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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


VERDI, VERDE-GAIO, PÁSSARO, VIDA VAI…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


Fui ao mercado com o Alberto. É sempre com imenso gosto que percorro com ele a Ribeira de Lisboa e conversando deambulamos por esse mercado à beira-rio... O Alberto correu mundo e fala línguas, mas nunca deixou de ser o beirão cuja primeira revelação de Deus e sentimento da graça foi essa convivência, desde pequenino, com a Natureza: temor e tormenta, bonança e libertação na alegria calorosa do sol, vida que morre na terra e da terra nasce, sombras e segredos, flores e cores, frutos e prazeres, transpiração e trabalho, mas sempre, sempre, contemplação e ação. Os campos maravilham-nos e oferecem-se-nos. O lema dos monges antigos - "ora et labora" - resume bem esse encontro do homem com Deus, da mística com a cultura, que é o trabalho agrícola. Também no Oriente acabam por se fundir no círculo da vida o ying e o yiang, a harmonia é uma submissão recíproca de quem fecunda e é fecundado, e as estações do ano acompanham essa conversão contínua da morte e da ressurreição. Talvez seja mais difícil encontrar na cidade essa íntima, genética, comunhão com o mundo. O nosso Alberto vai aos legumes, escolhe-os para que lhe saibam melhor as sopas camponesas que a Diamantina (a cozinheira lá de casa) preparará em lume brando e tapando os tachos, "p’ra que fique lá a riqueza toda, meu senhor!" Eu compro fruta e flores para levar à tua irmã. Antes de partirmos, o Alberto chama o motorista, para o ajudar a carregar no carro as gaiolas cheias de passarinhos, com cuja compra se despede. Ao chegar a casa, abrirá as gaiolas que pendurou numa parede do vasto terraço que se debruça sobre o jardim, e largará os pássaros. Com uma alegria amiga, quase infantil. Muitos deles voltarão a abrigar-se nas prisões de porta aberta, alguns virão comer à mão que esse homem lhes estende, com alpista. E este nórdico que sou, citadino e bruto, pasma para a cena, como menino para o sorriso de sua mãe. Descubro e encontro. Hoje, comprei cerejas, portuguesas da Beira, as melhores do mundo. Já lá fomos colhê-las, lembras-te? Passámos dos "boulevards" gelados de Paris no Inverno para a floração da Primavera em Sintra, até aos cerejais da Gardunha, no início do verão. Já no outono, fomos às castanhas, a Marvão... Citadinos embora, respirámos juntos. "A Lui che nell’erba del campo / La spiga vitale nascose, / Il fil di tue vesti compose, / De´pharmachi il succo temprò"... // "ÀquEle que na erva do campo / a espiga vital escondeu, / teceu o fio dos teus vestidos, / doseou o suco das plantas curativas, / criou o pinheiro inflexível ao suão, / o salgueiro que obedece à nossa mão, / e o larício que o inverno afronta / e o álamo que a água aguenta. / A Esse pergunta,ó desdenhoso, / porque é que na inóspita charneca, / ao sopro da brisa brava, / faz surgir a tácita flor, / que abre, perante Ele só, / o fausto do seu véu cheio de cor, / que espalha aos desertos do céu / os olores do seu cálice, e morre". Respigo estes versos do "Ognissanti" de Alessandro Manzoni, último e incompleto hino do projeto de poemas sacros que, cinquenta anos antes, em 1810,na sequência da sua conversão, esse Verdi da literatura italiana do "risorgimento" iniciara: entre 1812 e 1815, publicara "La Risurrezione", "Il Nome di Maria", "Il Natale" e "La Passione". Em 1822, publicaria ainda "La Pentecoste". Sinto no "Ognissanti", nesta contemplação poética da ação da graça, ou da presença íntima de Deus no coração de tudo - e no coração do homem que não desdenha mas abre ao mundo o límpido olhar da humildade para, em festa de Todos os Santos, comungar também no mistério da vida de todas as coisas - o mesmo louvor das criaturas que se manifesta no "Cantico di Frate Sole" de S. Francisco de Assis. Aliás, o hino de Manzoni chama Sol a Deus, logo na primeira quadra: "Quel Sol che in sua limpida piena / V´avvolge or beati lassú...", esse Sol que no seu pleno esplendor vos envolve, ó bem-aventurados! Mas já o poeta de Assis cantava: "Laudato sie, mi´Signore, cum tucte le tue creature, / Spetialmente messor lo frate sole, / O qual é dia e pelo qual nos alumias. / E ele é belo e radiante, com grão esplendor: / de ti, Altíssimo, traz significação....  ...Laudato si’, mi’Signore, per sora nostra matre terra, / la qual ne sustente et governa, / e produz diversos frutos com flores coloridas e erva..." Aristocrata milanês, o conde Alessandro Manzoni era, por sua mãe, neto do marquês Cesare de Beccaria autor do tratado "Dei dilliti e delle penne" e, com os irmãos Verri, parte fundadora, nos anos 60 do século XVIII, de uma tertúlia que se denominava "I Pugni" e publicava um jornal: "Il Caffe". Títulos sintomáticos de um desejo de renovação cultural e social que desabrochará no "Risorgimento". Tendo ido viver para Paris, com sua mãe, depois da morte do companheiro de exílio dela, Carlo Imbonati, é na Cidade-Luz que, curiosamente, Manzoni regressará à Igreja Católica, por altura do seu casamento com Henriette Blondel, filha de um banqueiro de Genebra, e calvinista entretanto também convertida à confissão católica. Ao que parece por influência do padre Eustachio Degola, com tendências jansenistas. Tudo reunido para que o regresso à Igreja se faça como procura do espírito evangélico, do amor dos pobres e da justiça. Penso que aquele cenáculo de "Os Punhos" (não sorrias...) queria mais a restauração da tradição "italiana" do poder autárquico do que uma união nacional da península itálica. Tal como Verdi, nas suas primeiras óperas, procuraria mais a realização desse vulcão dramatúrgico que lhe musicava a alma do que a proclamação de uma Itália una e livre. Mas o império austríaco era inimigo de si próprio, não teve governo capaz de entender sentimentos ancestrais de pertença a memórias que, se reunidas e conjugadas por uma simples ideia mobilizadora de elites (que se sentem estrangeiras) e de populações (que são a maioria dos 80% de analfabetos que estatisticamente então se registam), são fermento do que chamamos "Nação". A qual, uma vez controlado um território, que com o povo institucionalmente se organiza, realiza outra ideia. Que é a de Estado. O artífice da Itália ressurgida, foi um Camillo, o Benso, conde de Cavour, ligado ainda aos nossos, pelos Lamporecchi. Soube jogar com tudo e todos, até com Garibaldi que, natural de Nice, não lhe perdoou a cedência, à França de Napoleão III, da Savoye e de Nice, ou ainda a retenção do ataque final aos Estados Pontifícios - que, a concretizar-se, embaraçaria o imperador dos franceses - em compensação pelo apoio que recebeu para a afirmação da independência e da hegemonia do reino do Piemonte na Itália libertada de Áustria... Quando morreu, em 1862, Verdi fica sem voz: Camillo Cavour fora, não só a força política subjacente ao movimento elitista e popular que tornara o grito de "Viva Verdi!" na manifestação pública da sigla "Viva Vittorio Emannuelle Re d’Italia!", mas o homem de Estado que o convencera, como a Alessandro Manzoni, a aceitar ser eleito para o parlamento do novo reino, em fevereiro de 1861. Demite-se logo a seguir à morte do político que tanto admirava. Não tem coragem para assistir às cerimónias fúnebres. Tal como essa coragem novamente lhe faltará, onze anos depois, pela morte de Manzoni, o unificador da língua italiana pelo dialeto toscano (e foi propositadamente passar uma temporada a Florença para "lavar nas águas do Arno" o estilo e a língua), o autor de "Adelchi", sobre o desmoronamento do reino lombardo na Itália do século VIII, e da joia do romantismo literário italiano que é o romance "I Promessi Sposi", em que a narrativa das vicissitudes do amor entre um casal lombardo será finalmente guiada pela preocupação com a pauta toscana do italiano (língua oficial e nova) e pela fidelidade ao cristianismo evangélico, na aceitação, humilde e obediente, dos desígnios da Providência... Mas Giuseppe Verdi, oferecerá à memória de Manzoni, a "Messa da Requiem" que já pensara para Rossini e Cavour. A 22 de maio de 1874, na igreja de S. Marcos, em Milão, um ano depois da morte de Alessandro Manzoni, canta-se pela primeira vez o "Requiem", cuja intenção Verdi expusera, em carta a Ricordi, datada de 3 de junho de 1873, escrita portanto no dia seguinte ao do seu retiro e oração junto à campa do escritor: "Gostaria de manifestar o afeto e a adoração que sempre prestei a esse Grande Homem que já não está e que Milão tão dignamente honrou. Gostaria de compor uma missa pelos mortos, para ser executada no próximo ano, no aniversário da sua morte. A missa terá dimensões muito vastas e, além de uma grande orquestra e de um coro importante, exigirá também (não posso, de momento, ser mais preciso) quatro ou cinco cantores principais. Pode considerar esta carta como um compromisso formal". A 24 de Janeiro de 1901 (já eu tinha um anito, vê tu bem!), pela madrugada, Giuseppe sente a hora da despedida. Para o encontro com a sombra e a luz, chamam à sua cabeceira o pároco de San Fedele, o padre que acarinhou os momentos derradeiros de Alessandro, quase trinta anos antes. "Um demorado aperto de mão, um olhar dizendo, uma expressão profunda, asseguravam-me de que ele tinha entrado num pensamento religioso. Foi apenas um instante, mas, para ele, para mim, um instante precioso. Tinha a língua parada, mas os seus olhos falavam-me, como me falava o aperto da sua mão. Foi o último olhar, a última saudação do grande músico italiano. Tive só tempo de os recolher. Não deu mais sinal de si e expirou serenamente"... O Alberto, depois do jantar, por me ter ouvido falar do que - disse eu - seria o "Requiem" de Verdi por ele-mesmo, pôs no gira-discos a gravação feita por Carlo Maria Giulini, com a Elisabeth Schwartzkopf, a Christa Ludwig, e os Nicolai, o Gedda e o Ghiaurov. Cerrou os olhos e deixou-se estar. Admirei-o ainda mais: estava ali, sereno como um franciscano, o homem que não quer que lhe plantem ciprestes na quinta, só porque lhe lembram um cemitério... O céu é bem maior do que nós, Princesa". Alberto Martins de Oliveira morreria alguns meses depois. Terá sido levado pelos pássaros que libertou?


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 10.09.13 neste blogue.