ANTOLOGIA
VAMOS INDO… LEMBRANÇA DE ANNA, SOROR…
por Camilo Martins de Oliveira
Minha Menina de mim:
És pequenina hoje, não digo idade, porque a idade é um passeio que as almas não percorrem. Mas rompeste a escuridão inicial das águas, donde nascemos todos, como o universo. O espírito de Deus pairava sobre as águas, a terra era vazia e vaga e Deus disse: Que a luz seja! E a luz surgiu. E S. João dirá: "No princípio era o Verbo"... Nasces, luz do meu coração, no ano em que abriu os olhos essa Marguerite Antoinette Jeanne Marie Ghislaine, filha de Michel Creenewerck de Crayencour e de Fernande de Cartier de Marchienne, minha parente ainda, ali das bandas de Namur. Conhecem-na hoje por Marguerite Yourcenar. E por esses escritos - "Mémoires d’Hadrien" e "L’Oeuvre au Noir" - que a levarão um dia à fama universal. Mas é de "Anna, Soror..." que te venho falar hoje. "Nascera em Nápoles, em 1575, por detrás das espessas muralhas do forte de Sant´Elmo, de que seu pai era governador..." A novela escrita, abandonada, retomada por Marguerite Yourcenar, conta vidas e mortes várias, de antepassados parentes, mais teus do que meus, dos Crayencour certamente. Mudou-lhes os nomes, as nossas famílias têm hoje, afinal, os apelidos e títulos que as últimas conveniências guardaram, e as memórias guardadas para novas conveniências...se vierem! "Anna Soror..." é uma meditação sobre a linhagem e o incesto, sobre a devoção à paixão de um deus incarnado e o espinho agudo do amor humano, sobre a condição de quem se debate entre um horizonte além e um impulso imediatamente poderoso. De Anna se apodera o ideal indefinido e incerto de Séneca e Platão - que Valentine, a mãe de ambos, Anna e Miguel, lhes lia - e, ainda, o da entrega religiosa ao ciúme de um cristo crucificado... Tudo o que, no interior das defesas do forte de Sant´Elmo, a faça afastar de si e dos seus desejos. Ela mais não quer, verdadeiramente, do que quedar-se, ali, a forças que lhe dão forma. Quando se descobre e se entrega ao amor do irmão - quando ele mesmo não resiste mais a essa força sem data nem explicação possível, mas que já o empurrou também para a aventura militar em que vai encontrar a morte - Anna sabe que, por muitos anos que viva, já morreu. Marguerite Yourcenar confessa que esse texto, escrito quando tinha apenas 22 anos, é o que menos modificações sofreu, para edição posterior, de todos os que escreveu na juventude. Li algures - ou talvez lhe tenha ouvido dizer - que o amor de Anna e Miguel (Miguel é um nome recorrente no ramo ítalo-espanhol da família dela, como Camilo na nossa) - "entre “Pietàs” desoladas, “Marias-das-Sete-Espadas”, santas “cantando pela boca das suas feridas”, no fundo de igrejas sombrias e douradas que são para eles o enquadramento familiar da infância e um supremo asilo"... Marguerite sentiu, na Nápoles "espanhola" do século XVI, profundamente, o contraste entre o sol lúdico da canção livre e a autoridade tão negra dos Filipes da Contra-Reforma. Anna aceitará, depois de ter acompanhado Dom Álvaro, seu pai, no exílio da Flandres - a que o dever de obediência ao rei católico o obrigou - o casamento com um francês flamengo, cujo nome quero esquecer, ao serviço dos Habsburgos de Espanha. A recomendação de sua mãe, na sua hora derradeira, “Quoi qu’il advienne n’arrivez jamais à vous haïr”, determinará a fuga de Miguel para a morte em combate pela cristandade, e a constância de Anna. Diz Marguerite: "A noção social do interdito e a noção cristã da culpa fundiram-se nessa chama que dura toda a vida". Alhures, disse ela que, no exercício da escrita, se lembrara da narrativa bíblica do incesto dos filhos de David, Amnon e Tamar, no 2º livro dos Reis. Naquele tempo, ela lera a Bíblia na versão de S. Jerónimo - ou "vulgata" latina - em que os dois livros de Samuel, mais os dois dos Reis, se incorporavam no conjunto chamado dos Reis ou dos Reinos. Essa história é narrada no 2º de Samuel, nas edições de hoje. Pessoalmente, acho-a curiosa: não me parece que haja nela uma intenção de apontar o incesto fraterno, mas, claramente, uma condenação da violação. O livro do Levítico, que costumo chamar livro dos interditos, até pela literalidade de tantos tabus e proibições que ainda hoje tentam impor rabinos judeus e imãs muçulmanos - para não falarmos de "mensageiros católicos" que não terão meditado o evangelho - inclui o incesto nos crimes contra a família merecedores de castigos radicais. O Deuterenómio insistirá nas normas reguladoras das relações sexuais no seu contexto familiar e social. Recordo que, num qualquer dia em que falávamos de Donnizetti e da sua ópera "Dom Sébastien, Roi de Portugal", a última do compositor, o Alberto me disse que o desgraçado rei concentrara em si mazelas e fraquezas, por força da consanguinidade de casamentos endogâmicos: tivera pai e mãe, como todos nós, e quatro avós, mas também só quatro bisavós. Melhor teria sido se fossem, estes, oito... No relato bíblico do 2º livro de Samuel, o rei David, "quando soube daquela história, irritou-se muito, mas não quis penalizar o seu filho Amnon, porque era o seu primogénito. Quanto a Absalão (irmão de Amnon e Tamar), esse não falou mais com Amnon, pela violência que infligira à sua irmã"... Quando, antes do estupro, Amnon, pela manha aconselhada por Yononadab, sobrinho de David, alcançou o momento oportuno para dizer a Tamar “Vem! Deita-te comigo, minha irmã!”, ela respondeu-lhe: “Não, meu irmão, não me violentes, porque não é assim que se age em Israel, não cometas essa infâmia!. Para onde irei eu com a minha vergonha? E tu serias um infame em Israel! Agora, fala com o rei: ele não recusará dar-me a ti. “Mas ele não quis ouvi-la, dominou-a e, com violência, deitou-se com ela." Há aqui uma exceção ao interdito do incesto. Ao longo da História e, transversalmente, por civilizações e culturas, encontramos interdições e revogações (ou, melhor, derrogações) delas. O casamento endogâmico até de papas católicos recebeu bênçãos, ainda que com algum cuidado na ponderação dos graus de parentesco, não fosse a necessidade política ofender demais o que seria o "direito natural"... Entre os egípcios antigos, foram frequentes as uniões de faraós de sucessivas dinastias com suas irmãs. Todos conhecemos, já no período helenístico do Egipto, o matrimónio da do "nariz que mandou na história", Cleópatra VI, com seu irmão Ptolomeu XIII. Não deu grande resultado. Tudo isto me conduz à etnologia, à demanda antropológica de Claude Lévi-Strauss, no seu "Les Structures élémentaires de la parenté", sobretudo a essa interrogação da fronteira entre a Natureza e a Cultura: "O carácter primitivo e irredutível da definição do parentesco resulta imediatamente da existência universal da proibição do incesto... ...Um sistema de parentesco não consiste nos laços objetivos de filiação ou consanguinidade entre os indivíduos; não existe senão na consciência dos homens; é um sistema arbitrário de representações, e não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de facto"... Penso, cada vez mais profundamente, que a abordagem da cultura, ou das culturas vigentes, em que as pessoas vivem, é a achega necessária - aos homens de boa vontade e à Igreja - para uma compreensão adequada de muitas interrogações, reclamações e manifestações geradoras de conflitos e clivagens sociais, que por aí cada vez mais se veem. A transumância do homem é a cultura..." Mas foi, ou não foi? Jesus que disse que não é impuro o que no homem entra, mas o que dele sai?"
A tradução de cartas do Marquês de Sarolea à Princesa... dele!... vai-me entretendo. Para bem, espero.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 03.09.13 neste blogue.