A VIDA DOS LIVROS
De 25 a 31 de março de 2024
Num tempo que obriga a pensar e a recordar o longo caminho percorrido até à democracia, falamos de um pequeno livro da Editora da Universidade Católica, reproduzindo um diálogo extremamente rico e oportuno entre o Padre João Resina Rodrigues e Mário Sottomayor Cardia. O título Cristianismo e Marxismo em Debate nos anos 70 procura ser fiel ao que ocorreu nesse encontro.
UM DEBATE ANTES DE ABRIL
O tema proposto pela Juventude Universitária Católica (JUC), em virtude das limitações da censura e das limitações políticas da altura, era, no entanto, apenas “Significado Político e teológico dos Direitos do Homem”, a propósito do 25º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o décimo aniversário da encíclica Pacem in Terris do Papa João XXIII. A publicação constitui um pequeno tesouro descoberto pelo jornalista José Pedro Castanheira, antigo militante da JUC, e corresponde à transcrição do colóquio realizado na sede da organização a 19 de janeiro de 1974, pouco antes da revolução de Abril.
O documento permite a compreensão dos caminhos trilhados pelo catolicismo português inconformista. É o espírito de abertura do Concílio Vaticano II que aqui se sente, ligando-se a leitura deste documento aos acontecimentos que marcaram a consciência dos jovens católicos no final do Estado Novo. Com efeito, a orientação do Concílio Vaticano II no sentido da recusa do eurocentrismo, da compreensão dos sinais dos tempos e do reconhecimento da importância do papel na Igreja do Terceiro Mundo levou à tomada de consciência da necessidade da Paz em África e do reconhecimento dos direitos à autodeterminação. Ouvia-se, assim, o que Emmanuel Mounier dissera no seu L’Éveil de l’Afrique Noire. Tal atitude integrou-se, assim, num conjunto de momentos-chave, que contribuíram para a necessidade de uma mudança cívica e política, desde as vigílias da paz na Igreja de S. Domingos (1969), onde foi cantado “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” (de Sophia de Mello Breyner), e na Capela do Rato (1972-73); o julgamento dos padres de Macúti, em Moçambique; o assassinato de Amílcar Cabral; a denúncia dos massacres de Wiriamu pelo Padre Hastings, a posição crítica do Bispo da Beira D. Sebastião Soares de Resende e enfim o golpe das Caldas da Rainha em 16 de março de 1974. Contudo, não podemos esquecer que desde o início dos anos sessenta, a presença dos católicos fez-se sentir na tomada de posição do Bispo do Porto (1958), na revolta de Sé (1959), no documento sobre a liberdade dos católicos de 1959 (cujo primeiro subscritor foi o padre Abel Varzim), no golpe de Beja (1961), na crise académica de 1962, no apoio à presença de Paulo VI ao Congresso Eucarístico de Bombaim (1964), no Manifesto de Alguns Católicos ou dos 101 (1965), na contestação do Seminário dos Olivais em 1967-68, nas tomadas de posição dos Padres Felicidade Alves e Mário de Oliveira e no nascimento de publicações como O Tempo e o Modo, Concilium, Direito à Informação, Cadernos Necessários, Cadernos de Reflexão da JUC, Boletim Anticolonial e Cadernos GEDOC. Além disso, deve recordar-se o órgão da JUC, Encontro, e o surgimento do MRAR - Movimento de Renovação da Arte Religiosa, da editora Moraes, do Círculo do Humanismo Cristão, a ação do Centro Nacional de Cultura, do CCC-Centro Cultural de Cinema, das cooperativas Pragma e Confronto e a criação do Instituto Superior de Estudos Teológicos.
CRISTIANISMO E MARXISMO
A leitura hoje deste diálogo assume, pois, uma especial importância, uma vez que demonstra como os jovens da JUC continuavam atentos à evolução dos tempos e à necessidade da tomada de consciência de que a construção da democracia precisaria de ser pensada a partir da consideração dos direitos humanos, como pedra angular da institucionalização da liberdade. Assim, o Padre João Resina, engenheiro de formação e futuro professor do Instituto Superior Técnico, assistente religioso da JUC, afirmava que “a Palavra de Deus não nos dá receitas mas inspirações e, aqui e além, um estilo novo para viver”, daí a necessidade de compreender que não seria possível viver o amor aos outros sem a preocupação com o andamento da História. E acrescentava: “Fomos capazes de ressuscitar, embora por apelo de Marx, aquela palavra primeira do Livro do Génesis, segundo a qual Deus, depois de ter simbolicamente descansado da criação, nos deu a missão de cultivar e guardar a Terra. Hoje estamos a tomar isso a sério”. E assim, Deus, “em vez de nos dar receitas”, põe-nos a caminho. A verdade da vida teria de ser conquistada no dia a dia, numa dialética “que correspondesse ao encontro com o real, ou seja, com os outros, mas também com a nossa consciência e com Deus”. Para Sottomayor Cardia, filósofo, antigo membro do Partido Comunista e chefe de redação da “Seara Nova”, chamava a atenção para uma primeira formulação dos direitos do homem, “como resistência individual ao poder”, seguindo-se uma outra perspetiva de “participação na formação do poder”, devendo acrescentar-se um terceiro sedimento, correspondente à prestação de benefícios sociais. Nestes termos, o indivíduo passou a exigir “à sociedade a prestação de certas contribuições para a organização da sua vida. E aqui se supera o esquema individualista inicial”.
VOZ INSUBMISSA
Como uma voz insubmissa, o Padre João Resina, recusou então desassombradamente a lógica social assistencialista: “Hoje não é com Conferências de S. Vicente de Paulo que conseguimos resolver a situação dos pobres. Marx teve carradas de razão quando disse que a injustiça depende de mecanismos. Isto é, em tempos pode ser que tenha havido os maus; hoje os maus são sobretudo os sistemas e os homens que se deixam aprisionar por eles”. E em resposta, Mário Sottomayor Cardia falava na “apropriação da obra humana pelo seu obreiro”, acrescentando que o lucro capitalista, na sua expressão natural, punha em causa a própria democracia. O debate é denso, por vezes quase cifrado, abrangendo a política, a história, a economia e a sociologia. Em causa estava a origem e a expansão dos direitos humanos e a sua valorização pelo cristianismo e pelo marxismo. E Sottomayor Cardia punha a tónica na pergunta: são os direitos humanos prerrogativa ou objetivos de luta, enquanto o seu interlocutor falava de um caminho humano, lembrando Terêncio, quando este afirmava que “nada do que é humano nos pode ser estranho”. O que estava em causa, essencialmente, era enfatizar, naquele momento, a necessidade de pluralismo, de abertura e de diversidade. O debate e o diálogo que se desenvolvia fazia, no fundo, luz sobre a necessidade premente de superar o impasse a que o regime chegara, sem capacidade de abrir novos horizontes políticos no sentido da democracia política, económica, social e cultural. Como diz António Araújo no prefácio do livro: “na conversa entre Sottomayor Cardia e Resina Rodrigues pressente-se em cada palavra, em cada linha – se quisermos, na própria realização do encontro -, que o regime do Estado Novo se encaminhava para o fim, e a uma cadência mais acelerada do que então se pensava”. Era um debate no futuro, como se um relógio já se tivesse adiantado…
Guilherme d'Oliveira Martins
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