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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

NUNO JÚDICE (1949-2024)

Porque a luz existe e permanecerá

  


Sempre que a palavra elaborava outra

era tempo de asas na poesia de Nuno Júdice.

Havia uma concha que nos levava dentro da Casa de NJ

num diálogo fluente, redivivo em nós por nos reconhecer

agua-vento, transubstancial.


Porque há que acordar uma segunda vez, hoje e também este poema tão rumo:


“A Origem do Mundo”

De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direcção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.

NJ


Teresa Bracinha Vieira

A ÉTICA, AS VÍTIMAS INOCENTES, DEUS

  


Pela tomada de consciência da finitude e da pergunta que constitutivamente lhe está associada — de pergunta em pergunta, o ser humano  deparar-se-á  com a pergunta pelo Fundamento último de tudo e pelo Sentido último —, Deus virá sempre à ideia.


A questão de Deus impõe-se  igualmente por causa da ética, das vítimas inocentes  e da esperança. Lá está sempre Immanuel Kant — celebra-se este ano o terceiro centenário do nascimento — com as suas perguntas, as de qualquer ser humano atento: “O que posso saber? O que devo fazer? O que é que me é permitido  esperar?” A última está vinculada à religião: cumprindo o seu dever, o Homem torna-se digno da salvação de Deus.


A autonomia da razão prática, que vincula universalmente todos os homens, e para a qual Kant deu um contributo decisivo, é uma conquista definitiva da Humanidade: a moral é uma forma de auto-obrigação. Mas a questão ergue-se em todo o seu abismo, quando somos confrontados com a questão ética no seu limite. Edward Schillebeeckx apresenta precisamente o exemplo dramático do soldado que, numa ditadura e sob pena de morte, recebe a ordem de matar um inocente, só porque ele é judeu, comunista ou cristão. Por motivos de consciência, o soldado recusa executar a ordem, ficando assim numa situação que toca as raias do absurdo: de facto, ele próprio será morto e outro matará o inocente. Aparentemente, ninguém beneficiou desta acção ética absolutamente digna. 


Como responder à pergunta formulada por Freud, ao confessar: “Quando eu me pergunto porque é que sempre procurei com seriedade ser solícito e, quanto é possível, ser bondoso para com os outros e porque é que o não deixei de ser quando verifiquei que se é prejudicado por isso e massacrado, pois os outros são brutos e infiéis, não conheço qualquer resposta”?


Voltando ao exemplo de Schillebeeckx, estamos perante uma aporia: por um lado, somos incondicionalmente apelados pelo respeito para com o outro; por outro, não há qualquer garantia de que o mal — a violência e a injustiça, a tortura e a morte — não seja a última palavra sobre as nossas existências finitas no mundo.


A pergunta torna-se, pois, inevitável: porque é que devo continuar a respeitar incondicionalmente o outro, embora ele seja também fonte de injustiça e violência? Há apenas dois caminhos de resposta eticamente responsável: a resposta religiosa e a resposta que se reclama de uma acção heróica a favor do Humanum. Ambas se apoiam na esperança de que, contra todas as aparências fácticas, a justiça triunfará sobre a injustiça, o Humanum sobre a desumanidade. Jean-Paul Sartre, no seu leito de morte, dizia “Eu ainda continuo a confiar na humanidade do Homem.” No entanto, o humanista ateu/agnóstico não pode dar nenhum tipo de garantia de que a sua esperança, exclusivamente fundada ético-autonomamente, se concretize. De qualquer forma, para as vítimas que já caíram e para aquelas que no futuro continuarão a tombar, não há salvação. O Homem não pode por si mesmo operar a sua plena salvação: a uma total autolibertação emancipatória, à maneira, por exemplo, da situação ideal de fala contrafáctica, de Jürgen Habermas, opõe-se o facto de o Homem ser para os outros não só graça, mas também violência e aniquilação, numa história de maldade que parece não ter fim: “mistério da iniquidade”, dizia S. Paulo. Por isso, Theodor Adorno, da Escola Crítica de Frankfurt,  escreveu que a esperança tem de incluir a todos e que, a haver justiça, ela teria de ser justiça também para os mortos . Neste sentido, o seu amigo Max Horkheimer, outro fundador da Escola Crítica, escreveu: “Toda a pretensão de fundamentar a moral na inteligência terrena e não num Além (...) constrói sobre ilusões harmonizadoras. Em última análise, tudo o que se relaciona com a moral tem a ver com a teologia”, sendo a teologia  — “exprimo-me com toda a precaução — a esperança de que, não obstante a injustiça que caracteriza o mundo, não acontecerá que ela, a injustiça, seja  a última palavra”. Neste sentido, também Walter Benjamin insistiu em que a solidariedade com os mortos, concretamente com as vítimas inocentes, não permitia conceber a história “a-teologicamente”.


Também o crente é obrigado a empenhar-se incondicionalmente pelos outros, em caso-limite até ao martírio, e não precisa de Deus como fundamento imediato do seu agir ético. A entrega incondicionada do mártir não tem como motivo a conquista da recompensa eterna: na fundamentação autónoma da ética, trata-se do Humanum absolutamente digno e da esperança da justiça sobre a injustiça — etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse). No entanto, o crente sabe que a sua acção é mais forte do que a morte, e, acreditando em Deus, considera a fé no triunfo do bem sobre o mal, da justiça sobre a injustiça, como experiência do meta-humano e meta-ético, que os homens na sua história intramundana não podem realizar. Desta forma, o mal e o absurdo não são anulados nem sequer racionalmente compreendidos (neste sentido, Hans Albert tinha razão quando falava do “mito da razão total”), mas, para o crente, não têm a última palavra: sendo Deus a fonte e o fundamento transcendente da ética, há esperança para as vítimas e para os mortos, que, fora desta perspectiva, ficam definitivamente anulados na História. O apelo a Deus é vivido no empenho ético e na fé de que a justiça é mais forte do que a injustiça, na plenitude da vida.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 16 de março de 2024