ANTOLOGIA
UMA QUESTÃO DE TÁXIS…
por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa:
Estou desde domingo em Lisboa, vim passar a semana com o Alberto e a tua irmã. Cheguei cansado da viagem, não parei naqueles quinze dias de Japão, e a paragem em Paris não chegou para me desvanecer o "jet-lag". Imagina que esta noite tive um sonho estranho. Estava em Tokyo, apanhei um táxi na Aoyama-dori, ia jantar com os Sakai, ali para as bandas de Jiyugaoka. Conheço o percurso, pois a rua, como tantas em Tokyo, não tem nome, mas sei desembrulhar algum japonês para explicar ao taxista por onde seguir: "masugu", "hidari ni magaté kudasai", "ano... aré migi desu!". Mas, repentinamente, ao chegarmos a Omoté-Sandô, já não estávamos na Aoyama-dori: íamos pela avenida de Roma fora, já perto da praça de Londres, em Lisboa! O bom do motorista entra em pânico, vendo todos os carros a circular pela direita e só ele pela esquerda. E eu mergulho em angústia quando, por detrás da igreja de S. João de Deus, o táxi pára num beco que termina numa capoeira. O sonho acaba comigo, interdito, imóvel, a ver o motorista pegar num saco de grãos de milho e ir lançá-los às galinhas, cacarejando como elas. Ocorreu-me Pascal: "Je ne sais qui m’a mis au monde, ni ce que c’est que le monde, ni que moi-même; je suis dans une ignorance terrible de toutes choses; je ne sais ce que c´est que mon corps, que mes sens, que mon âme et que cette partie même de moi qui pense ce que je dis, qui fait réflexion sur tout et sur elle-même, et ne se connaît non plus que tout le reste"... Jean Guitton cita este texto para afirmar, numa nota biográfica introdutória a uma edição das "Pensées" de Pascal: "Toda a vida dele é uma tentativa desesperada, até à morte, para tentar compreender". O facto de sofrer de um mal congénito - que recorrentemente lhe trazia tremuras e perturbações intestinais e, quando criança, fobias histéricas (à água ou à aproximação dos pais um do outro) tê-lo-á empurrado para esse desespero de querer tudo entender... É curioso observar como Pascal, desde pequeno, se interessou pela geometria e pela aritmética, pela física e pela matemática. Deixou-nos ensaios sobre os corpos cónicos, o triângulo aritmético, o vácuo, o equilíbrio dos licores ou a gravidade da massa do ar. Foi considerado, por Leibniz, "um dos melhores espíritos do século". A investigação científica, que nunca abandonou, não o desviou, todavia, do recurso ao que estimava serem, pelo percurso da sua conversão religiosa, outros meios de acesso ao conhecimento.
Daí a sua crítica de Descartes: "Não posso perdoar a Descartes: ele bem quisera, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus; mas não conseguiu impedir-se de O levar a dar um piparote para pôr o mundo em movimento; desde então, já não sabe o que fazer de Deus... A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral no tempo da aflição; mas a ciência dos costumes consolar-me-á sempre da ignorância das ciências exteriores". Pessoalmente, penso que Pascal esteve mais perto dos jansenistas, afetivamente - até porque a sua irmã Jacqueline, que lhe era tão querida, professara em Port-Royal - do que, teologicamente, do jansenismo. Mas é inegável que "pensassente", na tradição de Sto. Agostinho, de modo próximo do flamengo Jansenius, bispo de Ypres, no seu "Augustinus". A conversão do homem, escravizado pelo prazer, corrompido pela concupiscência, só é possível pela graça agente de Deus que, sem destruir o livre arbítrio humano, não o submete necessariamente. Conhecida por "tese da graça eficaz", opõe-se à "tese da graça suficiente", defendida, na esteira de Molina, pelos jesuítas coevos de Pascal, que afirma a ineficácia da graça sem participação do livre arbítrio. Deixemos a teólogos escolásticos as argumentações de diferenças e oposições. Creio que, em Pascal, a religião é sobretudo um exercício de abertura mística à operação da Graça. Pois que, "se não nos devemos admirar por ver pessoas simples acreditarem sem raciocinarem", também é verdade que "a maior das verdades cristãs é o amor da verdade". São aparentemente muitos os paradoxos em Pascal. Mas são os nossos, os da nossa condição. Os "Pensamentos" são uma obra incompleta, até desligada: Pascal ia-os anotando em folhas de papel, riscava depois uns, corrigia outros...ou, ainda, cortava as folhas em tiras, para separar ideias, e perfurava-as depois, de modo a poder arquivá-las diferentemente ligadas por um cordel. Numa dessas seleções, reunida sob o título "divertimento", escreve: "A nossa natureza está no movimento; o inteiro repouso é a morte... Condição do homem: inconstância, aborrecimento, inquietação... Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto fosse menos divertido, como os santos e Deus... A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e todavia é a maior das nossas misérias. Porque é o que nos impede principalmente de pensar em nós, e o que insensivelmente nos perde. Sem isso estaríamos no aborrecimento, e esse aborrecimento empurrar-nos-ia a procurar um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento agrada-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.” Este homem, filho da nobreza de toga - não histórica, mas de ciência e cargos remunerados - fez amigos em meios muito diversos, desde a alta nobreza aos intelectuais, dos boémios aos religiosos confessos. Morreu aos trinta e nove anos, deixando obra: para além dos ensaios científicos e dos "Pensamentos", muito disto só postumamente publicado, escreveu em colaboração, ou redigiu a maior parte dos textos que compõem os "Écrits des Curés de Paris" e a "Lettre d’un avocat au Parlement à un de ses amis", que, aliás, dão continuidade às suas "Provinciales", nas polémicas com os jesuítas. As cartas ao provincial dos jesuítas,"Les Provinciales", são assinadas por Louis de Montalgue que, alhures, o próprio Pascal trata como outra pessoa, tal como fará com Amos Detonville que, relativamente aos seus trabalhos matemáticos para o "concours de la roulette, que ele abre, assinará a " Lettre à M. de Carcavy"; o mesmo fará com Salomon de Tultie, autor da "Apologie de la réligion chrétienne". Nenhum deles é simplesmente um pseudónimo: Pascal imagina-os e cria-os como personalidades distintas dele mesmo. São heterónimos, são outras pessoas. Recentemente, na sequência daquela antologia que o Adolfo Casais Monteiro publicou no Brasil - e de que te oferecerei um exemplar, que me fora cedido pelo Alberto - fala-se muito, aqui em Portugal, do poeta Fernando Pessoa e dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis Talvez venha a ser uma das maiores revelações literárias do nosso século...Tenho-me interessado por ele, fascina-me esse tal desespero de uma procura de si. Como em Pascal. Por mim, vou-me hoje contentando com a luz acolhedora de Lisboa, que aqui no jardim ilumina as minhas leituras e a procura de ti, que esta carta é. Afinal, sempre procurei, em mim e na minha relação a ti, um caminho para que te sentisses bem... E o amor talvez seja esse querer bem, um caminho com curvas e alguns enganos, mas que segue procurando. Será isso a fidelidade. Esta, tão funda, que até ti me trouxe, num táxi que apanhei em Tokyo, se perdeu em Lisboa, e acabou por embarcar Pascal e Fernando Pessoa".
Desde que li e traduzi esta carta de Camilo Maria, só ando de táxi!
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 06.09.13 neste blogue.