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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE PEDRO SENA-LINO 

  


podes levar os dias…


podes levar os dias que trouxeste
os pássaros soterraram agosto
e sem lugar um homem cega pela janela
o mar que jura ter tocado com o sangue
podia ter sido o amor se não tivesse vindo
tão directamente da sede
um duplo rosto de enganos e os braços
que saíram desertos
o eco da morte reverbera na pele
com que vejo a tua ausência encher as ruas
um choro de papel cai pela terra
e nunca foi tão tarde ser depois
daqui onde o grito surdo incendeia
a refutação da madrugada
donde o crânio esmaga o coração
um homem corta pela janela
a própria certeza de ter sido
não é tarde demais para uma manhã
que foi a enterrar em tantas noites
as escadas morreram de sede
a terra caiu em nunca
podes levar os dias que trouxeste


in zona de perda – livro de albas, 2006


you can take back…


you can take back the days you brought
birds buried august
and a rootless man through the window
blinds the sea he swears to have touched with blood
it could have been love if it hadn’t come
so straight from thirst
a double faced mistrust and arms
turned to deserts
the echo of death resounds in the skin
that makes me see your absence filling the streets
paper tears fall to the ground
and belatedness was never so late
from here where the deaf scream sets
alight the refusal of dawn
from where the skull crushes the heart
a man cuts through the window
his own certainty of having been
it’s not too late for a morning
that was buried in so many nights
the stairs died of thirst
the ground fell into never
you can take back the days you brought


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese 

 

ANTOLOGIA

  


VERDI, VERDE-GAIO, PÁSSARO, VIDA VAI…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


Fui ao mercado com o Alberto. É sempre com imenso gosto que percorro com ele a Ribeira de Lisboa e conversando deambulamos por esse mercado à beira-rio... O Alberto correu mundo e fala línguas, mas nunca deixou de ser o beirão cuja primeira revelação de Deus e sentimento da graça foi essa convivência, desde pequenino, com a Natureza: temor e tormenta, bonança e libertação na alegria calorosa do sol, vida que morre na terra e da terra nasce, sombras e segredos, flores e cores, frutos e prazeres, transpiração e trabalho, mas sempre, sempre, contemplação e ação. Os campos maravilham-nos e oferecem-se-nos. O lema dos monges antigos - "ora et labora" - resume bem esse encontro do homem com Deus, da mística com a cultura, que é o trabalho agrícola. Também no Oriente acabam por se fundir no círculo da vida o ying e o yiang, a harmonia é uma submissão recíproca de quem fecunda e é fecundado, e as estações do ano acompanham essa conversão contínua da morte e da ressurreição. Talvez seja mais difícil encontrar na cidade essa íntima, genética, comunhão com o mundo. O nosso Alberto vai aos legumes, escolhe-os para que lhe saibam melhor as sopas camponesas que a Diamantina (a cozinheira lá de casa) preparará em lume brando e tapando os tachos, "p’ra que fique lá a riqueza toda, meu senhor!" Eu compro fruta e flores para levar à tua irmã. Antes de partirmos, o Alberto chama o motorista, para o ajudar a carregar no carro as gaiolas cheias de passarinhos, com cuja compra se despede. Ao chegar a casa, abrirá as gaiolas que pendurou numa parede do vasto terraço que se debruça sobre o jardim, e largará os pássaros. Com uma alegria amiga, quase infantil. Muitos deles voltarão a abrigar-se nas prisões de porta aberta, alguns virão comer à mão que esse homem lhes estende, com alpista. E este nórdico que sou, citadino e bruto, pasma para a cena, como menino para o sorriso de sua mãe. Descubro e encontro. Hoje, comprei cerejas, portuguesas da Beira, as melhores do mundo. Já lá fomos colhê-las, lembras-te? Passámos dos "boulevards" gelados de Paris no Inverno para a floração da Primavera em Sintra, até aos cerejais da Gardunha, no início do verão. Já no outono, fomos às castanhas, a Marvão... Citadinos embora, respirámos juntos. "A Lui che nell’erba del campo / La spiga vitale nascose, / Il fil di tue vesti compose, / De´pharmachi il succo temprò"... // "ÀquEle que na erva do campo / a espiga vital escondeu, / teceu o fio dos teus vestidos, / doseou o suco das plantas curativas, / criou o pinheiro inflexível ao suão, / o salgueiro que obedece à nossa mão, / e o larício que o inverno afronta / e o álamo que a água aguenta. / A Esse pergunta,ó desdenhoso, / porque é que na inóspita charneca, / ao sopro da brisa brava, / faz surgir a tácita flor, / que abre, perante Ele só, / o fausto do seu véu cheio de cor, / que espalha aos desertos do céu / os olores do seu cálice, e morre". Respigo estes versos do "Ognissanti" de Alessandro Manzoni, último e incompleto hino do projeto de poemas sacros que, cinquenta anos antes, em 1810,na sequência da sua conversão, esse Verdi da literatura italiana do "risorgimento" iniciara: entre 1812 e 1815, publicara "La Risurrezione", "Il Nome di Maria", "Il Natale" e "La Passione". Em 1822, publicaria ainda "La Pentecoste". Sinto no "Ognissanti", nesta contemplação poética da ação da graça, ou da presença íntima de Deus no coração de tudo - e no coração do homem que não desdenha mas abre ao mundo o límpido olhar da humildade para, em festa de Todos os Santos, comungar também no mistério da vida de todas as coisas - o mesmo louvor das criaturas que se manifesta no "Cantico di Frate Sole" de S. Francisco de Assis. Aliás, o hino de Manzoni chama Sol a Deus, logo na primeira quadra: "Quel Sol che in sua limpida piena / V´avvolge or beati lassú...", esse Sol que no seu pleno esplendor vos envolve, ó bem-aventurados! Mas já o poeta de Assis cantava: "Laudato sie, mi´Signore, cum tucte le tue creature, / Spetialmente messor lo frate sole, / O qual é dia e pelo qual nos alumias. / E ele é belo e radiante, com grão esplendor: / de ti, Altíssimo, traz significação....  ...Laudato si’, mi’Signore, per sora nostra matre terra, / la qual ne sustente et governa, / e produz diversos frutos com flores coloridas e erva..." Aristocrata milanês, o conde Alessandro Manzoni era, por sua mãe, neto do marquês Cesare de Beccaria autor do tratado "Dei dilliti e delle penne" e, com os irmãos Verri, parte fundadora, nos anos 60 do século XVIII, de uma tertúlia que se denominava "I Pugni" e publicava um jornal: "Il Caffe". Títulos sintomáticos de um desejo de renovação cultural e social que desabrochará no "Risorgimento". Tendo ido viver para Paris, com sua mãe, depois da morte do companheiro de exílio dela, Carlo Imbonati, é na Cidade-Luz que, curiosamente, Manzoni regressará à Igreja Católica, por altura do seu casamento com Henriette Blondel, filha de um banqueiro de Genebra, e calvinista entretanto também convertida à confissão católica. Ao que parece por influência do padre Eustachio Degola, com tendências jansenistas. Tudo reunido para que o regresso à Igreja se faça como procura do espírito evangélico, do amor dos pobres e da justiça. Penso que aquele cenáculo de "Os Punhos" (não sorrias...) queria mais a restauração da tradição "italiana" do poder autárquico do que uma união nacional da península itálica. Tal como Verdi, nas suas primeiras óperas, procuraria mais a realização desse vulcão dramatúrgico que lhe musicava a alma do que a proclamação de uma Itália una e livre. Mas o império austríaco era inimigo de si próprio, não teve governo capaz de entender sentimentos ancestrais de pertença a memórias que, se reunidas e conjugadas por uma simples ideia mobilizadora de elites (que se sentem estrangeiras) e de populações (que são a maioria dos 80% de analfabetos que estatisticamente então se registam), são fermento do que chamamos "Nação". A qual, uma vez controlado um território, que com o povo institucionalmente se organiza, realiza outra ideia. Que é a de Estado. O artífice da Itália ressurgida, foi um Camillo, o Benso, conde de Cavour, ligado ainda aos nossos, pelos Lamporecchi. Soube jogar com tudo e todos, até com Garibaldi que, natural de Nice, não lhe perdoou a cedência, à França de Napoleão III, da Savoye e de Nice, ou ainda a retenção do ataque final aos Estados Pontifícios - que, a concretizar-se, embaraçaria o imperador dos franceses - em compensação pelo apoio que recebeu para a afirmação da independência e da hegemonia do reino do Piemonte na Itália libertada de Áustria... Quando morreu, em 1862, Verdi fica sem voz: Camillo Cavour fora, não só a força política subjacente ao movimento elitista e popular que tornara o grito de "Viva Verdi!" na manifestação pública da sigla "Viva Vittorio Emannuelle Re d’Italia!", mas o homem de Estado que o convencera, como a Alessandro Manzoni, a aceitar ser eleito para o parlamento do novo reino, em fevereiro de 1861. Demite-se logo a seguir à morte do político que tanto admirava. Não tem coragem para assistir às cerimónias fúnebres. Tal como essa coragem novamente lhe faltará, onze anos depois, pela morte de Manzoni, o unificador da língua italiana pelo dialeto toscano (e foi propositadamente passar uma temporada a Florença para "lavar nas águas do Arno" o estilo e a língua), o autor de "Adelchi", sobre o desmoronamento do reino lombardo na Itália do século VIII, e da joia do romantismo literário italiano que é o romance "I Promessi Sposi", em que a narrativa das vicissitudes do amor entre um casal lombardo será finalmente guiada pela preocupação com a pauta toscana do italiano (língua oficial e nova) e pela fidelidade ao cristianismo evangélico, na aceitação, humilde e obediente, dos desígnios da Providência... Mas Giuseppe Verdi, oferecerá à memória de Manzoni, a "Messa da Requiem" que já pensara para Rossini e Cavour. A 22 de maio de 1874, na igreja de S. Marcos, em Milão, um ano depois da morte de Alessandro Manzoni, canta-se pela primeira vez o "Requiem", cuja intenção Verdi expusera, em carta a Ricordi, datada de 3 de junho de 1873, escrita portanto no dia seguinte ao do seu retiro e oração junto à campa do escritor: "Gostaria de manifestar o afeto e a adoração que sempre prestei a esse Grande Homem que já não está e que Milão tão dignamente honrou. Gostaria de compor uma missa pelos mortos, para ser executada no próximo ano, no aniversário da sua morte. A missa terá dimensões muito vastas e, além de uma grande orquestra e de um coro importante, exigirá também (não posso, de momento, ser mais preciso) quatro ou cinco cantores principais. Pode considerar esta carta como um compromisso formal". A 24 de Janeiro de 1901 (já eu tinha um anito, vê tu bem!), pela madrugada, Giuseppe sente a hora da despedida. Para o encontro com a sombra e a luz, chamam à sua cabeceira o pároco de San Fedele, o padre que acarinhou os momentos derradeiros de Alessandro, quase trinta anos antes. "Um demorado aperto de mão, um olhar dizendo, uma expressão profunda, asseguravam-me de que ele tinha entrado num pensamento religioso. Foi apenas um instante, mas, para ele, para mim, um instante precioso. Tinha a língua parada, mas os seus olhos falavam-me, como me falava o aperto da sua mão. Foi o último olhar, a última saudação do grande músico italiano. Tive só tempo de os recolher. Não deu mais sinal de si e expirou serenamente"... O Alberto, depois do jantar, por me ter ouvido falar do que - disse eu - seria o "Requiem" de Verdi por ele-mesmo, pôs no gira-discos a gravação feita por Carlo Maria Giulini, com a Elisabeth Schwartzkopf, a Christa Ludwig, e os Nicolai, o Gedda e o Ghiaurov. Cerrou os olhos e deixou-se estar. Admirei-o ainda mais: estava ali, sereno como um franciscano, o homem que não quer que lhe plantem ciprestes na quinta, só porque lhe lembram um cemitério... O céu é bem maior do que nós, Princesa". Alberto Martins de Oliveira morreria alguns meses depois. Terá sido levado pelos pássaros que libertou?


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 10.09.13 neste blogue. 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

Winston Churchill.jpg

 

168. INTRÍNSECA E ESTRUTURALMENTE IMPERFEITOS

O ser humano nasceu imperfeito, é imperfeito e será sempre imperfeito.
A democracia surgiu imperfeita, é imperfeita e será sempre imperfeita.
A liberdade germinou imperfeita, é imperfeita e será sempre imperfeita.
Pela sua própria natureza o ser humano é imperfeito, finito e limitado perante o infinito, dado o seu desconhecimento de valores e princípios intemporais e universais, numa vivência que se move entre o que é tido por real e o ideal, rumo a uma “perfeição” imperfeita e perfectível.
Também fala de imperfeição a famosa frase de Churchill segundo a qual: “A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras já experimentadas ao longo da História”. Uma espécie de mal menor ou menos mau.
Também a liberdade individual de cada um não pode ser usada para negar a liberdade dos outros, sendo uma miragem na sua maravilhosa imperfeição.
Aspirar a um ser humano perfeito, num ser que é intrínseca e estruturalmente imperfeito, é um contrassenso. O mesmo quanto à liberdade e à democracia como ideais jamais alcançados e alcançáveis na sua plenitude.
A ideia de uma crescente e permanente perfeição num mundo em que não somos a medida de todas as coisas, é um absurdo, embora todos lutemos por progressos manifestamente exequíveis e melhoráveis.
Um futuro seguro e justo para todos não passa por objetivos e fins inconciliáveis com a natureza, pois a realidade é o que é e não o que gostaríamos que fosse.

 

29.03.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

DIGO, PORQUE SEI

  


A aldeia descansava do corpo sangrado e abria-se aos sinos de domingo que, de algum modo, pediam coragem e fé.

O cansaço que lhe cabia ao domingo suportar, devotava-o à missa, e o sentido simples de que a vida começaria de novo lá onde se encomendavam as orações mais perto de Deus, aportava uma sedução serena e cândida de que o azeite aguardado pelas lamparinas era um sinal que pressagiaria a esperança.

- Venha. Venha comer connosco, senhor Prior. Recebemos carta do meu irmão. Há-de estar há quatro dias por ler. A gente não sabe ler. A gente só magica. Cada qual é o que é e deve dizê-lo honradamente somos isto e nada mais. Não conhecemos as letras. Tenha paciência, venha lá com a gente, a minha São tem lá uma sopa que é um gosto, a gente toma e até geme de tão boa.

- Tem paciência! Hoje não posso ir, mas irei na semana. Disseram-me que a vossa leira está linda, com Deus!

- Sim, mas a carta, ali pousada. Não a consigo engolir para a alma me dizer se meu irmão é vivo lá na guerra.

- Está tudo bem. Vais ver. Não te apoquentes. De que vale? O que lá vai, lá vai…ele foi chamado para a guerra. Deixa lá! Ele ainda te vai dar muitas alegrias. Não tem morrido ninguém. Só do outro lado. Entendes?

- Entendo. E isso é bom? - E uma lágrima rompeu-lhe pelo rosto.

- Então não?

- Não sei. Nem sei o que faça. Até acho que perdi o meu irmão desde que partiu. E se meu irmão voltar não é o mesmo. Ele era pacífico e nunca matou um animal sem a razão da necessidade. Então acho que, ou já morreu, ou virá ressuscitado num outro.

- Credo! Que dizes? Abres a boca e pecas.

- Eu peco por saber que o meu irmão até o nome perdeu e é um número?  Ele, batizado por si aqui na pia batismal com nome de Aires? Recorda que disse que ele ia ser um rebento de truz? Eu peco por ele aceitar as ordens lá na guerra sem saber do compromisso com a morte? Eu peco se ele vier mutilado e eu me zangar? Eu peco por ser mãe e pai dele pois somo órfãos e nem sei de que rebanho o perdi? Sim, perdi, Senhor Prior. O que está naquela carta é que a aldeia já fugiu dos olhos do meu Aires por submissão às leis das guerras que não são nossas, e já lhe vejo cotos em vez de braços e vir depois à enxada não é o mesmo que filho pródigo em alegria. Mas ele é inocente, senhor Prior, e eu culpado sim, culpado porque quando o vi na carruagem da partida, de lá não o arranquei. Eu peco, mas eles levam as crianças para a morte. Levaram o meu Aires que tão atento se fazia aos campos como ao arco, indefeso de tanta mocidade. Eu peco. Ah se peco!

---

A carta já ardia no fogo. Parecia-lhe que passara meio século. A camioneta da carreira não o trouxe. A carruagem do comboio também não. Aires não regressara nunca mais ao aconchego das sopas familiares. O novo padre confirmara-lhe a inocência do irmão e a sua, mas nada lhe mudou o mundo de rumo.

Desandou ao lameiro e já não se interrogava. E já não se compreendia. Aos outros, sempre a mesma resposta:

- Digo, porque sei.

- Como é que sabes?

- Sei.


Teresa Bracinha Vieira

DUAS OU TRÊS COISAS…


Francisco Seixas da Costa ao escrever Antes Que Me Esqueça – A Diplomacia e a Vida dá-nos um bom conjunto de quadros. Como salienta Jaime Gama, a seleção de textos agora vinda a lume com a chancela da D. Quixote, reflete a pluralidade quase heteronímica do autor, demarcando-se do mero anotador de acontecimentos ou telegramas, sabendo “isolar situações, caracterizar contextos, referenciar protagonistas e situar temas, questões e desafios”. Num tempo dado à superficialidade, encontramos, em cada texto, a preocupação de entender a complexidade do mundo e do género humano – lembrando a História e as mil peripécias que ela nos reserva. O discernimento para nos darmos conta do mundo perigoso que nos cerca obriga a não ficarmos pela superfície que nada esclarece e apenas alimenta a indiferença. De facto, “os seus retratos atestam verve criativa suficiente para deixar antever a alma do escritor que neles se disfarça”. Ao lermos o livro, encontramos uma laboriosa escolha de temas e problemas, que enriquecem aquilo a que estão habituados os leitores dos blogues que o autor anima. E falo no plural, porque não esqueço o finíssimo gourmet que o Francisco é, além de um arguto contador de histórias no seu imperdível blogue Duas ou Três Coisas, que recorda o célebre título do filme de Godard de 1967, protagonizado por Marina Vlady. Não se trata de um livro de memórias. É antes o produto de uma escrita solta, com episódios relatados com humor e ironia, e uma adequada dose de caricatura, evitando a crueldade fácil, incompatível com a experiência de um diplomata rodado e como conhecimento de causa. Daí a cautela em não identificar nomes e pessoas, que em nada reduz o interesse da leitura. Devo dizer que, sendo um fiel leitor da sua escrita, dei por muito bem empregado o que usufrui na leitura deste belo livro.


E lembro o episódio impagável do Senhor Ferreira da Residência do Primeiro-Ministro, antigo funcionário, de simpatia inexcedível, no auge do período revolucionário, a deixar entrar sem qualquer identificação ou diligência de segurança o jovem diplomata, que, espantado, pôde chegar junto dos membros do Governo para a entrega de um documento que era oficial, mas que poderia não o ser. E a justificação do procedimento teve-a com uma simplicidade e candura desarmantes: havia tanta gente, ministros, secretários de Estado, chefes de gabinete, secretários e secretários de secretários, ajudantes vários, que não havia qualquer possibilidade de distinguir, até porque todos eram muito parecidos uns com os outros… Noutra ocasião, ficamos com um sorriso ternurento perante o episódio ocorrido no Gabinete Português de Leitura do Rio, numa cerimónia da máxima solenidade, o Presidente Lula embevecido pela arquitetura imponente e pelas estantes recheadas com quase meio milhão de livros, com luminosidade única, deu-se a acenar levemente para alguém que devia estar num dos varandins superiores. Tratou-se, no entanto, apenas de saudar um grupo de empregadas com bata de trabalho que se haviam colocado lá no alto para verem o seu Presidente.


Num 1º de abril, o Embaixador em Paris não resistiu a lançar em ambiente adequado uma mentira piedosa, verdadeiro poisson d’avril. Cansado de ouvir histórias sobre as famosas concierges portuguesas, usou da melhor circunspeção para dizer: “Há um segredo que vos quero contar, embora peça a maior discrição. Como devem imaginar, a existência de uma imensidão de concierges portuguesas em muitas casas de Paris não passou despercebida aos nossos serviços secretos. Naturalmente, eles não podiam deixar de aproveitar o potencial que representava a existência de um grupo de cidadãs nacionais colocadas em lugares tão vitais para a obtenção de informações”. A ideia era imaginosa e não pôde deixar de causar preocupação nos circunstantes, que certamente passaram a ver com outros olhos aquelas pacatas senhoras, que deveriam ter de ser vistas com mais cuidado…


GOM

JESUS E O REINO DE DEUS

  


Na fé, pergunta nuclear é em que Deus se acredita e no que é que, acreditando, muda na vida, na compreensão do ser humano e do mundo. Não seria digno da pessoa acreditar por medo, acreditar num deus que humilha o Homem, num deus que, na sua eternidade feliz, permanecesse indiferente à história humana enquanto um mundo de sofrimento.


Na tradição da experiência cristã, embora a relação com Deus se não esgote na ética, a salvação a partir de Deus é experienciada e vivida no meio do mundo, na relação inter-humana, tanto no amor face a face como na transformação política das estruturas e situações que impedem um mundo de rosto humano. Neste sentido, “fora do mundo não há salvação”, como sublinhava o teólogo E. Schillebeeckx.


Para os cristãos, Deus revelou-se de modo definitivo, embora não exclusivo, na figura histórica de Jesus de Nazaré. E o núcleo da mensagem de Jesus, na sua pessoa, nas suas palavras, na sua vida, na sua morte, é o Reino de Deus. E o Reino de Deus é o próprio Deus enquanto amor incondicional, amor soberanamente libertador dos homens, que fazem a sua vontade. E a vontade de Deus é o Homem digno e livre, o mundo  d na paz, na alegria, as pessoas na justiça, no amor, num mundo fraterno, sem dominadores nem dominados.


No contacto com Jesus, muitos, sobretudo os pobres, os desprezados, os doentes, os publicanos e pecadores públicos, os leprosos, os excluídos tanto pela sociedade como pela religião oficial, experienciaram a libertação e a salvação vinda de Deus, reencontrando a dignidade de ser ser humano e saboreando outra vez a alegria de viver. E Jesus tinha consciência de agir e proceder como o próprio Deus procederia, e aqueles que nele acreditaram fizeram e experiência de que, com ele, o próprio Deus e o seu Reino estava no meio deles.


Outros contemporâneos aperceberam-se nitidamente da ameaça e do perigo que Jesus constituía, tanto no domínio religioso como político. Para Jesus, também se tornou claro que o seu anúncio e práxis de um Deus, a quem chamava Abbá, Pai querido, e que não se deixa confiscar por uma casta religiosa que, em ordem à salvação, se apoiava no mérito, no cumprimento da “Lei” e no sacrifício, desconhecendo a misericórdia e a graça, o levariam inevitavelmente à morte. A sua crucifixão teve, assim, motivos religiosos e políticos: o seu Deus era não só perigoso e subversivo politicamente, mas também falso do ponto de vista religioso oficial. Jesus não foi vítima de um Deus sádico, mas de homens, que queriam perpetuar o mal e o sofrimento nos outros homens. A morte de Jesus é a expressão do seu amor incondicional, até ao fim, a Deus tal como o compreendia, isto é, como um “Deus dos homens”, portanto, a favor da dignidade e contra o mal e o sofrimento. Condenado como blasfemo e subversivo, a sua mensagem, do alto da cruz, continua a ser: sois livres para o amor sem condições.


Ressuscitando Jesus, Deus mesmo confirma que está do seu lado, comprometendo-se com a libertação total do ser humano. Também para os cristãos, na História há acaso e necessidade, autonomia e liberdade. Não sendo um mero espectáculo de marionetas, a História pode falhar; porém, a fé no Deus de Jesus, desde a criação por liberdade doadora, funda a esperança de que nem o mal nem a morte dão xeque-mate definitivo a Deus. A fé na ressurreição estaria, no entanto, sempre ameaçada de projecção ilusória, se não tivesse tido realizações fragmentárias antecipadas de libertação e sentido: como a cruz é consequência da maneira de viver de Jesus, também a ressurreição não superaria a acusação de ideologia compensatória, se não tivesse havido a sua antecipação na práxis histórica de libertação e salvação, apoiada na fé de que Deus mesmo, na sua liberdade soberana, decidiu ser um “Deus dos homens”.


Por isso, como o ponto de partida da obra de Jesus foi o anúncio do Reino de Deus, isto é, “a sua experiência do contraste que clama aos céus entre este mundo de injustiça e de sofrimento e a sua vivência de Deus como Pai ou a sua experiência de Deus como princípio de vida simultaneamente paterno e materno”, assim a evangelização por parte da Igreja não pode ser indoutrinação, mas tem, em primeiro lugar, de consistir em “tornar os homens conscientes do intolerável da opressão em que vivem”: este é “o verdadeiro ponto de partida para uma missionação autêntica” (E. Schillebeeckx). Assim, a evangelização não consiste propriamente em conquistar adeptos para a Igreja, mas situa-se na frente dos conflitos, quando a Igreja se coloca do lado dos oprimidos na sua luta por mais humanidade e futuro. Precisamente a preferência pelos pobres e desprezados é a prova maior do significado e relevância universais do Evangelho. Neste combate, está viva uma leitura da História no seu reverso, que é a história dos oprimidos, e a denúncia dos males que os homens causam aos outros homens.  Sem este serviço profético-crítico e político, a fé não tem conteúdo real e continua sob a ameaça de ilusão ideológica. Por outro lado, a política, sem a referência à reserva escatológica divina, sem a relação festiva, contemplativa e doxológica  com o mistério do Deus vivo, estará sempre radicalmente ameaçada de totalitarismo, niilismo e barbárie. Sem realizações, embora fragmentárias, de libertação intra-histórica, a salvação meta-histórica não seria crível. A salvação começa a operar-se neste mundo, esperando a sua consumação para lá dele.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 23 de março de 2024

A VIDA DOS LIVROS

  
De 25 a 31 de março de 2024


Num tempo que obriga a pensar e a recordar o longo caminho percorrido até à democracia, falamos de um pequeno livro da Editora da Universidade Católica, reproduzindo um diálogo extremamente rico e oportuno entre o Padre João Resina Rodrigues e Mário Sottomayor Cardia. O título Cristianismo e Marxismo em Debate nos anos 70 procura ser fiel ao que ocorreu nesse encontro.

 


UM DEBATE ANTES DE ABRIL
O tema proposto pela Juventude Universitária Católica (JUC), em virtude das limitações da censura e das limitações políticas da altura, era, no entanto, apenas “Significado Político e teológico dos Direitos do Homem”, a propósito do 25º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o décimo aniversário da encíclica Pacem in Terris do Papa João XXIII. A publicação constitui um pequeno tesouro descoberto pelo jornalista José Pedro Castanheira, antigo militante da JUC, e corresponde à transcrição do colóquio realizado na sede da organização a 19 de janeiro de 1974, pouco antes da revolução de Abril.


O documento permite a compreensão dos caminhos trilhados pelo catolicismo português inconformista. É o espírito de abertura do Concílio Vaticano II que aqui se sente, ligando-se a leitura deste documento aos acontecimentos que marcaram a consciência dos jovens católicos no final do Estado Novo. Com efeito, a orientação do Concílio Vaticano II no sentido da recusa do eurocentrismo, da compreensão dos sinais dos tempos e do reconhecimento da importância do papel na Igreja do Terceiro Mundo levou à tomada de consciência da necessidade da Paz em África e do reconhecimento dos direitos à autodeterminação. Ouvia-se, assim, o que Emmanuel Mounier dissera no seu L’Éveil de l’Afrique Noire. Tal atitude integrou-se, assim, num conjunto de momentos-chave, que contribuíram para a necessidade de uma mudança cívica e política, desde as vigílias da paz na Igreja de S. Domingos (1969), onde foi cantado “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” (de Sophia de Mello Breyner), e na Capela do Rato (1972-73); o julgamento dos padres de Macúti, em Moçambique; o assassinato de Amílcar Cabral; a denúncia dos massacres de Wiriamu pelo Padre Hastings, a posição crítica do Bispo da Beira D. Sebastião Soares de Resende e enfim o golpe das Caldas da Rainha em 16 de março de 1974. Contudo, não podemos esquecer que desde o início dos anos sessenta, a presença dos católicos fez-se sentir na tomada de posição do Bispo do Porto (1958), na revolta de Sé (1959), no documento sobre a liberdade dos católicos de 1959 (cujo primeiro subscritor foi o padre Abel Varzim), no golpe de Beja (1961), na crise académica de 1962, no apoio à presença de Paulo VI ao Congresso Eucarístico de Bombaim (1964), no Manifesto de Alguns Católicos ou dos 101 (1965), na contestação do Seminário dos Olivais em 1967-68, nas tomadas de posição dos Padres Felicidade Alves e Mário de Oliveira e no nascimento de publicações como O Tempo e o Modo, Concilium, Direito à Informação, Cadernos Necessários, Cadernos de Reflexão da JUC, Boletim Anticolonial e Cadernos GEDOC. Além disso, deve recordar-se o órgão da JUC, Encontro, e o surgimento do MRAR - Movimento de Renovação da Arte Religiosa, da editora Moraes, do Círculo do Humanismo Cristão, a ação do Centro Nacional de Cultura, do CCC-Centro Cultural de Cinema, das cooperativas Pragma e Confronto e a criação do Instituto Superior de Estudos Teológicos.


CRISTIANISMO E MARXISMO
A leitura hoje deste diálogo assume, pois, uma especial importância, uma vez que demonstra como os jovens da JUC continuavam atentos à evolução dos tempos e à necessidade da tomada de consciência de que a construção da democracia precisaria de ser pensada a partir da consideração dos direitos humanos, como pedra angular da institucionalização da liberdade. Assim, o Padre João Resina, engenheiro de formação e futuro professor do Instituto Superior Técnico, assistente religioso da JUC, afirmava que “a Palavra de Deus não nos dá receitas mas inspirações e, aqui e além, um estilo novo para viver”, daí a necessidade de compreender que não seria possível viver o amor aos outros sem a preocupação com o andamento da História. E acrescentava: “Fomos capazes de ressuscitar, embora por apelo de Marx, aquela palavra primeira do Livro do Génesis, segundo a qual Deus, depois de ter simbolicamente descansado da criação, nos deu a missão de cultivar e guardar a Terra. Hoje estamos a tomar isso a sério”. E assim, Deus, “em vez de nos dar receitas”, põe-nos a caminho. A verdade da vida teria de ser conquistada no dia a dia, numa dialética “que correspondesse ao encontro com o real, ou seja, com os outros, mas também com a nossa consciência e com Deus”. Para Sottomayor Cardia, filósofo, antigo membro do Partido Comunista e chefe de redação da “Seara Nova”, chamava a atenção para uma primeira formulação dos direitos do homem, “como resistência individual ao poder”, seguindo-se uma outra perspetiva de “participação na formação do poder”, devendo acrescentar-se um terceiro sedimento, correspondente à prestação de benefícios sociais. Nestes termos, o indivíduo passou a exigir “à sociedade a prestação de certas contribuições para a organização da sua vida. E aqui se supera o esquema individualista inicial”.


VOZ INSUBMISSA
Como uma voz insubmissa, o Padre João Resina, recusou então desassombradamente a lógica social assistencialista: “Hoje não é com Conferências de S. Vicente de Paulo que conseguimos resolver a situação dos pobres. Marx teve carradas de razão quando disse que a injustiça depende de mecanismos. Isto é, em tempos pode ser que tenha havido os maus; hoje os maus são sobretudo os sistemas e os homens que se deixam aprisionar por eles”. E em resposta, Mário Sottomayor Cardia falava na “apropriação da obra humana pelo seu obreiro”, acrescentando que o lucro capitalista, na sua expressão natural, punha em causa a própria democracia. O debate é denso, por vezes quase cifrado, abrangendo a política, a história, a economia e a sociologia. Em causa estava a origem e a expansão dos direitos humanos e a sua valorização pelo cristianismo e pelo marxismo. E Sottomayor Cardia punha a tónica na pergunta: são os direitos humanos prerrogativa ou objetivos de luta, enquanto o seu interlocutor falava de um caminho humano, lembrando Terêncio, quando este afirmava que “nada do que é humano nos pode ser estranho”. O que estava em causa, essencialmente, era enfatizar, naquele momento, a necessidade de pluralismo, de abertura e de diversidade. O debate e o diálogo que se desenvolvia fazia, no fundo, luz sobre a necessidade premente de superar o impasse a que o regime chegara, sem capacidade de abrir novos horizontes políticos no sentido da democracia política, económica, social e cultural. Como diz António Araújo no prefácio do livro: “na conversa entre Sottomayor Cardia e Resina Rodrigues pressente-se em cada palavra, em cada linha – se quisermos, na própria realização do encontro -, que o regime do Estado Novo se encaminhava para o fim, e a uma cadência mais acelerada do que então se pensava”. Era um debate no futuro, como se um relógio já se tivesse adiantado…     


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE PEDRO MEXIA 

  


Vida de Cristo


No improvisado salão paroquial
velhas cadeiras desalinhadas anunciavam
um filme sobre «a vida de Cristo».
Éramos crianças, veraneantes,
figueirenses, crianças comungantes
mas ainda sem tormenta e com os adultos
curiosos ou tomados de fastio
fomos, oito da noite, para a vida de Cristo.
Mas alguém trocou os filmes
ou espalhou carnavalesco engano,
e logo na primeira bobine entendemos
que não era a Palestina
que o facho de luz poeirento projectava
no écran tão amador
que só podíamos chamar pantalha.
E aos poucos entrámos na narrativa.
Vera Cruz, western heráldico, napoleónico,
quase operático. Morria gente
(que ressuscitava fora de campo)
e houve quem achasse que não sendo sobre
Cristo era a fábula imprópria
antes de dormirmos.
Mas o acampamento estival das crianças
tomava partido, vitoriava,
abraçava com braços pequenos
o efeito de alienação, as sombras humanas.
Julgo que brilhavam no fim
os nossos olhos infiéis,
belicosos, inimigos de Maximiliano.
Esvaída para sempre a surpresa, a pureza,
o motim de fascínios, a noite clara.
Nunca mais foi a mesma, a vida de Cristo.


in Menos por Menos – Poemas Escolhidos, 2011


Life of Christ


In the improvised church hall,
disordered rows of chairs announced
a film on ‘the life of Christ’.
We were children, on holiday
at the seaside, who still took communion
untroubled, and in the company
of curious or loafing adults
went at eight sharp to the life of Christ.
But someone mixed up the films
or set up a mischievous prank,
and from the start we knew
it was not Palestine
that the dusty beam of light projected
onto such a makeshift screen
that we could only call a sheet.
And soon enough the story swept us on.
Vera Cruz, heraldic western, napoleonic,
almost operatic. People died
(and resurrected out of sight)
and someone thought that not being
about Christ it was an unsuitable tale
for us to see at bedtime.
But the children’s summer camp
took sides, prevailed,
embracing with full, small arms
the alienation effect, the human shadow.
In the end, I believe our eyes
had the shine of Maximilian’s
treacherous, belligerent enemies.
Forever gone the surprise, the purity,
the mutiny of fascination, the clear night.
It was never the same, the life of Christ.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese 

 

ANTOLOGIA


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA


"... la douce folie de parler avec des fantômes durant la moitié de sa vie" 

Jean Louis Schefer


1
 - Desde 1997, Jean Louis Schefer manda-me, com regularidade, os livros que publica e que, nestes quase sete anos, são já 19. Tudo começou, andava eu de cadeira de rodas, quando ele veio a Lisboa, num Julho suave, para apresentar 20 filmes a que chamou "imagens efémeras e inquietas". De imagem em imagem, fomos conversando efémera e inquietantemente. Havia de quê, já que juntar a história do homem que minguou tanto que se transformou num verme ("The Incredible Shrinking Man", Jack Arnold 1957) à Paixão de Cristo ("Ato da Primavera", Manoel de Oliveira, 1963) ou à Ressurreição da Carne ("Ordet", Carl The Dreyer, 1955) não parecia coisa muito ortodoxa, nem muito sossegada. 


E, numa certa tarde de Sintra, à ida ou à vinda de Seteais, pensei estar diante do homem certo para me acompanhar num desafio que há muito eu tinha comigo mesmo. Organizar um ciclo sobre "Cinema e Pintura", que fosse tudo menos o costumeiro desfile de filmes de quadro na boca (género dessa "Rapariga com Brinco de Pérola" que anda por aí a extasiar tanta gente) ou de filmes de pintores, com pintores ou sobre pintores. Julgo que ele percebeu mais ou menos o que eu queria dizer na minha (não era fácil) e aceitou o convite à viagem. Até a ideia se concretizar, num nevoento seminário no Convento da Arrábida, em Novembro de 2001, e numa missanga de mini-ciclos de nove em renge durante o ano de 2002, foi a minha vez de ter muitas surpresas. Às duas por três, achei-me metido numa "academia de segredos", em que o segredo para se ser académico era estar nas boas graças do Sumo Sacerdote, obviamente o próprio Schefer. Para meu grande espanto, vi-me mesmo transformado em personagem de ficção nos capciosíssimos diários dele, chamados "Main Courante". Um dia contarei a pele que ele me fez vestir, associando o fantasma da infanta de Oscar Wilde ao de "une toute jeune fille", que entrou na sala enquanto eu contava a história do tal anão. Adiante, que eu próprio vivo mais no imaginário dos outros do que nas memórias minhas, com culpas repartidas. Mas, agora, que há um certo tempo não o vejo e há um certo tempo lhe devo notícias (tarda a sair o livro das minhas pinturas e dos cinemas dele), Jean Louis Schefer voltou a bater-me à porta. Com força.


2
 - Publicado pelas Editions Enigmatic (estão a ver?) chegou um livro que, se se não chama "A Casa Encantada", chama-se "Uma Casa de Pintura" ("Une Maison de Peinture"). 


Schefer socorreu-se do camaleão de Tertuliano, esse bicho "que tem a virtude de mudar completamente sem deixar de ser o que é", para fazer desfilar em reproduções de qualidade desigual, mas todas oriundas de fabulosos originais, uma espécie de "museu bem pouco imaginário", onde, em grandes páginas, lado a lado, se "reorganizam por simpatia, malícia ou ingenuidade", museus bem reais, propondo associações que mais têm que ver com afinidades emocionais do que com escolas, épocas ou autores. A pintura tem um lugar predominante, mas as associações não são apenas entre quadros. Cristalografias e celestografias de Strindberg, baixos-relevos dos Templos de Luksor, pavimentos das Catedrais de Chartres, de Amiens ou de Otranto, o fresco do Mergulhador de Paestrum, fotografias de Deakin (o retrato de Bacon com as postas de carne) o pré-histórico "Painel dos Leões" da Gruta de Chauvet, desenhos de escritores, juntam-se à "perpétua instabilidade da pintura" na edificação desta singular casa-livro com paredes de papel. 


Livro que cristaliza um velho sonho meu, livro que as "Metamorfoses" de Jorge de Sena anunciaram (agora percebo porque é que Schefer tanto me pediu esses poemas, de que lhe falei), livro que me confirmou na certeza de que nós próprios somos a mutação ou metamorfose maior de todos estes fantasmas. Fantasmas das salas escuras e dos museus velhos, fantasmas que não são nosso duplo, mas nosso uno.


3
 - Os 164 fantasmas invocados por Schefer - ou convocados para a casa de Schefer - vêm de todas as épocas. Já me referi à pré-história e ao Egipto. Podia ter citado os frescos bizantinos da Moldávia ou um mural românico de Saint-Savin sur Gartempe ("A Arca de Noé"). Depois, de Giotto a Bacon, muitíssimos foram os escolhidos. O mais representado é Goya, porventura por ter sido quem mais buscou monstros no sono da razão geradora. Há associações estupendamente evidentes como a que aproxima o "Study after the Human Body" de Bacon ao inadjectivável retrato do Arcebispo Filippo Archinto, do Museu de Arte de Filadélfia, que havia jamais visto, por e para vergonha minha. Em Bacon, um homem nu, de costas, acaba de atravessar um cortinado violáceo e transparente, mas tudo é tão seco e áspero que se dissolve qualquer diafaneidade; em Tiziano, o véu do cortinado, cobrindo apenas a metade esquerda do corpo sentado do arcebispo (pomposamente vestido e enquadrado acima dos joelhos) deixa ver muito mais dele do que a metade desvelada. Não o obscurece, ilumina-o, ao mesmo tempo que lhe transforma a carne (a mão esquerda pousada no colo), numa espécie de caveira ou de máscara mortuária, em que mais avultam os espaços negros entre os dedos do que estes, como se fosse disforme mão, mão que podia ter sido pintada por Bacon. A fantasmagoria repassa do nu de Bacon para o excesso de indumentária do príncipe da Igreja e a alquimia da aproximação opera o mesmo milagre que tanto conhece quem conhece museus: do "São Jorge e o Dragão" de Uccello para a "Anunciação" de Filippo Lippi, no National Gallery de Londres, da "Salomé" de Cranach (aliás, uma das reproduções do livro) para o "São Jerónimo" de Dürer no Museu das Janelas Verdes. 


Mas há associações (e são as mais numerosas) que só se descobrem após muito ver ou que passam de página para página: do sexo que o "Grand Nu Rose" de Picasso (do MOMA) esconde pudicamente com as mãos, passa-se para o que a "Maja Desnuda" de Goya nos oferece. Entre eles, vê-se o Bellini de Besançon ("A Embriaguez de Noé") em que sempre tive as maiores dúvidas sobre qual ou quais dos três filhos do Patriarca cobrem com o manto de seda rosa as vergonhas do pai (esse velho estranhíssimo, de longas barbas brancas e corpo de adolescente efeminado) ou se todos o estão a desnudar, na expectativa perversa de ver finalmente aquilo que todos fixamente olham.


4
 - De qualquer modo, para quê tantas palavras quando visões não tenho nenhuma para vos dar, à exceção da que aleatoriamente escolhi e que não é nenhuma destas: o desenho de Miguel Ângelo, a lápis preto sob papel, chamado "O Sonho da Vida Humana", que se conserva nas Courtauld Institut Galleries. 


É estulto o meu propósito, como são estultas tantas palavras? Demasiado sei que sim e demasiado sei que não. Sim, porque o leitor não tem acesso aos fantasmas de Schefer nem aos meus e não tem diante dos olhos, como eu tenho, essas aparições e essas metamorfoses. Não, porque à leitura outros fantasmas - pelo menos assim o acredito - virão avejar em vosso redor, por muito diversos que sejam das figuras fantásticas que ora evoco. Como escreve Schefer: "Deve ser do museu, como da coleção que formamos na ideia, como de biblioteca. Nada se segue por necessidade. Mas tudo se adiciona segundo uma ordem imprevisível. Em labirintos estamos." E em labirintos, por hoje, não mais me aventuro, que para a próxima cá estarei de novo, com outros desses fantasmas com quem falei mais de metade da minha vida. 


Mas não vos deixo sem vos contar o sonho do Dilúvio, sonho de liquefacão (sonho do "Mergulhador" de Paestum), sonho final ou sonho inicial, quando viemos dos fantasmas ou para os fantasmas voltarmos. Albrecht Dürer o sonhou e assim contou: 


"Em 1525, na noite de quarta para quinta-feira depois do Pentecostes, tive, durante o meu sono, a seguinte visão: numerosas e fortes trombas de água caíam do céu. 


A primeira chegou à terra, a quatro milhas de mim. Com terrífica potência e imenso estrondo, esmagou-se no solo e inundou as planuras. E foi em mim um tal terror que despertei antes que outras trombas tombassem. Mas as trombas que tombavam tão fortíssimas eram como as da visão que tivera. Umas longe tombavam, outras tombavam perto, de tão alto vindo que se me afigurava que lento era o seu tombar. Mas, quando a primeira tromba que atingiu a terra chegou mui cerca de mim, tombou com tal rapidez, acompanhada de tanto vento e de tanto estrépito, que me atemorizei a tal ponto que, despertado, todo o meu corpo tremia e passou longo tempo antes que recuperasse o ânimo. De manhã, ao alevantar-me, pintei tudo isso tal como o havia visto." 


No que Dürer pintou não ficou representado qualquer corpo. Apenas céus, nuvens, água e terra empapada. Schefer ensinou-me que alguns sustentaram provir a palavra "forma" do grego "orama", que é "orai", ou seja "eu vejo". 


Enquanto outros disseram que a palavra derivava de "morpha" por "morphé". Morfeu é, como se sabe, o filho do Sono e da Noite, o irmão de Fantásios e de Fobétor, aquele que dá os sonhos aos homens. Representavam-no com asas de borboleta e tendo na mão um ramo de papoilas, dessa espécie a que também se chama malícia-de-mulher. Voltei ao princípio: doces folias.


João Bénard da Costa
7 de fevereiro de 2004, Público

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


167. INTERROGAÇÕES SOBRE A LÓGICA DO PROGRESSO


Se no mundo técnico e científico o progresso é marcado por uma evolução gradual, linear e de permanente inovação, o mesmo não se verifica nas relações dos humanos uns com os outros.


Não há troca de eletrodomésticos, computadores, telemóveis, máquinas ou meios de transporte tecnologicamente mais eficientes e confortáveis por outros mais antigos, desadequados, desatualizados, ultrapassados e ineficientes.   


As coisas, os objetos, o dinamismo dos utensílios e do saber encaminham-se para a sua perfeição, melhorando continuamente, numa tendência universal que atravessa todas as latitudes e longitudes, independentemente das determinações étnicas de uma comunidade, grupo social ou cultura.


Indicia-se não haver regressão no progresso técnico e científico, na dinâmica inteligível dos utensílios e das coisas, que se intui como crescente e irreversível, ao invés das várias formas de relacionamento humano, como no universo político e simbólico, tidas como repetitivas, progressivas, regressivas, com avanços e recuos, onde se indicia existirem problemas insolúveis, reversíveis, subjetivos e geradores de incerteza. 


Intui-se que o tempo cumulativo do desenvolvimento científico e técnico é portador de uma evolução e inovação progressivamente contínua. 


Intui-se que o tempo cumulativo do desenvolvimento das relações das pessoas umas com as outras não melhora permanentemente, pode ser progressivo ou regressivo, pode trocar-se uma democracia por uma ditadura e o inverso, abolir-se ou instituir-se a pena de morte e a prisão perpétua, trocar-se uma religião humanista por uma inquisitorial e sanguinária, por mais que se tente absolutizar e universalizar os direitos humanos, de génese meramente ocidental, para muitos. 


E se o computador é um progresso irrefutável, um sem número de vezes superior, em relação ao ábaco e à sua calculadora, não se pode dizer que Gandhi, Luther King ou Mandela são personalidades morais superiores a Buda, Jesus Cristo ou Maomé. Que filósofos contemporâneos são mais “profundos” que os da antiguidade como Sócrates, Aristóteles e Platão. Que Jackson Pollock e Andy Warhol superam Caravaggio e Leonardo da Vinci, que as obras de Shakespeare ultrapassam a Ilíada e a Odisseia, de Homero.       


Indicia-se que a noção de progresso é menos aceitável e mais questionável, senão mesmo inviável, na ordem afetiva, intelectual, psicológica, política e simbólica das relações humanas, dada a sua natureza e condição, como o provam os clássicos na sua intemporalidade, pois “está lá tudo”, desde que há escrita, como é usual dizer-se, pelo que, nesta perspetiva, a guerra, por exemplo, tem caraterísticas de permanência na História da humanidade, o que não exclui tentar expurgá-la, a todo o tempo e em qualquer circunstância.


22.03.24
Joaquim M. M. Patrício

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