O SAL DA DEMOCRACIA
António-Pedro Vasconcelos pode ser tema de muitas crónicas, tal a riqueza da sua personalidade e o carácter apaixonado dos seus combates. Segui, antes de nos conhecermos, com atenção o seu percurso de vida, que se projetou na sua filmografia, e admirei sempre a capacidade única que tinha de compreender que na literatura, no cinema ou em qualquer manifestação da arte e da cultura a narrativa constitui o melhor modo de nos fazermos entender. Ele sabia contar uma história, e sabia que essa era a chave da arte de comunicar. O domínio da escrita e a compreensão dos acontecimentos eram o seu terreno de eleição. Era um grande escritor. Stendhal era o seu confessado mestre no culto da magia das paisagens, da vertigem dos sentimentos e do encantamento do coração e do espírito. E o respeito pela importância da palavra obriga-nos a reconhecer que em António-Pedro está sempre presente o exigente realizador e diretor de cena, que sabia como ninguém ligar o desenrolar de uma história e o ritmo dos respetivos diálogos. Os espectadores mais fiéis do excecional encenador reconhecem os compassos de espera, as aparentes hesitações, já que a linguagem do cinema obriga a pensar a dramaturgia de uma maneira especial. Dir-se-ia que A Cartuxa de Parma era o seu modelo narrativo, enquanto luz sempre presente na condução da trama, dos atores e das cenas, por parte de quem sabia bem que só na tensão e no drama se pode compreender o carácter do género humano. Por isso, perguntava em Perdido por Cem (1972): “quando digo que foi isto que me aconteceu, o eu que o diz e o eu a quem tudo isto aconteceu seremos a mesma pessoa? E porquê esta necessidade de me lembrar?”
Essa mestria na ligação entre a representação e a palavra, como essência do cinema foi relatada por APV a propósito de um episódio passado na épica campanha de Mário Soares em 1986, onde melhor nos conhecemos. Na gravação de um tempo de antena sobre a importância da cultura, o encenador sugeriu ao candidato que terminasse a intervenção dizendo: “porque a cultura é o sal da democracia”. Soares resistiu primeiro, porque nunca usara essa expressão, mas com a inteligência fina que tinha depressa compreendeu que deveria dizê-lo para assim chegar ao coração dos espectadores. Hoje, voltamos a ouvir esse testemunho, e vemos como ele resulta poderoso, direto e verdadeiro. E assim compreendemos como a direção de atores e a capacidade inventiva do criador se revelam fundamentais. Percorrendo a obra de APV, ligando-a à sua coerente e determinada intervenção cívica e política e à defesa do Cinema Novo português, desde o Centro Português de Cinema, com o apoio da Fundação Gulbenkian, até à defesa da criação europeia e à persistente tentativa de atrair o grande público, encontramos bons exemplos de uma sensibilidade cosmopolita e democrática, que constitui uma referência que não pode ser esquecida. Oxalá (1981) é uma reflexão de inconformismo e esperança; O Lugar do Morto (1984) é um caso de sucesso de bilheteira, que tocou o público, pela capacidade de chegar a ele; Aqui d’El Rei! (1992) constitui uma reconstituição histórica que o tempo reconhecerá na sua grande qualidade. Sem desistir, porque foi sempre um homem determinado, continuou a demonstrar uma irrepreensível qualidade na leitura dos acontecimentos, como em Jaime (1999), Os Imortais (2003), Call Girl (2007), Os Gatos Não Têm Vertigens (2014) e Parque Mayer (2018), mantendo ativa a responsabilidade de fazer do cinema expressão de uma sociedade viva, em confronto com outras manifestações da criação cultural. A sociedade, a memória, a reflexão sobre os nossos erros, a mobilização das consciências para a liberdade, os sinais necessários contra o fatalismo e a idolatria – eis o que mantinha desperto e presente o espírito livre de António-Pedro Vasconcelos, afinal, porque a cultura é mesmo o sal da democracia.
GOM