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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

NESTE MUNDO SÓ SE MASTIGA 

  


Loira, olhos azuis, branca-rosadinha, nem parecia dali.

- Linda a tua Milinha!

E Luzia logo se benzia. Perdera gémeas no parto anterior e agora olhava sempre incrédula para aquele milagre da Milinha de quem era mãe. O pai de Milinha preferia que ela tivesse sido rapaz, mas como a menina não era doente e ainda era nova para ter sido desgraçada por algum safado, lá se calava quando olhava para ela, e por ora não se lamentava exceto com a verdade do vinho.

Luzia vivia na aldeia do Brado a traços grosseiros da vizinha Lapa da Serra. As poucas gamelas de terra que herdara da sogra, ajudavam-na no tino que as forças lhe davam para manter a família. O Manel tomava remédios para se enjoar do vinho, e por essa razão sumia-se das vistas, e ela lá andava rodilha na cabeça e carrego acima procurando que a Milinha, que tanto a comovia, brincasse com as pedras que vestia de trapos e às quais dava nome.

A cachopita era uma ternura e uma admiração para todos, sobretudo devido à pele tão clara, tão rosinha. A coisa, era de tal modo falada que aquando da ida ao rio para a lavagem dos panos que houvesse, as outras mulheres, numa sobrevivência maliciosa de pensamentos teimosos, atiravam:

-  Ó Luzia, que a tua menina em nada sai ao pai! Tão branca que parece filha de gente fina!

- Eu já calculava que não saísse ao pai…

- Como é que calculavas?

- Não sei, mas se fosse menina…

- Saía a ti? Tu também não és branca como ela, valha-te Deus.

E lá se gerava um mal-estar de zanga sem raiva, e Luzia não conseguia resolver-se liberta do pensar aquela estranha verdade.

Um dia, anos passados, já os rapazes rondavam a porta de Luzia na caça de Milinha, e Luzia, a certa altura pergunta-lhe:

- Ó Emília, tu não te queres casar? Estás sempre tão arredia?

- Para quê, minha mãe?

- Essa! Para o que há-de ser?  - E a filha pareceu-lhe de repente uma estranheza, e atalhou:

- As mulheres têm de ter préstimo. Que farás sozinha no mundo?

- Não esqueça a minha mãe que uso enxada, e faço também o toque aos defuntos desde há muito, e não os distingo de homens ou mulheres no destino. Amortalhados também lhes não conheço cor, mas o padre diz que ninguém é branco e rosado como eu, e pergunta-me sempre se meu pai - que Deus tem - era assim tão branco e se a minha mãe andara apenas entre a aldeia do Brado e a da Lapa da Serra. E quando lhe digo que sim, ele sorri.

Infelizmente, ninguém nos pode valer. Fomos logo condenadas quando nasci.

Antes tivesse ido com o pai ou com as minhas irmãs. Neste mundo só se mastiga. Talvez porque a vida é assim: só se vê de um lado.

Bota cá mais lenha, minha mãe, eu seguro o carrego! Somos as duas sempre com frio, e eu não quero ir a banhos com farsolas! Melhor estar assim de alma viúva da vida.

As chaminés do pão fumegavam; recolhia-se o rebanho desirmanado; as galinhas regressavam à cerca. Tudo se acoitava que a noite era de má reputação.

Só as estrelas não perdiam a graça das virgindades, usavam blusas transparentes, cantavam noivados e reproduziam-se na perfeição num estado único de harmonia moral.


Teresa Bracinha Vieira