelado e penetrante de dois olhos profundos, cheios de segredo e de conhecimento, e diante desses olhos nos sentimos totalmente novos e totalmente ignorantes". Todos os dias peço a Deus que refaça em mim essa alegria de me sentir novo por me saber ignorante e querer aprender. Seguindo o conselho do padre Clérissac quando sugeriu a Summa Theologica para aproximação racional dos Maritain à fé que procuravam: "Não andemos mais depressa do que Deus. É da nossa sede e do nosso vazio que Ele precisa, não da nossa plenitude". Curiosamente, é a judia Raïssa que entrará primeiro por S.Tomás: "Esta primeira leitura da Suma Teológica foi para mim um dom muito puro. Recebi, uma vez por todas, a certeza das verdades primeiras acerca da inteligência, e a alegria de ver esta suficientemente forte para conduzir até ao seio da noite estrelada da fé os princípios da razão. Recebia o que podia receber segundo a minha fraca capacidade, mas com plenitude. Os problemas tinham desaparecido - como acontece no tempo da felicidade - para reaparecerem mais tarde. Mas mais tarde não me caberia, a mim, aplicar-me, mas ao Jacques, filósofo por vocação...Recordo o meu primeiro encontro com o casal e Vera, a irmã de Raïssa, que compunha aquela comunidade monástico-familiar a três. Tinha eu vinte e poucos anos, e embasbacava perante aquela gente cheia de rigor tomista e misticismo religioso, mas que acompanhava Satie e Stravinsky, Diaghilev e Rouault, e era amiga de Cocteau e Chagal. Voltei a vê-los, quase trinta anos depois, já Jacques Maritain terminara a sua missão de embaixador de França junto da Santa Sé, em Paris, precisamente com o Stravinsky e o Cocteau, por ocasião dum Oedipus Rex no Théâtre des Champs Élysées. A Raïssa, como sabes, era de origem russa, Oumançoff era o seu apelido de solteira. Quando, muito novinha ainda, iniciara os seus estudos em Mariopol, junto ao Mar Negro, interessou-se muito pela literatura russa. Foi ela quem, pela primeira vez, me falou de Pushkin. E, por ser melómana, me referiu as óperas russas cujos libretos se inspiraram em obras do grande poeta, aliás com os mesmos títulos: "A Dama de Espadas" e "Eugénio Oneguin" de Tchaikovsky, "Boris Goudonov" de Mussorgsky. Através de conhecidos do Alberto, pudémos assistir a ensaios desta, na Salle Wagram, sob a direção de André Cluytens, com o Boris Christoff e o coro dos seus compatriotas búlgaros da Ópera Nacional de Sofia. Como sabes, esta ópera tem seis versões musicais: duas do próprio compositor, duas do Rimsky-Korsakoff, uma do Shostakovitch e ainda outra arranjada por dois americanos para o MET. Ouvimos a segunda versão do Rimsky, que é a mais repetida. Voltei a lembrar-me de Shakespeare - que Pushkin muito admirava - não só pelo modo de composição do drama em sucessivos quadros (ou cenas) como em "Macbeth", mas pela história contada que, mesmo com fundamento na "História do Império Russo" de Nikolai Karamzin, é muito semelhante à de "King Richard the Third" do dramaturgo inglês. Lembras-te de termos assistido, em Londres, a um inesquecível Ricardo III pelo Lawrence Oliver? Claro que te lembras, porque é mesmo inesquecível! Deixo-te esse monólogo do rei que vai morrer: "What do I fear? Myself? There´s none else by. / Richard loves Richard; that is, I am I. / Is there a murderer here? No - yes, I am. Then fly. What, from myself? Great reason why - / Lest I revenge. What, myself upon myself!”. Continuo, mas traduzindo, sem cuidados de rimas, métricas ou tónicas. Só pela força do texto, porque, fraco embora, sei que a maravilha do espírito é não ter dono. "Com pena me amo. Por que razão? Por algum bem que eu mesmo a mim me tenha feito? Ai, não! Infelizmente, antes mais me detesto pelos odiosos feitos que eu mesmo cometi! Sou um vilão; e ainda minto, não sou. Tolo, de ti falas bem. Tolo, não te vanglories. A minha consciência tinha milhares de línguas diversas, e cada língua em si traz ditos diferentes, e cada dito me condena como vilão. Perjúrio, perjúrio ao mais alto grau; assassínio, impiedoso assassínio, ao nível mais sujo; todos pecado, todos a cada passo cometidos, juntos na barreira, todos gritando "Culpado! culpado! Desespero. Nenhuma criatura me ama; e se morrer nenhuma alma terá piedade de mim: e porque haveriam de ter, já que eu mesmo em mim não tenho piedade para mim?". Boris Goudonov, no fim, ainda suplica perdão... Talvez por virtude desse cristianismo ortodoxo que tanto acredita na intercessão do povo fiel, dos monges, dos santos e dos anjos. Aqui tens, minha Renúncia de mim, nascida, como Vénus, deusa do amor, do mar de contradições e paradoxos da vida, a diferença entre tormento e sofrimento: tormento é tormenta, tempestade, revolução, morte, incomunicabilidade; o sofrimento é paixão e compaixão, aceita-se como semente que germina. Aqui, no Georges V, fazem-me sempre o favor de instalarem um gira-discos no meu quarto. Talvez adormeça, mas vou ouvindo a "Paixão segundo S. Mateus" de Bach. Sei que dormirei em paz, porque, no fundo do meu coração, sempre trémulo e fiel, ficarei escutando esse paradoxo inicial da nossa condição humana. E que Deus nos veja, pois mais não posso." Confesso que hesitei em publicar esta carta de Camilo Maria. Outras tenho traduzidas, e também não sei...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 30.08.13 neste blogue.
159. O NÃO PODER E O SUPERPODER DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA
Rareia alguém querer que os seus filhos sustentem permanentemente as suas vidas como escritores, desenhadores, pintores, escultores, compositores, músicos, fotógrafos, ilustradores, através do cinema, do teatro, da dança, da moda, de experiências artísticas que possibilitem misturar imagens, movimentos, sons, textos, pela via digital ou computacional.
Quase ninguém, ou “ninguém”, quer filhos artistas ou criadores artísticos, porque há a perceção, na sociedade, que a criação artística e as artes em geral não dão, aos seus mentores e protagonistas, estabilidade e sustento, mas sim carência, incerteza, insegurança.
Mesmo que únicos, geniais ou dotados de uma singularidade diferenciadora, essa genialidade deve ser canalizada para áreas mais estáveis, portadoras de conforto e de uma garantia de sucesso em termos económicos e sociais.
Querem-se filhos economistas, engenheiros, gestores, informáticos, juristas ou médicos, mas não profissionais do âmbito e domínio artístico, mesmo que exaltemos grandes escritores, poetas, músicos, pintores, escultores, realizadores, atores, começando por aqueles que podemos fruir, ler ou ouvir nas nossas casas.
No entanto, todos reconhecemos que os criadores artísticos são uma grande parte das referências do mundo em que vivemos, estimulando e escrutinando o sentido crítico das coisas, inovando e superando a nossa condição humana, enriquecendo a cultura com o belo, criações e ideias novas, numa aventura sem fim.
E como referências do nosso espaço existencial podem definir a História, criar um registo ou deixar um testemunho para o futuro. Para que o futuro o possa ler, ouvir, reproduzir ou ver.
Se a História fala de poderosos, que tiveram poder sobre milhares ou milhões de pessoas enquanto vivos, ao invés do pouco poder que a quase totalidade dos criadores artísticos tiveram em vida, após a morte de todos sobrevive apenas o testemunho e o registo que ficou como superpoder dos escritores, pintores, escultores, músicos, cineastas, entre outros, como classificação e memória coletiva de uma época e civilização, como o exemplifica a “Guerra e Paz”, de Tolstoi, obra que melhor retrata a invasão da Rússia por Napoleão.
Mesmo quando perseguidos ou assassinados em vida, muitos desses criadores sobreviveram e sobrevivem, com o legado da sua obra, após a morte, através de um poder (ou superpoder) que contrasta com o pouco ou nenhum que tiveram enquanto vivos.
Os lugares de pão amassado pelas mãos das gentes, o lavrar, cavar, semear, podar, a debulha, a empa, o diálogo dos ofícios no uso das malgas, dos lagares, das eiras, dos alambiques, do carro de boi, do arado, da grade, do malho, da candeia, do chocalho, o gado e as capoeiras de campo aberto, tudo se esfumou como se nunca tivesse existido aquela vida e os instrumentos de a fazer naqueles lugares.
A relação entre as pessoas da lavoura, naqueles locais e naquelas naturezas, deveria ter-nos levado a compreender corpo e laboratórios de sentires e de fazeres diferentes que, em verdadeiras equipas multidisciplinares, executavam soluções procuradas com imaginação, criatividade e solidariedade.
As várias intimidades da vida, viviam-se de formas distintas de tudo o que são as experiências urbanas, pois que ali o vento sempre foi mais igual ao vento, e as abas das terras, corpos carnais dos riachos, por lá corriam ao caminho dos moinhos de um deus.
A razão das bebedeiras, das ladras dos cães, dos ovos das galinhas, dos esgares dos partos, do partir dos filhos para guerras ou para os estudos, pois que a mão do padre ajudara, tudo eram feições desta vida sofrida entre goelas que afinal a deixavam num lado de cá de tudo, numa cena sempiterna.
Era tão importante termos entendido a tempo, o quanto o beijo do milho-rei já estava a ser obrigado a transformar-se num exercício de despedida dos encontros de amor de então; o quanto as expectativas das sensualidades das vindimas, das constituições das famílias futuras, dentro daquelas arenas da vida, já se procediam em ausências por detrás das casas transumantes de um frio.
Os últimos viveres destas populações - às quais nunca se prestou a atenção de os ajudar a um conforto mínimo na labuta do que nos alimentava -, são hoje suportados em solidões absolutamente incompreendidas e consequentemente cruéis, já que nunca se interpretou sequer a razão das hortas serem o lugar do semear, do crescer e do regar dos mimos.
Mesmo quando os filhos das gerações de aldeões de então, os trazem a viver nas suas casas em condomínio na urbe, a ausência da comunidade do leite, o ATL que substitui o brincar dos netos nos campos de tapetes de carqueja, é algo que só conduz a uma obrigatória e definitiva infelicidade.
Nascer, crescer e morrer junto à Mãe-Natureza criou-lhes rotinas no acender do fogo na terra-chão das cozinhas, quando todos eram a infância uns dos outros, e por esses laços se seguravam por debaixo dos cobertores de papa, os colchões de carolas de milho que muito arranhavam o corpo, e até muitas substâncias da ideia-esperança.
Por ali, e daquele modo, amargamente duro, se criou conhecimento primordial, um conhecimento que não reclamou direitos, mas que era o participante insubstituível a que sobrevivêssemos nós, no nosso caminho.
E afinal, abandonámo-los, isolámo-los e aceitamos que eles, com humildade selada, se resignassem nas suas tremendas fragilidades, à sua sorte, tão inclusiva no desamparo.
Ir embora destes lugares começou a ser a transformação de uma extinção numa outra realidade.
As visitas de tantas músicas nas festas das aldeias com os DJ em cima das camionetas, começaram a interessar às gerações do êxodo que só regressavam no agosto.
A nova realidade surpreendeu os fazedores de alimentos do mundo de então, surpreendeu a comunidade, surpreendeu as pedras, as serras, os rios, e sobrepôs-se numa aventura sem respeito, aos seus diálogos com a vida.
O despovoamento de muitos dos lugares a que nos referimos, é agora algo colmatado - sobretudo depois da pandemia – pelo descobrir de vontades de uma vida mais simples e mais natura, mas definitivamente distinta da que temos estado a referenciar.
Estamos a escrever do lado da incompreensão a uma existência que tinha um objetivo, uma existência surpresa, corpo, unidade, luta, rugas e maçãs de rosto rosadas pelo dom do percorrer amor e outras verdades.
Escrevemos também do lado das ruínas de todas as casas mortuárias, afogadas bem fundo pelas barragens, traços exaltados da nossa evolução.
A primeira visita de Sophia de Mello Breyner a Teixeira de Pascoaes possui um sentido mítico. Ocorreu doze anos antes da morte do cenobita do Marão. Partindo de Amarante a cavalo, rumou a São João de Gatão, até à casa misteriosa e plena, que muitos de nós conhecemos. Contudo, Sophia perdeu-se entre nevoeiros nos “campos, caminhos e atalhos”, até que finalmente lhe apareceu a casa, de modo surpreendente, “grande, antiga, maravilhosa e branca”. E o espanto deveu-se ao facto de ter lá chegado pelo “lado de trás da casa”. A destemida jovem de então, esperava, como qualquer viajante comum, chegar à entrada brasonada do solar tão celebrado dos Teixeira de Vasconcelos, mas assim não aconteceu. O próprio Pascoaes ao recebê-la surpreendeu-se: “Por este caminho nunca chegou ninguém”. A literatura e o sonho misturam-se, naturalmente. Paisagem e poema tornam-se uma mesma realidade – como tantas vezes afirmou Gonçalo Ribeiro Telles, o paisagista por excelência. “Tudo naquele lugar era igual à poesia de Pascoaes”. E Sophia viu naquele surpreendente desvio um caminho que correspondia exatamente à leitura de um poema. Como diz Carlos Mendes de Sousa: “os textos sobre os poetas e a poesia estão muito próximos dos contos que escreveu, concretamente pelo efeito de surpresa e pela força das imagens, como a espantosa chegada a cavalo à casa de Pascoaes”. Isto, para não esquecer a evocação da descoberta do amigo Ruy Cinatti, a dizer versos sobre a beira de um tanque…
Sophia é um exemplo de amor à língua e à cultura, como essências de uma autêntica educação para as pessoas. Como candidata a deputada, nas campanhas eleitorais, em vez de discursos sobre a democracia e a liberdade, preferia ler poemas – “porque para mim a poesia é a liberdade”. E assim compreendia as pessoas simples do campo e os mais exigentes. “Havia sempre um silêncio especial, mais profundo e mais atento para ouvir poesia”. Por isso, afirmou na revista “Colóquio” que “a poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira”. Um dia, convidei Sophia para inaugurar a escola que tem o seu nome em Carnaxide. Respondeu-me, com a amabilidade habitual e a fidalguia que sempre lhe conhecemos, que só aceitaria na condição de alunos e professores da escola prepararem uma representação de cor do conto “A Menina do Mar”. Não calculam a alegria que senti da parte dos membros da comunidade escolar ao conhecerem a disponibilidade da poeta, e poucos dias depois confirmaram que tudo estava combinado e acertado. Mas, cética, Sophia confessou-me: “Dizem-me que se desaprendeu o método de decorar nas escolas, esquecendo-se, etimologicamente, o que é aprender com o coração”. Veio o dia aprazado, entusiasmo total, alunas e alunos, professoras e professores, famílias, grupos cantando mornas e coladeiras, tudo em festa. E a homenageada segredou-me: “Recebem-me como uma rainha” … A inauguração consistiu nesse entusiasmo. No ginásio, em vez de discursos, apenas a presença dos jovens – e de um modo perfeito, numa adaptação adequada, ouvimos, de cor, sem uma dúvida ou hesitação: “Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas”. Os jovens intérpretes figuravam o enredo. Nadavam e riam o polvo, o caranguejo, o peixe e a menina. Sophia estava surpreendida e feliz. E quando a protagonista disse “Agora a tua terra é o mar” e quando, no epílogo, o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, as palmas e os aplausos irromperam espontâneos e Sophia levantou-se com alegria juvenil: “Vejo que a língua e as escolas estão vivas”. Valera a pena o desafio. A educação precisa sempre da liberdade e da exigência.
Olhamos e perguntamos: “Que anda esta gente toda a fazer?" A resposta é simples, sempre a mesma: "A viver.” É isso: a viver.
O problema é este: são tantas as vezes em que se não dá por isso: o milagre que é viver! Assim, numa sociedade na qual o perigo maior é a alienação - viver no fora de si -, quando a política se tornou um espectáculo tantas vezes indecoroso, quando a mentira e a corrupção imperam, quando Deus foi substituído pelo Dinheiro e o mundo se tornou globalmente perigoso, com a Terceira Guerra Mundial em curso, embora ainda só “aos pedaços”, como diz Francisco, é essencial parar, fazer uma pausa. Porquê e para quê? Como disse Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo.”
E lembrei-me do meu querido amigo jesuíta Juan Masiá, professor de Filosofia em Tóquio, e de um dos seus livros, precisamente com o título: Vivir. Espiritualidad en pequeñas dosis. "Deixo-me acariciar pela brisa, saboreio a experiência de estar vivo, sentir palpitar a minha vida. E penso: viver, que maravilha e que enigma! Paro em silêncio a saborear esta vivência. Estou vivo, mas a minha vida supera-me: não é só minha nem a controlo. Viver é ser vivificado pela Vida que nos faz viver." A Vida vive-te, vive na Vida!
E aí estão as tarefas para a espiritualidade: dar-se conta do viver; agradecer por a Vida nos fazer viver, nos vivificar: vivemos graças à Fonte da Vida; darmos vida uns aos outros, na compaixão e na ajuda mútua para nos libertarmos. “O que é o mar? O que permite o peixe nadar. O que é o ar? O que permite o pássaro voar. O que é o Nada e o Vazio? A Vida que te faz viver. Vejo a ervita entre as gretas do pavimento. Donde lhe virá a força para abrir passagem entre o asfalto? Palpo aqui uma Presença latente. Não sei quem é. Mas brotam lágrimas de agradecimento.” Então, morrer não é senão sair para dentro da Vida verdadeira, definitiva e eterna: “vida no seio da Vida da vida.”
No meio do rebuliço estonteante, é decisiva a pausa e o silêncio. Chama-se cultura da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa, aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar para ouvir o silêncio e contemplar: em vez de olhares para ti e olhar para mim, deixemo-nos olhar ambos pela "Realidade-Assim-Sempre-Presente, cuja aura comum nos envolve". Deixa o eu superficial, transcende, descendo até ao eu profundo e ao "Assim-Sempre-Presente", que se manifesta. Sem pausas de silêncio, como poderíamos ouvir uma mensagem ou uma sinfonia? Sem intervalos, margens e vazios nas letras e entre as frases, como poderíamos ler e entender? E verdadeiramente viver?
O que é a liberdade? "Agir de acordo com o melhor de si mesmo." Mas eu não sou eu sozinho. Perguntou ao jesuíta o monge budista: "Em que é que a sua religião e a nossa se parecem?" E respondeu: "Vós falais do amor de Deus e nós da compaixão do Buda. Mas nem vós nem nós praticamos. É nisso que mais nos parecemos."
E como se reza? "Crer, viver e conviver" era o lema de um encontro de meditação e espiritualidade inter-religiosa, sendo um terço dos participantes budistas, a maioria sem ligação religiosa e uma minoria católicos. E ali se elaborou, com todos de acordo, colocando em duas colunas o "Pai Nosso" cristão e uma paráfrase do partilhar a espiritualidade inter-religiosa, a "Oração à Vida, a partir da vida": "Fonte da Vida, que estás na vida, que estás na minha vida, que estás em toda a parte, vivificando tudo. Que nos demos conta de que o Reinado da Vida vem e o construamos, vivificando-nos, dando vida uns aos outros e em tudo dando um sim à Vida. Que recebamos força de viver, fortaleza de corpo e espírito com pão de vida e esperança. Que nos capacitemos para conviver em reconciliação, recebendo e dando perdão, e para conviver com as pessoas mais desfavorecidas, com quem é diferente e com quem nos mostra inimizade. Que sejamos libertos de todo o mal: do mal no nosso interior e do mal que vulnera as relações humanas. Que dê fruto o trabalho pela libertação do mal social." Jesus ensinou: "Quando rezardes, dizei: Obrigado, Abbá, Pai e Mãe nossa. Dá-nos o pão do futuro no presente. Reconcilia-nos e livra-nos do mal."
E também me lembrei da oração de Fernando Pessoa:
"Senhor,
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim."
Ah! E não vou esquecer o Nobel da Literatura Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo.” E lá no fundo de ti é o Mistério, o mistério da Vida.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 20 de janeiro de 2024
A transição do século XIX para o século XX foi marcada pela experiência dos chamados “Vencidos da Vida”.
A CHEGADA DE UM NOVO REI O reinado de D. Luís chegava ao fim. O rei tinha a saúde seriamente afetada e o Príncipe Real D. Carlos preparava-se para lhe suceder. Segundo a voz corrente, o jovem considerava essencial a renovação do pessoal político. As ideias de Oliveira Martins e da “Vida Nova”, que Anselmo Braamcamp partilhara, agradavam-lhe. Havia um mal-estar geral pela prevalência de interesses instalados e pela uma inércia bloqueadora. Oliveira Martins vem para Lisboa no início de 1888 e assume da direção do jornal “Repórter”, sucedendo a Pinheiro Chagas. Há boatos sobre o papel do historiador na nova situação, ele que interviera decisivamente na criação da nova Régie dos Tabacos, continuando empenhado como deputado na defesa da indústria nacional e dos direitos dos trabalhadores, sendo convidado, para surpresa de alguns, para assistir em Belém ao primeiro aniversário do filho primogénito de D. Carlos, D. Luís Filipe.
No Verão de 1888, o conde de Ficalho proferiu na Câmara dos Pares uma crítica severa à situação política, advogando uma ideia reformadora à semelhança da defendida por Oliveira Martins no Porto. “Não compreendo isto de andarmos a lançar o descrédito uns sobre os outros, nem as lutas de um dia e as reconciliações do dia seguinte, nem a utilidade do argentarismo exótico que se estabeleceu entre nós”. O alerta somava-se ao protesto devido ao impasse político partidário existente, de Oliveira Martins, António Cândido e Carlos Lobo d´Ávila, que se tinham declarado em silêncio no parlamento – sendo apelidados de “Amuados”. As palavras foram ditas no decorrer de um debate sobre a questão cerealífera, mas representou o tiro de partida relativamente à instituição do grupo que viria a ser designado como dos “Vencidos da Vida”. Os primeiros membros do grupo viriam a ser os referidos parlamentares das duas câmaras – Ficalho, Oliveira Martins, Carlos Lobo d´Avila e António Cândido Ribeiro da Costa. Depois, a solidariedade política e intelectual alargar-se-ia a Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro e finalmente juntar-se-iam os elementos palaciano, próximos do Príncipe Real D. Carlos – Bernardo Pindela, futuro conde de Arnoso, conde de Sabugosa, marquês de Soveral e Carlos Lima Mayer. Sobre a atitude dos “amuados”, Oliveira Martins definiu-os deste modo: “Amuado é todo aquele que fala com franqueza; e sem se desligar dos seus, prefere dizer com modos o que sente, repugnando-lhe o papel de granadeiro numa companhia de pomerânios”.
UM GRUPO JANTANTE A partir de então iniciaram-se as célebres reuniões jantantes. O significado político era óbvio, mas perante a suspeita de que se engendrava um novo partido político, o próprios negavam-no. E quando lemos o “Diário da Vida Nova” de Luís de Magalhães essa ideia prevalece. Seguindo a cronologia dos célebres encontros, verificamos que primeiro de todos os ágapes foi no restaurante Tavares e seguindo-se imediatamente ao discurso do Conde de Ficalho na Câmara dos Pares de 28 de junho de 1888, sobre a inaceitável paralisia da vida política. Logo em julho, Oliveira Martins, nas colunas de «O Repórter»: perguntava: «Por que não haverá um jantar semanal, um jantar alegre e até um bom jantar, a carta constitucional de um partido novo?». E a que se deve a designação de «Vencidos da Vida»? O autor de «Os Filhos de D. João I», ao ouvir, por esses dias, o seu vizinho do terceiro andar da Calçada dos Caetanos, Ramalho Ortigão, ler uma descrição sobre a voga parisiense dos jantares, achou que podia usar o exemplo. À semelhança do caso então referido da Villa de Médicis - «les uns glorieux, les autres battus de la vie» - eis que o historiador considera ser essa uma boa ideia para o novo grupo: Vencidos da Vida… É o «Tempo», jornal de Carlos Lobo de Ávila, que nos permite fazer o seu elenco fundamental. São onze as celebradas refeições dos “Vencidos”, apesar de poder ter havido outros encontros nas quintas dos arrabaldes de Lisboa, como o Retiro do Perna de Pau, no Areeiro na Estrada de Sacavém. Em 16 de fevereiro de 1889, juntam-se oito convivas em casa de Bernardo Pindela - Ficalho, Sabugosa, Ramalho, Oliveira Martins, António Cândido, Carlos Mayer e Lobo de Ávila. Em 10 de março, há jantar, com os mesmos oito, no Hotel Braganza. A 19, «os vencidos» encontram-se no mesmo hotel para acolher Luís de Soveral, recém-chegado de Londres, onde era primeiro secretário da Legação portuguesa. Em 26 de março, ainda no Braganza, recebem Eça de Queiroz, vindo de Paris, tendo Guerra Junqueiro justificado a falta, por se encontrar no Minho, aproveitando para enviar dois alexandrinos (“Onze da noite. Chega o telegrama, Tudo / Já neste Eden do Lima é silencioso e mudo, /Astros e bacharéis, rosas e vereadores”). Em 29 de março, foi a vez de Carlos Mayer oferecer o jantar em sua casa, a que também não compareceria Junqueiro… Nesta ocasião, Ramalho e António Cândido tocaram rabeca, tendo todos seguido para o S. Carlos, onde se cantava o «Otelo» de Verdi. Mas voltemos ao calendário: a 10 de abril, encontraram-se no Café Tavares e no dia 2 de maio regressaram a S. Domingos, à Lapa, a casa de Pindela.
VISITANTES INESPERADOS Na semana seguinte, o regenerador António Serpa Pimentel foi convidado pelo grupo, para o Braganza (o que causou grande vozearia e especulação política). No dia seguinte, Jorge O’Neill convidou para sua casa, tendo faltado Junqueiro, Arnoso e Cândido. Em 14 de maio, houve jantar em casa do Conde de Valbom, com a presença de Junqueiro, Eça e Oliveira Martins, Pindela e Alberto Braga. E a 17 de maio, celebraram-se os 29 anos de Carlos Lobo de Ávila, em casa de seu pai, o Conde de Valbom, onde foi cantado, com versos de Sabugosa, o hino humorístico do grupo, com música da «Rosa Tirana» (“Aqui estão os dez vencidos, / Oh Carlos! / Tirano / Com presuntos escolhidos, / Trolaró, laró. Laró”). Por fim, a 21 de maio, houve novo jantar em S. Domingos, à Lapa, a que faltaram Ficalho e Sabugosa, que interromperia por ocorrência da vilegiatura o conjunto dos repastos. Esta é a lista coeva dos onze ágapes, tudo apontando, assim, para que tenha sido o dia 2 de maio de 1889 em que o fotógrafo Augusto Bobone (1852-1910) realizou as fotografias que chegaram até nós, nas quais apenas falta António Cândido. Há, pois, além destas só uma fotografia, realizada em estúdio, com a equipa completa dos onze membros, de que não temos indicação quando foi realizada em 1889. Eça referirá ainda um «jantar de Vencido» em Paris com Luís Soveral, na Maison d’Or, com bacalhau, após o que foram, com o Príncipe D. Carlos, visitar a Torre Eiffel, em 27 de agosto de 1889. E António Cândido dirá, em entrevista a Gomes Monteiro (ABC, 16.3.1922): «Oh! Os Vencidos da Vida! – como isso vai distante. (…) A ideia da formação do grupo surgiu um dia, espontânea, imprevista, entre uma colherada de doce e uma gargalhada de champanhe no restaurante Tavares, na rua Larga de S. Roque. Oliveira Martins lembrara o título Vencidos da Vida, que todos aplaudiram e, pouco depois, o Conde Sabugosa compunha uns versos que, com música da Rosa Tirana constituíam o hino do nosso grupo. (…) Soltando sempre as suas gargalhadas espirituosas e cáusticas continuavam a fazer servir jantares elegantes em que se chegou a gastar dezoito vinténs de pão e bacalhau e dezoito mil réis de champanhe…». E a «águia do Marão» lembrava ainda o jantar de despedida, oferecido a Antero de Quental, de finais de maio de 1891, no Tavares… «Pobre amigo! Parece-me estar a vê-lo… No seu olhar melancólico e profundo, em que se adivinhava a nostalgia do Além, pairava já a visão da morte que tão tragicamente o arrebataria. Pobre Antero!»…
Sabugosa (lembrado por Silva Gaio) disse, contudo, que o «vencidismo» era difícil de classificar. «Foi um estado de espírito originado de afinidades já existentes e das que uma convivência delas nascida, mais avolumou e multiplicou». E Eça recordou que os detratores talvez se irritassem pelo facto de se chamarem a si Vencidos «aqueles que para todos os efeitos públicos parecem ser realmente vencedores». Este, no fundo, é o grande tema. A cultura portuguesa do século XX foi profundamente marcada por esses homens que se chamaram de vencidos criticamente por causa daquilo que Eduardo Lourenço sintetizou: «interrogávamo-nos apenas pela boca de Antero e de parte da sua geração, para saber se ainda éramos viáveis, dada a, para eles, ofuscante decadência». Daí Unamuno ter considerado esse o nosso século de ouro. Não poderia haver fatalismo, mas sim sentido crítico, para que os mitos não se tornassem bezerros de ouro.