CRÓNICAS PLURICULTURAIS
162. AS ARTES DE BEM E DE ELITE E A SUA LIBERDADE
As artes de bem ou boas artes são tidas como compreensíveis por todos, um meio de comunhão universal entre as pessoas que entendem o seu valor intrínseco, não as excluindo da cultura.
As artes de elite são tidas como deliberadamente excludentes do grande público e das pessoas em geral, operando por códigos elitistas e intelectualizados, só acessíveis e compreendidos por uma minoria.
Se todas as pessoas têm direito ao gozo, uso e fruição da cultura (que é um dos direitos humanos), incluindo as artes, pode indagar-se do porquê de fazer, divulgar e promover arte a partir de premissas estéticas e opiniões conceptuais de vanguarda, impedindo uma alfabetização cultural do povo, tido como inculto, em benefício de meios tidos como de média e alta cultura inacessíveis, no seu Olimpo, ao cidadão comum.
É mais consensual haver boa arte ou artes de bem quando nelas sobressai o aprazível, o belo, a contemplação, o deslumbramento, o sublime e o transcendente, se acessíveis e universalmente entendíveis, por maioria de razão se aceitáveis por crianças, jovens e adultos, servindo também para entreter, não apenas educar, fazer pensar ou ter uma experiência estética.
Ao invés, é mais incompreensível, ininteligível e irracional uma arte (ou artes) que nos impõe uma disponibilidade e obrigatoriedade, por vezes penosa, de pensar, que aborda uma realidade nua e crua, irrealista ou surreal, onde há o culto da irracionalidade, da obscuridade, duma experiência puramente estética, sem qualquer coerência lógica à vista desarmada de uma primeira impressão, por vezes chocante.
Para ascendermos e nos transcendermos através das artes temos de, por um lado, nelas incorporar tudo o que somos como seres humanos, entre a luz e as trevas, elevando-nos da lama, sem omitir os impulsos e instintos que conscientemente não controlamos e, por outro, estar permanentemente a ir mais além, demandando o que não sabemos, numa busca infindável do que não conhecemos.
Sendo uma experimentação contínua e uma tentativa permanente de superar limites, em transgressão, revelia e rutura com as normas vigentes, valem por si, são um fim em si, não um meio ou instrumento para um fim, validando-se através de critérios próprios e não de validação exógena.
Realismo, neorrealismo e realismo socialista, por exemplo, que se presumiam grandemente apreciados e universalmente compreensíveis, foram ultrapassados, nomeadamente em países democráticos, que acolhem políticas plurais de cultura, sem dogmas ou imposição de gostos estéticos, dando abertura a que as artes dependam, no essencial, da emoção que provocam.
O que não sucede em regimes autoritários, ditatoriais e totalitários, onde são um meio ou instrumento de transformar a sociedade (não a arte) através de uma arte oficial, formatada e mais acessível às massas, que só admite uma ideia pré-formada da realidade, uma só e igual para todos, o que conduz a uma amputação da génese da criação artística.
Só havendo espaço para a liberdade, inerente à criação artística, podem coexistir todas as artes, incluindo as tidas tradicionalmente ou convencionalmente por boas, de bem ou compreensíveis pelas massas, assim como as de elite ou elitistas, compreensíveis por uma minoria ou ininteligíveis pela maioria, dado que a diversidade é a condição das liberdades.
Todas as artes têm uma função, seja ela social, estética, de contemplação, da emoção que causam, de nos ascendermos e transcendermos para além da nossa própria materialidade, mesmo que ao observá-las ou usufruí-las não reconheçamos algo que nos leve para além da realidade, porque não gostamos ou percebemos, o que não invalida que futuramente sejam compreendidas pela maioria ou por todos, como tantas vezes sucedeu com obras de arte vanguardistas que se anteciparam temporalmente.
Antes a provocação da arte pela arte, acolhendo a dissensão em liberdade, uma linguagem permanentemente trabalhada e a trabalhar, mesmo a alegórica, metafórica, misteriosa, metafísica ou simbólica, do que a mera possibilidade de fixação de regras e dogmas ideológicos a que a criação artística se deve submeter, mesmo que mais acessível e de compreensão universal, sob pena de nos confrontarmos apenas com o determinismo do já conhecido, à revelia do desconhecido como promotor e questionador do progresso.
16.02.24
Joaquim M. M. Patrício