CRÓNICAS PLURICULTURAIS
166. PRIMAZIA LEGAL E MORTE MORAL COMO JUSTIFICAÇÃO
1. Professor - As sociedades pensam que se regem por uma coisa chamada “moral”, mas não é verdade.
Regem-se por uma coisa chamada “lei”.
Não se é culpado só por ter trabalhado em Auschwitz. Oito mil pessoas trabalharam em Auschwitz. Dessas oito mil, apenas 19 foram condenadas e apenas 6 por homicídio. Para provar um homicídio temos de provar intenção. É a lei.
Aluno - A questão nunca é se foi errado, mas se era legal e segundo as nossas leis?
P - Não. Segundo as leis da época.
A - Mas não é redutor?
P - Sim. A lei é redutora.
A - Por outro lado, suspeito que as pessoas que matam outras pessoas tendem a estar conscientes de que é errado (excerto do filme “The Reader”/“O Leitor”).
Bruno Day (BD), guarda das SS da Alemanha nazi, no campo de concentração de Stutthof, foi condenado, aos 93 anos, por ter colaborado no assassinato de 5230 pessoas alegando, em seu benefício, só ter, à data, 17, sendo menor e um membro inócuo de um sistema legal autoritário e burocrático a que devia obediência. A sua defesa recorreu ao argumento de Adolf Eichman (AE), no julgamento em Jerusalém, ao invocar a obediência hierárquica inserida numa estrutura administrativa de hierarquização rígida e de dependência acrítica, que anulava o espírito crítico, a ética e a moral, pelo que ambos teriam sido vítimas duma autolimitação ou remoção da sua capacidade de livre arbítrio.
A centralidade biográfica e histórica do Holocausto começou por ter como tema as vítimas, uma espécie de compensação que não correspondia à realidade, ao não priorizar os perpetradores. Entre estes estavam os que tinham o poder, mandando executar ordens, que eram cumpridas pelos que obedeciam. Existia a convicção de que Hitler e os seguidores diretos eram monstros psicopatas, a que os seus subordinados hierárquicos e o povo alemão em geral tinham obrigatoriamente de obedecer, contribuindo para a desculpabilização da sociedade germânica.
A rutura com essa análise sucedeu com o julgamento de Eichmann, com a sua transmissão e os relatos feitos por Hannah Arendt ao introduzir o conceito de “banalidade do mal”, do burocrata que não se sentia responsável, porque reduzido à mera dimensão de uma peça irrelevante de uma engrenagem e máquina burocrática que o asfixiava e remetia para um estatuto sub-humano, o que lhe permitia justificar a sua participação em atos criminosos. Se assim era com funcionários burocratas dependentes hierarquicamente e mais bem posicionados para conhecer a solução final judaica dos seus superiores nazis, por maioria de razão para o povo alemão que, em princípio, teria um menor ou nenhum conhecimento, dada a sua maior distância do núcleo central decisor.
2. A defesa da tese de que AE e BD, entre outros, naquele tempo e naquelas circunstâncias, por razões excecionais, foram as primeiras vítimas do sistema legal e da estrutura administrativa vigente, foi contestada pela acusação ao alegar que o ser humano nunca pode invocar a sua morte ética e moral como justificação para a colaboração em atos criminosos.
Fritz Bauer, procurador alemão que lidou com processos relativos a Auschwitz, afirmou: “Este sistema monstruoso só funcionava porque todos participavam nele. Bastava uma só pessoa, um só funcionário, contrariar uma ordem e todo o sistema poderia ter sido afetado. É por isso que aqueles que habitualmente eram apelidados de pequenos foram indispensáveis e, como tal, devem ser penalmente responsabilizados”. Nos julgamentos de Nuremberga, pretendeu-se provar que todos e cada um dos acusados sabiam da existência dos campos de concentração, que o horror, o medo e o terror abominável a eles associados eram instrumentos através dos quais mantinham o seu poder e baniam a oposição às suas políticas.
O que nos levou à terrífica constatação de que os crimes contra a humanidade não são apenas obra de uma minoria de pessoas facínoras ou malignas que detêm o poder, mas de milhares de seres humanos tidos como “comuns”, com a cumplicidade de milhares ou milhões, numa ambiência de indiferença generalizada (o que é diferente duma culpa coletiva).
É mais fácil racionalizar as coisas no decurso da guerra, por patriotismo e ideias similares (ignorando tudo o resto), do que evitar delitos contra a humanidade e violações do Direito Internacional, em que o vencedor tende a ser o “juiz” e o acusado o “vencido”, sendo titubeante o progresso alcançado (por vezes regressivo), neste contexto, sempre algemado por interesses geoestratégicos das grandes potências, o que não implica desistir de expurgar a duplicidade de critérios que sobressai em temáticas que deveriam ser universalmente consensuais e exequíveis.
A relevância deste tema ultrapassa as fronteiras da Alemanha. Interpela toda a Humanidade. Aconteceu com o totalitarismo nazi, o soviético e outros, com ramificações diferenciadoras e comuns no presente. Acreditou-se, erroneamente, que tínhamos atingido um estádio de civilização tão evoluído, uma sociedade de bem-estar tão permanente, que a guerra e as crises não regressariam, tendo como adquirido um ilusório crescimento perpétuo a todos os níveis. O que nos interroga sobre a natureza da condição humana e quão longínqua está a materialização da Paz Perpétua de Kant, uma utopia, que pode e deve ser repensada, para que se criem alternativas com maior aderência à realidade e o seu máximo de viabilidade.
15.03.24
Joaquim M. M. Patrício