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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

O FUTURO DE TUDO (1) 

  


A inteligência humana não se compraz com um estado ter o limite de apenas poder ser verdadeiro ou falso.

A inteligência humana não funciona deste modo nem se baliza pela lógica booleana.

A inteligência humana para um mesmo problema acede a múltiplas variações em consciência, em perceção, em intuição, em previsão e em outras competências, e não é binária.

Mas há um reino que pela sua capacidade para combinar dados invisíveis ao nosso “olhar”, interage connosco de tal modo que nos surpreende o não distinguirmos, se o que nos espanta nos chegou ou não de uma máquina.

Pode-se então dizer que a IA combina dados de modo imprevisível não se limitando a meras colagens, revolucionando positivamente muitíssimas áreas, tal como a da medicina e dentro desta a da imagiologia particularmente, tornando-a muito mais eficiente, precisa e acessível.

A IA surge assim como uma nova razão.

Mas na IA não se paga o tempo do pensar humano.

Tudo deve ser rápido, produtivo e barato e justificador da extinção de milhões e milhões de empregos e profissões, e que as máquinas possam até disputar novos espaços recorrendo à arte convencional.

No curto prazo, a capacidade de adaptação preenche o tempo de novas profissões surgirem, mas apenas no curtíssimo prazo esta adaptabilidade terá cadeira e assento. A medida do tempo é agora diverso e implica diferentes estabilidades.

Caberá aos engenheiros de prompt, cruciais no estímulo das máquinas, obterem da IA as respostas mais precisas; caber-lhes-á o serem capazes de desempenhar as funções de “DJ” ao escolherem as melhores “músicas” (ou prompts) para que a IA possa tocar cada vez melhor a fim de que a sofisticação da resposta da IA seja cada vez mais eficaz.

E que realidade conduzirá ao fim da humanidade tal como a conhecemos?

Quem sobrevive à criação de paradigmas inerentes à criatividade?

Qual civilização se sucede e o que a fará evoluir? Que valores como espécie?

Estou convicta de que a IA já transformou a forma como vivemos, já transformou a garantia de como vivemos esse viver.

E não há que ignorar.


Teresa Bracinha Vieira

ANTÓNIO VIANA BARRETO

  


Por ocasião dos cem anos do armistício do final da primeira guerra mundial tive o gosto de plantar nos jardins da Gulbenkian dois choupos e um álamo em homenagem à paz e à dignidade humana. Nada melhor do que as árvores como símbolos do respeito e do amor à vida. Recordei o facto no dia em que comemorámos o centenário do nascimento do Arquiteto António Viana Barreto (1924-2012), coautor com Gonçalo Ribeiro Telles desses extraordinários jardins, modelos do paisagismo enquanto encontro entre a natureza, a cultura e a arte. A exposição que se encontra aberta por estes dias fala por si. De facto, não se compreende o património cultural como realidade viva sem a ligação entre os monumentos, os documentos, as tradições, a natureza, a paisagem, as tecnologias e a criação contemporânea. “A paisagem tende a constituir uma unidade global de funcionamento ecológico, apesar da diversidade dos seus elementos constituintes. O sistema de relações que se verificam no território tende a estabelecer um entrelaçamento, cada vez maior, do espaço urbano com o espaço rural”. Quantas vezes ouvimos os artífices dos jardins Gulbenkian lembrar com estas palavras a importância deste diálogo criador entre a humanidade e a natureza. Os dois paisagistas compreenderam, assim, que essa relação constitui o modo mais sublime da criação e o melhor exercício da sabedoria humana.


Viana Barreto frequentou o Curso Livre de Arquitetura Paisagista, dirigido por Francisco Caldeira Cabral no Instituto Superior de Agronomia, tendo sido o primeiro profissional com esta formação a entrar para um serviço do Estado, na Direção Geral dos Serviços de Urbanização, onde criou a Divisão de Arquitetura Paisagista. Quando a Direção Geral passou a designar-se do Planeamento Urbanístico, a Divisão ampliou a sua intervenção tendo sido constituídas as delegações do Porto, Coimbra, Faro, Madeira e Açores. Tal foi decisivo para impor a profissão em todo o País. Tratava-se não apenas de considerar o território a ocupar, mas a paisagem a ordenar. E que é a paisagem etimologicamente senão a imagem do país, como expressão da identidade e da cultura? Assim, António Viana Barreto, como o seu amigo Gonçalo, tornaram-se Maestros da Paisagem, como se regessem a complexa orquestra da natureza. E como disse o nosso homenageado, tudo o que fez foi inspirado na convicção de que “é do conjunto da articulação e ponderação de todas as vontades que se constrói qualquer coisa”. Nesse trabalho magnífico, temos de recordar Edgar Fontes, Álvaro Ponce Dentinho e Fernando Pessoa – e hoje a Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas. Todos permitiram a consolidação dos conceitos e metodologias do ordenamento do território. E lembremos o pioneiro Plano de Ordenamento Paisagístico do Algarve, com Albano Castelo Branco e Álvaro P. Dentinho, que nos permite ter uma visão de futuro, que hoje continua atualíssima, a partir do entendimento de uma região com potencialidades longe de estarem plenamente aproveitadas.


E se falamos de método, temos de lembrar os ensinamentos do paisagista escocês Ian McHarg, autor de “Design with Nature”, obra de cabeceira destes pioneiros, para quem os pilares fundamentais da política ambiental são a Conservação da Natureza e o Ordenamento do Território. E quando se fala em desenvolvimento sustentável, importa ter bem presente o exemplo de António Viana Barreto, para além de um discurso de atualidade, uma vez que se trata de questões de sobrevivência da humanidade que apenas podem ser salvaguardadas com método, persistência e determinação. Quando foi criada a Direção Geral do Ordenamento, o primeiro responsável foi Viana Barreto e quando pensamos nos instrumentos de ordenamento do território e nas áreas protegidas temos de lembrar a plêiade desses pioneiros e o que nos legaram: além dos jardins da Gulbenkian, os planos da Torre de Belém ou das quintas das Conchas e dos Lilases. Todos ganhámos. Há que continuar.


GOM 

LIVRES. PARA ONDE QUEREMOS IR?

  


Aparentemente, não há nada que o ser humano tanto preze como a liberdade. Mas, tendo de optar entre a segurança - intelectual, espiritual, social, política, religiosa... - e a liberdade, não se sabe quantos ficariam do lado da liberdade e não da segurança.


Dostoiévski disse-o de modo ácido e também sublime num texto em que também se critica a Igreja de Roma. Fá-lo em Os Irmãos Karamázov, no poema de Ivan com o nome "O Grande Inquisidor".


A história passa-se em Espanha, em Sevilha, nos tempos terríveis da Inquisição, precisamente no dia a seguir a um "magnificente auto-de-fé" em que foram queimados de uma assentada, na presença do rei, da corte, dos cardeais e das damas mais encantadoras da corte e da numerosa população de Sevilha, quase uma centena de hereges. Cristo "apareceu, devagarinho, sem querer dar nas vistas e... coisa estranha, toda a gente O reconhece." Mas o cardeal inquisidor aponta o dedo e manda que os guardas O prendam. E é num calabouço do Santo Ofício que lhe diz que no dia seguinte O queima na fogueira como ao pior dos hereges. E a razão é que a liberdade de fé tinha sido para Cristo a coisa mais preciosa. Não foi Ele que disse tantas vezes: "Quero tornar-vos livres?"


Cristo, afinal, não percebeu que "o Homem não tem preocupação mais torturante do que encontrar alguém em quem possa delegar o mais depressa possível a dádiva da sua liberdade." "Em vez de Te apoderares da liberdade das pessoas, acrescentaste ainda mais à sua liberdade!", diz-lhe o inquisidor. "Esqueceste-Te de que a tranquilidade e até a morte são mais queridas para o Homem do que a escolha livre do bem e do mal? Não há nada mais sedutor para o Homem do que a liberdade da sua consciência, mas também não há nada mais torturante." Assim, ao longo de quinze séculos, os hierarcas eclesiásticos corrigiram a façanha de Cristo, baseando-a em milagre, mistério e autoridade. Agora, todos sabem em que é que hão-de acreditar e o que é que hão-de fazer, sem terem de perguntar porquê nem de escolher. "E as pessoas ficaram contentes por serem de novo guiadas como um rebanho e por ter sido tirada dos seus corações a dádiva terrível que tanto sofrimento lhes causava."


Como única resposta o prisioneiro beijou-o, e o velho cardeal vai até à porta, abre-a e diz: "Vai-te embora e não voltes mais... não voltes... nunca, nunca!"


O ser humano angustia-se com a liberdade. Porque ser livre quer dizer ser senhor de si e dos seus actos e ter de escolher e ter de responder por si e pelo mundo e pelos outros. Ter de escolher é para o ser humano, que quer tudo e todos os caminhos, ter de escolher algo e um caminho só de cada vez e ter de renunciar a tantas outras possibilidades, sem poder ficar com tudo, na consciência disso. Ser livre quer dizer entrar na urgência de um projecto e poder falhar e, num tempo irreversível, que inexoravelmente caminha para a morte, nunca mais ter tempo para remediar, para refazer, para fazer outra coisa e um ser si mesmo outro: é tudo sempre pela primeira e última vez, sem ensaios...


A angústia da liberdade e da responsabilidade  e a busca falaz da segurança explicam a facilidade da entrega a poderes totalitários, a seitas cegas, a colonizadores de corpos e de almas, a vendedores de "verdades e certezas" tapadas e irracionais.


A liberdade é condição de possibilidade da ética. Mas até do ponto de vista da raiz etimológica grega - ethos com épsilon e ethos com eta, que significam, respectivamente, acção, costume, modo habitual de agir, e toca do animal, morada, casa - se diz que a questão ética é indissociável da pergunta pela nossa morada enquanto horizonte de sentido, pátria onde se quer habitar. Sim! Afinal, para onde queremos ir? Na presente situação de hecatombe político-moral no país e no mundo, para onde vamos sem uma conversão ética?


Ao contrário do animal, que vem ao mundo já feito e age no quadro de uma rede de instintos, o homem vem ao mundo praticamente desarmado de instintos e aberto a possibilidades sem conta e tendo de fazer-se a si mesmo no mundo com os outros. Pode escolher entre esta e aquela possibilidade, até tem a capacidade de não escolher, mas quem tenta escolher não escolher também escolhe. De qualquer modo, é capaz de erguer-se a si mesmo acima do simplesmente agradável ou útil e colocar-se no lugar do outro. Transcende os interesses particulares da natureza e enquanto ser racional dá a si mesmo de modo autónomo a lei moral universal que é a lei da liberdade. Kant formulou-a nestes termos: "Age segundo uma máxima que queiras ao mesmo tempo que se transforme em lei universal de acção", ou então: "Trata a humanidade em ti e nos outros sempre como fim e nunca como simples meio."


Sem capacidade moral e liberdade - a liberdade é a condição de possibilidade da moralidade e, consequentemente, da responsabilidade -, o Homem não seria digno de louvor nem estaria sujeito à censura, e não haveria distinção entre o bem e o mal. Como escreveu o filósofo Luc Ferry, "um materialismo consequente deveria limitar-se, sempre, a uma 'etologia', sem nunca falar de moral a não ser como uma ilusão mais ou menos necessária, fazendo parte do real mas, sem embargo, enganadora". Embora condicionado, só porque não é completamente subordinado nem guiado pela natureza é que o ser humano "pode cometer excessos, quer no mal (o ódio e a maldade) quer no bem (o amor e a generosidade)".


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de fevereiro de 2024

A VIDA DOS LIVROS

  
De 26 de fevereiro a 3 de março de 2024


O Museu Bordalo Pinheiro acaba de publicar Conversas Soltas – Guerra Junqueiro e Rafael Bordalo Pinheiro, de Mariana Roquette Teixeira e Pedro Bebiano Braga.


OBSERVADOR ATENTO
Observador atento da cultura portuguesa, José-Augusto França foi porventura o melhor analista da nossa realidade histórica na passagem do século XIX para o século XX. Ligando de forma natural a realidade artística e a evolução política pôde deixar-nos na sua abundante produção literária e científica um retrato rigoroso sobre um tempo contraditório e paradoxal – aparentemente decadente, mas de facto profícuo no sentido da tomada de consciência das nossas fragilidades e erros, em simultâneo com o entendimento crítico sobre a necessidade de recusar um qualquer fatalismo do atraso. Quando lemos os textos agrestes da Geração de Setenta, percebemos que a crítica sem dó nem piedade possui não as cores da desistência, mas o aguilhão da vontade de renascimento. Daí a ligação das gerações anteriores de Garrett e Herculano às gerações seguintes de “A Águia”, de Pascoaes e Cortesão, de “Orpheu” de Pessoa, Amadeo e Almada, e da “Seara Nova”, de Sérgio, Brandão e Proença. Afinal, os companheiros de Antero de Quental, de Eça, Ramalho, Oliveira Martins e Junqueiro constituíram a placa giratória que permitiu chegarmos onde estamos, à democracia europeia e universalista, onde desejamos continuar com a exigência crítica que Eduardo Lourenço nos indicou na sua psicanálise mítica em “O Labirinto da Saudade”.


ZÉ POVINHO, CLARO… 
Em julho de 1903, Rafael Bordalo Pinheiro representou na figura emblemática de Zé Povinho a descrição da nossa História: «deitando-se na fuga de D. João VI, levantando-se em 1820 e em 1836, deitando-se na paz de Gramido imposta pelas potências vizinhas chamadas por D. Maria II contra a Maria da Fonte, levantando-se aquando do Ultimatum, deitando-se depois numa ‘soneca real’, à sombra de uma seca ‘árvore da Liberdade’, donde sobre ele, defeca o passarão do juiz Veiga das perseguições à imprensa… Porque, diz a legenda, o Zé Povinho ‘nunca se levanta que não se deite’». Zé Povinho é o símbolo de que somos da autoria do nosso mais célebre caricaturista. E J.-A. França diz-nos certeiramente: “Duas culturas (…) podem ser supostas, num país sujeito à centralização pombalina e jacobina do Terreiro do Paço, Praça do Comércio com século e meio de perenidade política, económica e social. Nela o Zé Povinho, rural urbanizado à força, em trajo e espertezas, em certa medida, ditas saloias, alfacinha por não poder ser outra coisa, necessariamente frutificou, para além do espaço de vida do seu criador, numa multiplicação de vidas menores”. No fundo, o Zé Povinho resume a evolução cíclica da nossa realidade – entre a albarda e o manguito. E há sempre a predisposição para largar uma em nome da soberana negação, como resposta direta, sem nostalgias nem saudades – “Queres fiado?...”. As duas culturas são incindíveis. Bordalo Pinheiro definiu, afinal, como os seus contemporâneos de 1870, o patriotismo prospetivo para não nos deixarmos arrastar pela indiferença ou pela sonolência. Tratou-se do apelo severo à vontade crítica. Zé Povinho está sempre pronto a levantar-se e a atirar os aparelhos ao ar. E Ramalho não esconde: “um dia virá em que ele mude de figura e mude também de nome, para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo”.


CONVERSAS SOLTAS
O Museu Bordalo Pinheiro acaba de publicar Conversas Soltas – Guerra Junqueiro e Rafael Bordalo Pinheiro, de Mariana Roquette Teixeira e Pedro Bebiano Braga. Aí podemos encontrar a ilustração do que acabamos de dizer. «“Poeta exímio e cavaqueador inimitável” – foi assim que Rafael Bordalo Pinheiro descreveu o amigo Guerra Junqueiro quando o visitou na sua casa em Viana do Castelo, em 1887». E nos “Pontos nos ii” publicou uma vista do interior da casa do poeta, onde são evidentes as loiças, os móveis e as obras de arte do colecionador. Mas o momento-chave deste encontro entre Bordalo e Junqueiro está no episódio relatado por Luís Oliveira Guimarães, ocorrido pouco depois das Conferências Democráticas de 1871 e da célebre publicação do álbum humorístico “A Berlinda”. “Uma noite, Bordalo entrou no Martinho (do Rossio), abancou à mesa de Junqueiro, onde já abancara Guilherme de Azevedo e, quando os dois menos esperavam, segredou-lhes: - Vocês querem reformar as instituições? – Não queremos outra coisa – responderam ambos. – Pois então vamos fazer um jornal de caricaturas. Vocês escrevem, eu desenho… - Está dito.”. Falamos da “Lanterna Mágica” (1875) da autoria de Gil Vaz, sendo Gil, Guilherme de Azevedo e Vaz, Guerra Junqueiro. Foi, no entanto, muito fugaz esta experiência, apenas de maio a julho. Mas o sucesso não se fez esperar, o que levou a que a folha se tornasse diária no último mês de publicação. A partida súbita de Bordalo Pinheiro para o Brasil, para colaborar em “O Mosquito” do Rio de Janeiro, interrompeu a empresa. Iriam ser precisos quinze anos para que Junqueiro e Bordalo voltassem a colaborar, quando no fragor patriótico do Ultimatum, o poeta pediu ao desenhador duas ilustrações para o seu “Marcha do Ódio”, sobre um velho cavaleiro, que é Portugal, que encontra a morte num combate injusto e desigual. A publicação fez-se, e ainda no ano de 1890, os “Pontos nos ii” imprimem “O Caçador Simão”, violenta crítica de Guerra Junqueiro à inação de D. Carlos, inicialmente dado á estampa em “A Província” e “O Globo”. Ainda no mesmo ano, Bordalo publicaria com destaque duas intervenções parlamentares do poeta, as derradeiras como deputado progressista. Recorde-se, porém, que Junqueiro já fora especialmente invocado nos “Pontos nos ii” aquando da publicação de “A Velhice do Padre Eterno” (1885). E na correspondência entre ambos, nota-se ainda a tentativa de reunir textos significativos do grande amigo, quase esquecido, Guilherme de Azevedo, falecido em 1882, companheiro na “Lanterna”, o celebrado Rialto do “Álbum das Glórias”. Infelizmente tal não passou de projeto.


Em 1892, “O António Maria” publica, a propósito da saída de “Os Simples” uma significativa homenagem a Junqueiro, representado com uma coroa de louros numa pose glorificadora, quando o poeta afirmou: “Engana-se quem entre ‘Os Simples’ e ‘A Velhice do Padre Eterno’ descobrir porventura contradições. Este lirismo é o reverso daquela sátira”. Contudo, a última homenagem de Rafael Bordalo Pinheiro ao seu amigo Junqueiro ocorreu a propósito da publicação do poema “Oração ao Pão” em “A Paródia” (1902). É uma homenagem tocante, na qual o poeta surge como semeador de trigo e de palavras, vestido de mujique (como o mestre Tolstoi), trazendo um turíbulo aceso, donde saem nuvens de incenso. E J.-A, França refere a grande seriedade emotiva da caricatura, marcada pela palavra “Oremus!”. A caricatura é um verdadeiro testamento. Raul Brandão referir-se-á a “um pregador socialista-tolstoiano, um santo cavador, de barba negra e inculta”. E Bordalo Pinheiro não esconde a amizade profunda e a admiração pelo artista, que tão bem compreendeu o humor e o picaresco e que tanto o apoiou no projeto da Fábrica das Caldas da Rainha.     


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MIGUEL MANSO

  


A queda

para a Catarina Barros


resta, de Agosto, esta fotografia
iluminada
onde tudo permanece ainda no lugar:
a boca no artifício dos sabores
a lentidão dos açúcares
mãos suadas dissipando pântanos
interiores
pernas brancas, vestido colado ao clima
dessas pernas
o cio vibrante do Astro, por cima
por baixo, umas sandálias
às primeiras evidências outonais
levantaram as esplanadas


in Santo subito, 2010


The fall
to Catarina Barros


left over, from August, this luminous
photograph
where everything is still in its right place:
the mouth in the artifice of flavours
the slowness of sugars
sweaty hands dissipating inner
swamps
white legs, a dress glued to those legs’
climate
the vibrant heat of the Sun, on top
underneath, sandals
at the first autumnal suggestions
the awnings were pulled in


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese 

ANTOLOGIA

  


ATORES, ENCENADORES (V)
DOIS EXEMPLOS DA TRANSIÇÃO DO SÉCULO
por Duarte Ivo Cruz


Vimos no artigo anterior o papel essencial de Garrett na estruturação do teatro português, através da reforma de 1836. Nesse diploma, encomendado, recorde-se, por Passos Manuel e transformado em Portaria assinada por D. Maria II em 15 de novembro de 1836, estava prevista a criação de uma Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional: e referia-se especificamente no texto legal a necessidade de construção de um edifício, mas também, a estruturação de uma companhia que garantisse certa estabilidade e uma base de ação cultural ao teatro português, na dupla dimensão de espetáculo mas também de criação dramatúrgica.


Trata-se do que viria a ser e ainda hoje felizmente é, apesar do incendio devastador de 1964, o Teatro de D. Maria II.


Demorou a execução deste ponto específico do programa de Garrett. Foi criada uma “sociedade de capitalistas” que teve no Conde de Farrobo o primeiro subscritor. O processo arrastou-se: mas em 13 de abril de 1846 sobe à cena, no Teatro de D. Maria II, com foros de grande acontecimento cultural e urbano, uma peça hoje completamente esquecida: “Álvaro Gonçalves, o Magriço ou dos Doze de Ingraterra” de Jacinto Aguiar Loureiro, este tão esquecido como a peça… Em qualquer caso, vem dessa época, com óbvia oscilação de qualidade e continuidade, uma ação referencial na história moderna do teatro português.


E aqui, há que evocar alguns atores que marcaram não só a continuidade cultural e profissional do teatro em si, como, através de mais de um século, a própria criação dramatúrgica e arte do espetáculo em Portugal. Assim, encontramos por exemplo uma continuidade de décadas na companhia inicialmente denominada Rosas e Brazão, que se manteria no D. Maria II, com óbvias alterações de elencos e também, a partir de certa altura, da própria constituição societária e artística, e que constituiu a base artística de uma notável transição, a nível de artistas de cena e de dramaturgos, do teatro romântico para o teatro realista-naturalista.


É que, com alternâncias óbvias dada a instabilidade da profissão e da exploração teatral, encontramos, na época e em certos casos, como veremos adiante, quase até aos nossos dias, uma continuidade e permanência no Teatro D. Maria II desde finais do século XIX meados do século XX.


Veja-se a carreira de Eduardo Brazão. Ingressa em 1875 no D. Maria, onde se mantem até 1898, integrando a Companhia Rosas e Brazão, “uma das mais célebres e ilustres de toda a história do teatro português” escreveu Luiz Francisco Rebello (in “Dicionário do Teatro Português” pág. 110). Prosseguiu uma carreira relevante de ator e encenador. E saliento o destaque na revelação, encenação e interpretação de autores portugueses, numa abrangência que o coloca na primeira linha da renovação da dramaturgia na transição do romantismo para o realismo: D. João da Câmara, Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, Júlio Dantas, Eduardo Shwalbach – eram os dramaturgos modernos da época. Brazão voltaria mais tarde  intermitentemente, ao D. Maria II.


E no D. Maria II fez grande parte da carreira a grande atriz Palmira Bastos que, com talento indiscutível, marcou, durante décadas o meio teatral português. Estreou-se em 1890, com 15 anos, no Teatro da rua dos Condes, que já aqui evocamos. Em 1894, recém-casada com Sousa Bastos, também muitas vezes aqui citado como autor do “Diccionário do Theatro Português” (1908) inicia uma carreira de atriz-cantora de opereta que a leva em tournée ao Brasil. Percorreu depois as principais companhias portuguesas.


Em 1931 ingressa na Companhia Rey Colaço Robles Monteiro: e aí, com uma breve interrupção em 1936/37, mantem-se em atividade destacada até ao incendio de 1964. Mas ainda trabalhou em 1966, tendo falecido no ano seguinte. Cito o protagonismo em “As Arvores Morrem de Pé” de Alexandre Casona, creio que o ultima grande papel que desempenhou com uma energia que ficou na memória do jovem crítico que na altura eu era…


E cito também alguns dos dramaturgos portugueses seus contemporâneos que Palmira Bastos estreou ou interpretou: Olga Alves Guerra, Vasco Mendonça Alves, Virgínia Vitorino, Ramada Curto, Júlio Dantas, Costa Ferreira, Joaquim Paço d’Arcos, Augusto de Castro…


Esteve em cena até aos 89 anos. E sobre ela escreveu, numa prosa muito da época, D. João da Câmara, o que só por si atesta a longevidade da carreira: “Foi brilhante a sua aurora e no carro triunfal, mais rápido do que Apolo, no tempo que dura um relâmpago, trepou até ao Zénite e por lá se deixou ficar”!


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 07.01.15 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


163. O ASCENSO HIGIENIZANTE DE NOVAS CENSURAS


São regras de bom senso preservar os livros intactos para quem os aprecia e gosta de ler. Se há quem seja incapaz de os ler como foram escritos, é melhor não o fazer e não os comprar. É uma solução fácil, em sociedades onde prima a defesa da liberdade de expressão e de pensamento.


Já tivemos a Inquisição e fogueiras onde se queimavam livros proibidos em nome de interesses políticos, religiosos, patrióticos, nacionais ou morais. Agora são reescritos livros atuais ou de épocas anteriores, porque ofensivos da sensibilidade de pessoas ou leitores sensíveis, o que pode ser extensivo a esculturas, filmes, discos, à revelia dos seus autores.   


A pretexto de um olhar contemporâneo mais adequado, em Inglaterra, por exemplo, foram reescritos livros de escritores como Agatha Christie, Enid Blyton, Ian Fleming, Roald Dahl ou Joseph Conrad em que foram feitas alterações de adjetivos, substantivos ou palavras suscetíveis de magoar sensibilidades do tempo presente, tais como: “gordo” passou a “enorme” ou “grande”, “macho” para “homem”, “fêmea” para “mulher”, “pais” e mães” para “família”, “rapazes” e “raparigas” para “crianças”, “homens pequenos” e “mulheres pequenas” para “pessoas pequenas”, “nativo” para “local”. Sendo eliminados quaisquer insultos, palavras ofensivas como “doido”, “feio”, “louco” ou “preto”, “branco”, “amarelo”, “castanho”, “africano”, “oriental”, se tidas como uma inoportuna referência ou pretensa inferiorização racial, por maioria de razão se de um presumível supremacismo branco. 


Entre nós, por este veredicto, poetas das cantigas de escárnio e maldizer, obras de Gil Vicente, Bocage, António Botto, Mário Cesariny de Vasconcelos e Luiz Pacheco, entre tantos outros, seriam (ou serão?) reescritas, higienizadas do mal, do mau gosto e maldade a que não podem ser expostas pessoas diferentes e sensíveis, que não são obrigadas a lê-las, mas não podem proibi-las de serem lidas por quem quer.   


Ganha relevância, neste contexto, o clamor de Salman Rushdie, em 2023, escritor cuja vida se alterou, de modo irreversível e fatídico, após publicar um livro e, por causa dele, ter sido condenado à morte pelo ayatollah Khomeini, tendo sofrido, em 2022, um ataque que o cegou e deixou imobilizado do braço direito, o da mão com que escrevia, ao dizer: “Penso que estamos a viver um momento em que a liberdade de expressão e a liberdade de publicação nunca estiveram, no meu tempo de vida, sob uma tal ameaça nos países do Ocidente”.     


Que o autor modifique uma obra sua é aceitável e tolerável, mas é incompreensível que censores sociais, em representação da ética, moral, religião, política ou ideologias que defendem, se arroguem no direito de reescrever obra alheia. 


Os livros têm autor, goste-se ou não, leiam-se ou não, mas não podem ser adulterados por mão alheia. O mesmo em relação a outras criações artísticas e culturais de terceiros, repintando-as, desconstruindo-as, desmontando-as e remontando-as, ou algo similar.


Também a diretora de uma escola dos Estados Unidos foi demitida por os pais dos alunos descreverem como pornográficas as imagens da escultura de David, de Miguel Ângelo, expostas numa aula, apesar do seu realismo anatómico e ser uma obra prima da arte renascentista e mundial.


Aplicando este critério censório, para quando uma maior higienização na pintura, no desenho, na música, na televisão, cinema, teatro, porque não podemos ser confrontados com o que é ofensivo (para alguns) e o que está fora desta novidade do politicamente correto? 


Toda e qualquer censura, mesmo que maquilhada de novas regras, deve ser denunciada, combatida e removida, não sendo tolerável que se alterem ou proíbam realidades que são parte integrante da vida de todos os dias (com exceção de situações do foro criminal), pois a liberdade de expressão não protege o pensamento de quem concorda connosco, mas o de quem discorda de nós, dado que para concordar e nunca discordar não se justifica, sob pena de sucumbir a liberdade de diversidade e universalidade cultural.     


23.02.24
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

NO MOMENTO DO VULCÃO
E JÁ
NO PÓS DE TUDO

  


Passo a passo desenleava-se o enovelamento dos fenómenos, e como a razão crítica não convinha aos estabelecidos, obscureceu-se a verdade enevoando-a com a mentira.

A partir daí só havia que destruir inimaginavelmente e aguardar pelos termiteiros submissos.

E eis que tudo pareceu acontecer de súbito quando afinal se lhes deu tempo e força e permissão para que rebentassem a crosta do mundo, avaliando previamente a potência da câmara magmática, aquela que que alberga a caldeira do mando cruel e oportunista e cego de cegueira absoluta, aquela que sabe que explode com consequências planetárias.

Foi usada a extrusão para dar forma e atribuir características no tecido do Ser.

Causaram-se descargas explosivas avaliando as tolerâncias;

a sismicidade de aparente baixa magnitude entrou de manso nas escolas;

em sons de baixa frequência, avaliaram-se as universidades;

a voz cavernosa das placas tectónicas a roçarem ressurgentes anunciaram pontos de partida;

e quase todos alheios, como última verdade, os humanos sentaram-se em cima do momento do vulcão, e já nos pós de tudo, no próprio pós-armadilha e fraco engenho,

aconteceu.


Teresa Bracinha Vieira

ROBERT BADINTER

  


Conheci Robert Badinter na Convenção para o Futuro da Europa (2002-2003), num momento de grande esperança sobre a necessidade de se avançar para a construção de uma União Europeia de Direito, na qual uma Lei Fundamental pudesse permitir a criação de uma democracia supranacional e de uma cidadania de liberdade e igualdade, baseada nos direitos humanos. Conversámos sobre essa exigência, compreendendo um longo percurso que terá de ser prosseguido com determinação. Sentávamo-nos lado a lado no grande hemiciclo de Bruxelas e na sua voz pausada, serena e determinada encontrei sempre a firme defesa dos direitos fundamentais como o centro de todas as reflexões e de todos os compromissos da vida democrática. Legislador experimentadíssimo, sabia bem que qualquer norma para ser eficaz teria de ponderar o empenhamento dos destinatários, já que direitos e deveres, liberdade e igualdade, igualdade e diferença constituem o cerne da democracia. Mais do que um método de funcionamento das sociedades ou do que um conjunto de procedimentos funcionais, a democracia é um sistema de valores, em que a ética, a moral e o direito se completam. Estudioso e biógrafo (com Elisabeth Badinter) de Condorcet, herói incompreendido da Revolução, considerava que o método de descobrir a verdade estaria na aprendizagem e no conhecimento, como artes que permitem não cair na obscuridade. Uma sociedade de iguais, mulheres e homens, deveria, assim, progredir num gradualismo comprometido, capaz de garantir o aperfeiçoamento permanente no sentido do reconhecimento pleno da dignidade humana.


Está na memória de todos o memorável discurso na Assembleia Nacional francesa de 17 de setembro de 1981, como Ministro da Justiça. Afinal, ao fim de vários anos de combate incessante, havia que reafirmar. “A pena de morte significa que o Estado assume o direito de dispor da vida do cidadão; implica secretamente o poder de vida ou de morte do Estado sobre o cidadão, E eu recuso isso”.  E foi possível concretizar tal desígnio, com determinação e coragem, apesar de resistências e receios. E não esqueço a profunda admiração que tinha em relação ao pioneirismo de Portugal nesse domínio. Tantas vezes o ouvi lembrar a carta de Victor Hugo ao diretor do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, publicada no dia 10 de julho de 1867: "Está, pois, a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma tão grande história!”


Como disse o seu amigo Jacques Attali, “Robert Badinter era um gigante, um imenso jurista, um homem de Estado, um observador irónico, que gostava do mundo, companheiro magnifico nas refeições e conversas, desde a literatura a uma curiosidade insaciável. Era tudo menos um político obcecado pelo poder”. Advogado, penalista, pensador, professor de Direito, Ministro da Justiça (1981-1986), Presidente do Conselho Constitucional (1986-1995), Senador por Hauts-de-Seine (1995-2011), estava casado com a escritora e militante dos direitos humanos Elisabeth Badinter, que fez dos combates pela liberdade e igualdade uma constante da sua vida, sem cedência a argumentos de oportunidade. Não se pense, porém, que o consenso a que assistimos nos últimos dias no elogio ao cidadão exemplar foi uma constante durante a sua vida. Não, foi alvo de muitos ataques e incompreensões, uma vez que o seu combate era de princípios e valores éticos e tantas vezes os seus críticos confundiram as situações concretas e a defesa intransigente da pessoa humana como essencial nas suas causas. Lembro com saudade os encontros que tivemos, a sua paixão e o seu empenhamento. Não esqueço as suas dúvidas e preocupações, pela liberdade e pela verdade, como afirmou num dos seus últimos relatórios no Senado, designadamente respeitantes a um perigoso recuo dos valores democráticos, com perda do sentido universalista e avanço das intolerâncias e do medo dos outros e das diferenças.


GOM

JESUS: O PODER E A AUTORIDADE

  


Terminada a festa do Carnaval, os cristãos entram na Quaresma: quarenta dias de mais profunda meditação, de mais intensa conversão, de amor mais vivo e perfeito, em ordem a poder celebrar com mais dignidade a Páscoa do Senhor enquanto passagem da escravidão à liberdade, da morte à vida.


Logo na quarta-feira de cinzas, é dita a cada um, a cada uma, ao mesmo tempo que lhe é colocada cinza na cabeça em sinal de humildade e exigência de reflexão, aquela palavra de Jesus no início da sua pregação: "Convertei-vos e acreditai no Evangelho”, a Boa Nova, notícia boa e felicitante.


De modo significativo, no primeiro Domingo da Quaresma, lê-se a passagem do Evangelho referente às tentações de Jesus. Ora, é importante que se diga que as três tentações estão todas referidas ao poder: poder económico, poder político, poder religioso. Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, foi para o deserto rezar, meditar, e tinha de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda alternativa que seguiu: "Eu não vim para ser servido, mas para servir", e servir até dar a vida.


Essencial: a única verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da dominação. Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável. Toda a questão consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram que Ministro, na sua etimologia, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve? Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Jesus disse aos discípulos, portanto, também ao papa, bispos, cardeais, padres: "Sabeis que os chefes das nações governam-nas como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós seja vosso servo".


Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo latino augere, que significa aumentar. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer crescer, aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na liberdade e na dignidade... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores, padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz crescer... Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos aqueles que clamam por mais liberdade e dignidade... Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a essa dignidade inviolável.


É curioso: quando se fala em tentações, o que vem normalmente à ideia é a tentação da carne, isto é, a tentação do sexo... Ora, sintomaticamente, Jesus também foi tentado, mas nenhuma das tentações se refere ao sexo; as tentações estão todas em conexão com o poder, com o domínio. Neste contexto, tenha-se presente o velho debate entre Freud e Adler: enquanto, segundo Freud, a pulsão humana fundamental está referida à libido e essencialmente ao prazer sexual, para Adler, essa pulsão tem a ver essencialmente com a auto-afirmação, com a vontade de poder. Ora, neste diferendo, é bem possível que seja Adler quem tem mais razão. Afinal, pensando bem, a própria sexualidade só constitui desvio quando alguém é utilizado como meio de prazer, quando a pessoa é instrumentalizada e coisificada.


Não; a grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Talvez isso explique até porque é que, no catálogo dos pecados, o sexo teve não só o predomínio, mas parecia, inclusivamente, deter a exclusividade do pecaminoso: no fundo, aninhava-se aí o medo de que o prazer subvertesse o poder... A tentação do poder nas Igrejas é tanto mais perigosa e deletéria quanto pretendam controlar, aprisionar o Sagrado e o Divino. Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: "Perdido o sentido do Mistério, instala-se a 'indoutrinação' e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder". A Inquisição, que pode sempre continuar sob formas subtis, deriva da pretensão de dominar o Mistério. Quem julga deter o saber todo sobre Deus faz-se fatalmente inquisidor, no dia em que tenha do seu lado o poder político. (Diga-se, entre parêntesis, que foi também isso que aconteceu com os regimes comunistas, por exemplo: pensavam deter a ciência da História e controlavam completamente o poder político.) O pretenso saber total torna-se poder totalitário.


A novidade do Deus cristão é que, em Jesus Cristo, não vem em poder e majestade, mas como aquele que serve… Isto significa que, se Deus não dispõe de nós, muito menos nós podemos dispor de Deus. Deus é Mistério indisponível. Quem julga dispor de Deus, seja de que modo for, não esquece apenas que a fé termina no Mistério e não nas fórmulas do dogma. Corre sobretudo o risco de, com toda a desfaçatez, dispor dos homens e das mulheres... De facto, quem julga dispor de Deus porque é que não há-de dispor dos homens e das mulheres?


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 de fevereiro de 2024

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