CRÓNICA DA CULTURA
NÉLIDA PIÑON
Eu não confio no Estado.
Eu confio na vigilância da sociedade.
Não tenho filhos, mas leitores, capazes por si sós de defenderem a civilização contra os avanços da barbárie. A eles nomeio sucessores de uma linguagem irrenunciável. E, embora duvide às vezes se vale defender alguns princípios hoje contestados, persisto em inscrever certas normas no código dos direitos humanos.
E que ninguém abandone o arado da literatura que se lê e vive em fôlegos de grandeza responsáveis pela manutenção da pátria-poética na esteira de si, no coroar de toda a trajetória literária e na esteira também de Saramago.
Nélida: a musa de quantos viveram também na sua convivência, na sua vizinhança, aquela mesma que nos legou uma narrativa luminosa.
Traduzida em mais de 30 países, Eduardo Lourenço, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Alberto Mussa entre tantos outros criadores de linguagens como William Faulkner ou Pedro Páramo - tão evocado por Jorge Luís Borges -, nunca descuraram a poderosa trajetória de Nélida Piñon.
Escritora integrante da Academia brasileira, dela, na emoção da despedida, escreve Evandro Afonso um epitáfio à sua palavra-luz de onde centro, proa e quilha se confiam à vigilância da sociedade, à respiração de onde é tantas vezes alheio o próprio Estado.
Como afirmava Nélida, os tribunais quase inquisitórios proliferam nas mãos dos perguntadores de serviço esgrimindo artríticos poderes: homens em declínio como perfeitas imagens de solidão.
Que vigilantes sejam as gentes a tanta ambiguidade! Que se não desatentem do quanto as sombras fantásticas gritam! Digo.
Nélida morre em Lisboa em 2022 em plena pandemia, mas deixa-nos a pedra obsidiana, aquela do seu livro “Um Dia Chegarei a Sagres”, análise poderosa de decadências e esplendores humanos quando fundo e superfície são um reter e um libertar.
Bem-haja!
Teresa Bracinha Vieira