CRÓNICAS PLURICULTURAIS
163. O ASCENSO HIGIENIZANTE DE NOVAS CENSURAS
São regras de bom senso preservar os livros intactos para quem os aprecia e gosta de ler. Se há quem seja incapaz de os ler como foram escritos, é melhor não o fazer e não os comprar. É uma solução fácil, em sociedades onde prima a defesa da liberdade de expressão e de pensamento.
Já tivemos a Inquisição e fogueiras onde se queimavam livros proibidos em nome de interesses políticos, religiosos, patrióticos, nacionais ou morais. Agora são reescritos livros atuais ou de épocas anteriores, porque ofensivos da sensibilidade de pessoas ou leitores sensíveis, o que pode ser extensivo a esculturas, filmes, discos, à revelia dos seus autores.
A pretexto de um olhar contemporâneo mais adequado, em Inglaterra, por exemplo, foram reescritos livros de escritores como Agatha Christie, Enid Blyton, Ian Fleming, Roald Dahl ou Joseph Conrad em que foram feitas alterações de adjetivos, substantivos ou palavras suscetíveis de magoar sensibilidades do tempo presente, tais como: “gordo” passou a “enorme” ou “grande”, “macho” para “homem”, “fêmea” para “mulher”, “pais” e mães” para “família”, “rapazes” e “raparigas” para “crianças”, “homens pequenos” e “mulheres pequenas” para “pessoas pequenas”, “nativo” para “local”. Sendo eliminados quaisquer insultos, palavras ofensivas como “doido”, “feio”, “louco” ou “preto”, “branco”, “amarelo”, “castanho”, “africano”, “oriental”, se tidas como uma inoportuna referência ou pretensa inferiorização racial, por maioria de razão se de um presumível supremacismo branco.
Entre nós, por este veredicto, poetas das cantigas de escárnio e maldizer, obras de Gil Vicente, Bocage, António Botto, Mário Cesariny de Vasconcelos e Luiz Pacheco, entre tantos outros, seriam (ou serão?) reescritas, higienizadas do mal, do mau gosto e maldade a que não podem ser expostas pessoas diferentes e sensíveis, que não são obrigadas a lê-las, mas não podem proibi-las de serem lidas por quem quer.
Ganha relevância, neste contexto, o clamor de Salman Rushdie, em 2023, escritor cuja vida se alterou, de modo irreversível e fatídico, após publicar um livro e, por causa dele, ter sido condenado à morte pelo ayatollah Khomeini, tendo sofrido, em 2022, um ataque que o cegou e deixou imobilizado do braço direito, o da mão com que escrevia, ao dizer: “Penso que estamos a viver um momento em que a liberdade de expressão e a liberdade de publicação nunca estiveram, no meu tempo de vida, sob uma tal ameaça nos países do Ocidente”.
Que o autor modifique uma obra sua é aceitável e tolerável, mas é incompreensível que censores sociais, em representação da ética, moral, religião, política ou ideologias que defendem, se arroguem no direito de reescrever obra alheia.
Os livros têm autor, goste-se ou não, leiam-se ou não, mas não podem ser adulterados por mão alheia. O mesmo em relação a outras criações artísticas e culturais de terceiros, repintando-as, desconstruindo-as, desmontando-as e remontando-as, ou algo similar.
Também a diretora de uma escola dos Estados Unidos foi demitida por os pais dos alunos descreverem como pornográficas as imagens da escultura de David, de Miguel Ângelo, expostas numa aula, apesar do seu realismo anatómico e ser uma obra prima da arte renascentista e mundial.
Aplicando este critério censório, para quando uma maior higienização na pintura, no desenho, na música, na televisão, cinema, teatro, porque não podemos ser confrontados com o que é ofensivo (para alguns) e o que está fora desta novidade do politicamente correto?
Toda e qualquer censura, mesmo que maquilhada de novas regras, deve ser denunciada, combatida e removida, não sendo tolerável que se alterem ou proíbam realidades que são parte integrante da vida de todos os dias (com exceção de situações do foro criminal), pois a liberdade de expressão não protege o pensamento de quem concorda connosco, mas o de quem discorda de nós, dado que para concordar e nunca discordar não se justifica, sob pena de sucumbir a liberdade de diversidade e universalidade cultural.
23.02.24
Joaquim M. M. Patrício