Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Como vimos, segundo Dignitas infinita (Dignidade infinita), Declaração aprovada pelo Papa Francisco, a dignidade humana é “ontológica”, inalienável.
Infelizmente, essa dignidade nem sempre é respeitada. E o documento dá exemplos de “violações graves”: “tudo o que atenta contra a própria vida, como todo o tipo de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio deliberado”, tudo o que atenta contra a integridade da pessoa, como as mutilações, as torturas infligidas ao corpo e ao espírito, as coações psicológicas, as condições de vida infra-humana, as detenções arbitrárias, a deportação, a escravatura, a prostituição, “as condições laborais ignominiosas nas quais os trabalhadores são tratados como meros instrumentos de lucro, e não como pessoas livres e responsáveis.”, a pena de morte — aqui, não posso deixar de lamentar que até muito recentemente o Catecismo da Igreja Católica a defendeu.
O documento, embora reconhecendo que há uma aspiração crescente para erradicar o racismo, a marginalização das mulheres, a xenofobia..., quer concretizar as violações. Assim, em síntese e com algumas observações pessoais:
O drama da pobreza. É preciso reconhecer que se trata de “um dos fenómenos que mais contribuem para negar a dignidade de tantos seres humanos”, “constituindo mesmo uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo”.
A guerra. Com a sua loucura de destruição e dor, a guerra “atenta contra a dignidade a curto e a longo prazo”. Ela é sempre uma “derrota da humanidade”. E cada vez mais nos apercebemos de que está em curso “a terceira guerra mundial em etapas” e que podemos pôr fim à sobrevivência da humanidade e da casa comum.
A emigração. Os emigrantes “estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza”.
O tráfico de pessoas. “Uma vergonha para as nossas sociedades que se consideram civilizadas”, “um crime contra a humanidade”, que desumaniza quem o leva a cabo.
Os abusos sexuais. É imperioso compreender que “todo o abuso sexual deixa profundas cicatrizes no coração de quem o sofre”, causa “sofrimentos que podem ficar para a vida inteira e aos quais nenhum arrependimento pode pôr remédio.”
Aqui, faço notar que só posso sintonizar com a medida de compensação financeira tomada pela Conferência Episcopal em relação a casos de pedofilia na Igreja.
A violência contra as mulheres. Desgraçadamente, trata-se de “um escândalo global”. Impõe-se acabar com a discriminação: “é urgente alcançar em todas as partes a efectiva igualdade dos direitos da pessoa”, incluindo a igualdade de salário para trabalho igual. Evidentemente, “nunca se condenará de forma suficiente o fenómeno do feminicídio”.
Aqui, tenho de perguntar: Quando começará a Igreja a respeitar a igualdade de direitos da mulher no seu seio?
O aborto. Para a Igreja, “a dignidade de todo o ser humano tem um carácter intrínseco e vale desde o momento da sua concepção até à sua morte natural.” Lamenta a difusão de uma terminologia ambígua — para aborto, “interrupção da gravidez”, que “tende a esconder a sua verdadeira natureza e a atenuar a sua gravidade na opinião pública.”
Aqui, sublinho que há situações-limite e dramas brutais a não ignorar (em Portugal, o aborto é legal até às 10 semanas), mas quero manifestar a minha oposição à inclusão do aborto como um direito na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
A maternidade de substituição (barrigas de aluguer). “Ofende gravemente a dignidade da mulher e da criança, e baseia-se na exploração da situação de necessidade material da mãe. Um filho é sempre um dom e nunca objecto de um contrato.”
Pessoalmente, pergunto: Que dizer na situação de uma mulher que quer muito ter um filho, não tem útero e uma familiar lhe empresta generosamente o seu?
Eutanásia e suicídio assistido. O documento sublinha a importância dos “cuidados paliativos apropriados e evitando qualquer encarniçamento terapêutico ou intervenção desproporcionada”, mas é claro: “não há condições na ausência das quais a vida humana deixa de ser digna e possa, portanto, suprimir-se” e acrescenta: “ajudar o suicida a tirar a vida é uma ofensa objectiva contra a dignidade da pessoa que o pede.”
Neste contexto, denuncia “o descarte das pessoas com deficiência”.
A violência digital. Sublinha os benefícios das tecnologias digitais, ao mesmo tempo que chama a atenção para os seus imensos perigos: risco de dependência, notícias falsas, atentados à boa reputação, o cyberbullying, difusão da pornografia, exploração para fins sexuais ou jogos de azar. O ambiente digital pode tornar-se “um território de solidão, manipulação, exploração e violência, chegando até ao caso extremo de dark web”.
Mudança de sexo. A Declaração pronuncia-se claramente contra a criminalização dos homossexuais: “Deve-se denunciar como contrário à dignidade humana o facto de, em certos lugares, muitas pessoas serem encarceradas, torturadas e mesmo privadas do bem da vida unicamente por causa da sua orientação sexual”, como acontece em África, por vezes com apoio dos bispos.
Quanto à mudança de sexo, é necessário estar atento ao texto. De facto, vê nela uma ameaça à dignidade humana, mas não sem sublinhar: “como regra geral”, deixando, portanto, espaço para casos particulares, o que, como nota o jornal La Croix, constitui “uma marca do Papa que recebe regularmente grupos de pessoas transgénero.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 27 de abril de 2024
Neste ano de Camões, em que assinalamos a comemoração dos 500 anos do nascimento do nosso maior poeta, iniciamos a publicação de textos que pretenderão dar a conhecer melhor uma figura que os portugueses conhecem mal, em toda a sua importância e originalidade. Deste modo, mais do que repetirmos o que tem sido dito, pretendemos dar ao grande poeta o lugar a que tem direito na língua comum falada por duas centenas e meia de cidadãos do mundo.
Camões é um todo inesgotável que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo verificável. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica, devemos procurar entrar pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embrenhou-se não só na existência comum do seu tempo, mas também na cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”.
Oiçamo-lo: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. São inesgotáveis a força, a sensibilidade, o ritmo, o génio, a arte, tudo… Luís de Camões em “Os Lusíadas” apresenta e representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do épico constitui, assim, oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Só um humanista completo poderá dar-nos o que nele encontramos. Deveremos, por isso, ler Camões nos seus momentos mais marcantes. Centremo-nos em “Os Lusíadas”, poema que se divide em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heroicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas.
“Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II, narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordância de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “glória de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo. No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contém as lamentações, num tom de desabafo, de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica a reflexão sobre a exigência da porfia e do trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. E, como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que se trata o tema sublime relativo à essência da vida humana… Mais do que símbolo pátrio, “Os Lusíadas” apresenta-se, na linha dos grandes clássicos como uma obra sobre o caminho da humanidade no sentido da emancipação e do aperfeiçoamento.
Diminuto venho, por diminutivo te trato. É bonito, creio, este jeito português de engrandecer o amor por uma qualquer forma de regresso ao pequenino de nós. Ainda há pouco, no terraço, o Alberto cantava, naquela voz de tenor, de timbre tão sonoro e claro que, sabemos, só pode sair da garganta do coração: "Era ainda pequenina, acabada de nascer, inda mal abria os olhos, já era para te ver..."Ocorreu-me ainda (vê lá tu!) que até o grande amor do presépio no Natal português tem muito a ver com o gosto carinhoso do que é pequeno e nos chama a debruçar o coração. Amar o que é grande poderá ser vã cobiça, querer o que é pequeno não é já desejo, é só ternura. É como a dádiva de Cristo, o "anti-narciso": só nos outros me amo, nunca em mim. E todos somos breves, como as "sakura" na primavera todos os anos ensaiada. Permanece a lembrança, não a da nossa cabecita que se vai degenerando, mas essoutra que a luz dos infinitos astros regista, e no coração de Deus já se conhecia... Recolhi-me agora, não jantarei, vai-se escondendo o sol que tão amigo foi da nossa tarde. Fui à missa das 10 horas com a tua irmã, o Alberto também, mas ficou lá atrás, sempre em pé, exceto na consagração - que é quando tira do bolso do casaco um lenço impecavelmente branco que, desdobrado no chão, lhe serve de genufletório. Para nós, católicos da Europa do norte (que partilhamos com "protestantes"), duas coisas há difíceis de entender: por um lado, a devoção pietista, um sentimento religioso mais próximo do anseio do que da teologia; por outro, um anticlericalismo latente, desconfiado. Não quero falar-te nisso agora, tive um domingo feliz, entre amigos e família. Fez-se hábito cá desta casa, sobretudo no Verão, dispensarem-se os criados aos domingos... A tua irmã já não se assusta, e deixa o Alberto entretido com os amigos: cozinham e servem-nos em mesa posta no terraço. Depois, o Nobre, que é médico, e o Videira, advogado, pegam na guitarra e na viola, para umas variações ao sabor de lembranças de estudantes e, sobretudo, do gosto familiar de estarem juntos e sempre beirões. O Alberto, que nunca fuma, acende um havano, prova uma aguardente velha..."esta ainda é das que o meu Pai fazia!" Quando agarra no saxofone, ensaia a combinação de umas notas, entra nas variações que as cordas vêm tocando, mas logo todos passam das harmonias de Coimbra para melodias de Lisboa, a que o sax empresta voz... Interrompe-se, recomeça-se, fuma-se entretanto, e recorda-se muito... Até que o Alberto larga o saxofone e aclara a voz, com um gole da "velhíssima"... E ouvimos, no silêncio do domingo campestre, na tarde tépida, no calor amigo de uma refeição partilhada e "toda feita por nós", fados e baladas do Bettencourt e do Menano, cantigas da Beira, tão cheias de montanha e de Mãe, tão sentidas da saudade inicial das nossas vidas... Chegam, mais tarde, umas novidades: lembranças do Alberto, que dá, no saxofone, umas notas para os outros, nas cordas, dedilharem um acompanhamento... Lembra-se de tudo, ninguém sabe donde lhe vem a inspiração, será sempre do gosto da poesia... Hoje, trouxe-nos um vilancico do século XVI, de Juan de Timoneda, cujo mote glosou, em jeito "renascenço-malandrista", mas cheio de graça e ternura: «Pues el tiempo seme passa / Madre mía, en buena fé, / «sola yo no dormiré. / Madre, ya sé quién me ama / Y quien servirme desea, / que no soy tuerta ni fea / ni mala para en la cama... / Qué me falta para dama? // No soy negra ni mulata / para no tener amores, / mochacha como las flores, / hermosa como la plata. / Duerma sola la beata, / que tiene causa porqué: / sola yo no dormiré!». Mas,logo a seguir,mudou de tom e ritmo e contrapôs,a Juan de Timoneda,um coevo, frei Luís de Léon: «Qué descansada vida / la del que huye el mundanal ruido, / y sigue la escondida / senda por donde han ido / los pocos sabios que en el mundo han sido!». É assim o nosso Alberto: ponto e contraponto, sempre contrapondo, nunca desgostando. Um gosto de conviver com as almas deste e de outros mundos, no mistério de uma ternura que foge, como os rios que regam... Escrevo-te com muitas reticências ... Quando estou com o Alberto, mesmo em memória, estou sempre à espera de um milagre que não vi mas sei que está ali. Falar com ele é sentir alguém que se entrega e espreita sem esperança de retorno, mas tão só pelo gosto de poder escutar um qualquer eco a que chamamos vida... E há ainda essa argúcia com que, ao retirar-me, me interrogou, citando um passo da "Citadelle" do Saint-Éxupéry: «Je me disais donc: "L’essentiel est que demeure quelque part ce dont on a vécu. Et les coutumes. Et la fête de famille. Et la maison des souvenirs. L’essentiel est de vivre pour le retour..." Et je me sentais menacé dans ma substance même par la fragilité des pôles lointains dont je dépendais. Je risquais de connaître un désert véritable,et commençais de comprendre un mystère qui m´avais longtemps intrigué... Tem razão: é essencial que num sítio qualquer permaneça aquilo de que vivemos. É meia-noite, tenho a janela aberta. Ouço um murmúrio de passos discretos, no terraço. E, num sussurro, a voz do Alberto que chama: "Rosinho, Rosinho, estás a dormir? Acorda, Rosinho, acorda!" E, logo depois, um rumor musical, uma música de dança: ruuu...ruuu...ruuu... E o Alberto a pedir: "Dança, Rosinho, dança!" Assomo à janela. Duma das casitas de pombos, postas por cima das gaiolas abertas aos pássaros livres, um pombo robusto, de papo inchado, sai para a "varanda", anda em roda e ruuu...ruuu...ruuu!!!" É longa esta carta de Camilo Maria que, na manhã seguinte a continua: falando de Eça de Queiroz e de Gogol, de Tintin e outras leituras do Alberto que, insone, as interrompia para ir, a meio da noite, servir-se de escabeche de pescada ou torresmos, à silenciosa cozinha!
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 13.09.13 neste blogue.
Numa ordem mundial dominada por ditaduras não teria acontecido o 25 de Abril em Portugal, nem outros acontecimentos congéneres seriam possíveis pelo mundo fora. Só uma ordem mundial baseada na democracia poderia ser a sua génese.
Sendo intrinsecamente democrático, na sua essência, o 25 de Abril de 1974 não tem donos, é de todo o povo, não sendo propriedade exclusiva desta ou daquela ideologia, deste ou daquele partido, direito de preferência de alguns, sendo de todos, sejam mais ou menos instruídos ou qualificados e, daí, também, ser feriado.
Não pode, nem deve, ser apropriado por poucos, pois sendo generoso na sua origem nele cabem todos, não sendo de direita, do centro ou de esquerda, havendo nele lugar para democratas, antidemocratas, liberais, antiliberais, comunistas, anticomunistas, radicais e extremistas.
Querer a liberdade de celebrá-lo só para nós, enquanto a negamos aos outros, é trair o sentido mais autêntico daquela data.
Se a sua mensagem mais genuína foi a liberdade, no seu respeito pelas liberdades individuais e direitos humanos, onde sobressaem a liberdade de expressão, de pensamento e o direito à informação, há que repudiar a ideia de que tem proprietários, que é uma espécie de coutada ou tapada proibida a quem pense de maneira diferente.
É contra o espírito do 25 de Abril apropriá-lo, para sobreviver, à custa de autoelogios por atos louváveis praticados anteriormente na clandestinidade.
Assim como o é a sujeição a uma ditadura de opinião que defenda a interdição de partidos de direita, tidos como antidemocratas, ditatoriais e totalitários, mas que aceita como arautos da liberdade partidos de esquerda similares, que sempre defenderam (e defendem) regimes políticos que nunca admitiram (nem admitem) qualquer princípio de liberdade em democracia nos países que têm como modelo.
Nem é aceitável que uma minoria de presumíveis ideólogos da democracia se arrogue no direito de decidir o que é liberdade, muito menos quando é sabido serem contrários ao espírito da alvorada e da primavera de 1974 totalitarismos de direita ou de esquerda, não distinguindo entre ditaduras condenáveis e virtuosas, porque ambas intoleráveis, o que é reforçado pelo voto expresso dos portugueses no decurso de 50 anos.
Uma liberdade que é inerentemente antiautoritária, aberta à mudança, à crítica, ao debate, ao não sectarismo, a novos espaços e mentalidades, tem de incluir na democracia mesmo os que se lhe opõem, sendo o principal remédio (não o único) para que não regressem governos autoritários ou ditaduras.
Sem constrangimentos e sem censura, assim o celebrizemos e continuemos a questionar, neste seu cinquentenário, havendo ainda muito por fazer.
Conheci Eugénio Lisboa em Londres, sempre com o mesmo rigor e afabilidade, com a amável presença de Maria Antonieta, sua mulher. Conferencista exemplar, era claríssimo até no modo como pronunciava as palavras, assinalando com naturalidade cada sílaba, cada frase, com a preocupação de deixar nítidas as ideias que exprimia. Tinha um sentido de humor único, não perdendo oportunidade para recordar um episódio burlesco. Engenheiro eletrotécnico de formação, no IST, entregou-se, ao longo da vida à literatura com uma dedicação digna de nota. Muitas vezes disse que no pelouro crítico só há uma regra, que considerava de ouro: ler, ler e ler. “Ler com atenção despreconcebida. Ler, aguardando sem a malícia de um programa prévio. Sem querer enfiar pelo texto abaixo a incompetência do método pré-fabricado. É o texto, a sua natureza, a sua força específica, a sua originalidade própria, a sua frescura intrépida – que nos hão de sugerir o método (se algum) mais adequado” (As Vinte Cinco Notas do Texto, INCM, 1987). Afinal, a clareza é a boa fé dos filósofos. E costumava lembrar António Sérgio, quando este pedia que não se fizessem confusões. “Um eclipse do Sol é uma escuridão, mas a teoria dos eclipses é uma doutrina clara”.
Eugénio Lisboa era um leitor permanente e insaciável – vário, intrépido e fecundo. Estou a ver a sua caligrafia cuidada, em cadernos de linhas, e a ordenação de citações oportunas, escolhidas com elevado critério. Não é possível compreendermos o que se chamou segundo modernismo, da revista “Presença”, sem recorrer a quem melhor conheceu e melhor estudou esse singular encontro cultural. Leu e estudou o seu amigo José Régio melhor do que ninguém, e como exímio intérprete entendeu bem os contributos de Adolfo Casais Monteiro, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões. Percebeu cedo a originalidade do grupo e concordaria com a exceção à ideia de que o Português não é nada inclinado ao conhecimento de si próprio: “gosta muito de falar de si, mas daí a conhecer-se vão mundos”. Contudo, se se seguisse tal simplificação teríamos de concluir que “Antero, Pessoa e Pascoaes, por exemplo, não existiram, ou não foram portugueses, porque o mais significativo da poesia e da personalidade deles – aquilo que mais centralmente os devorou – é muito pouco característico do Português, tal como em média o conhecemos”.
Autor é aquele que acrescenta e foi esse o critério fundamental de Eugénio Lisboa na busca da literatura relevante. Lembremos o conselho que deu a António Osório, em boa hora, para que publicasse a sua inconfundível e sublime poesia. Por outro lado, a admiração que reservou a Jorge de Sena permite-nos aquilatarmos da originalidade e da força de um autor que sempre se considerou menos reconhecido do que deveria, mas que com a passagem do tempo e a limpeza dos caminhos assumiu o lugar essencial, como o crítico sempre considerou. Eugénio citou a propósito de outro intelectual marcante, o Padre Manuel Antunes, Charles Lamb, que disse: “Gosto de me perder no espírito dos outros homens”. Foi assim que aconteceu com ele próprio, numa obra plena de referências e de análises argutas e inteligentes assentes na busca incessante da eterna sabedoria do pensamento e da escrita. Montherlant, Reinaldo Ferreira ou Rui Knopfli também o ocuparam especialmente. Era um cosmopolita, com uma costela anglo-saxónica, criada na experiência moçambicana e na presença em Londres. Ao folhearmos números antigos da revista “Colóquio – Letras”, encontramos sempre o leitor atual, exigente e insaciável, a descobrir aquele pormenor essencial que passaria despercebido ao leitor ocasional. Não esqueço ainda a ação que desenvolveu na Comissão Nacional da UNESCO, sempre atento aos vários domínios da organização: a educação, a cultura, a ciência, o património e a comunicação. E as suas memórias em Acta est Fabula são imperdíveis, um autêntico néctar para a leitura do mundo.
No passado dia 8, o Vaticano publicou, com a aprovação do Papa Francisco, a Declaração Dignitas infinita (Dignidade infinita), um documento elaborado ao longo de 8 anos pelo Dicastério da Doutrina da Fé, presidido desde 2023 pelo teólogo argentino cardeal Victor Manuel Fernández. Nela, que lembra que este ano se celebram os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde a palavra dignidade aparece cinco vezes e é declarada como “intrínseca a todos os membros da família humana” e “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, tudo gira, como diz o título, Dignidade infinita, à volta da dignidade humana, “uma questão central no pensamento cristão”, como sublinhou o prefeito do Dicastério. De facto, o que é o Evangelho senão uma notícia boa e felicitante: Deus é bom, Pai e Mãe, tendo todos os homens e mulheres a dignidade soberana de filhos de Deus?
Esta dignidade é “ontológica”, portanto, inerente ao ser humano de modo intrínseco e inalienável em qualquer circunstância, pertence-lhe pelo simples facto de existir. É concedida por Deus que, como diz o livro do Génesis, “criou o Homem à sua imagem e semelhança”, imagem indelével. “A Igreja, à luz da Revelação, reafirma e confirma absolutamente a dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e salva em Jesus Cristo”, “dignidade inalienável que corresponde à natureza humana, para lá de qualquer mudança cultural”, “um dom recebido”, presente “numa criança não nascida, numa pessoa inconsciente, num ancião em agonia”. “A Igreja proclama a igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição de vida ou das suas qualidades.” Jesus identificou-se com os últimos e ao ressuscitar revelou-nos que “o aspecto mais sublime da dignidade do Homem consiste na sua vocação à comunhão com Deus.”
Também pela razão o ser humano conclui pela sua dignidade inviolável: quando, por exemplo, reflecte sobre a liberdade —autopossui-se, é senhor de si, um animal que tem linguagem (zôon lógon échon) e, por isso, animal político (zôon politikón), como bem viu Aristóteles: capaz de distinguir o bem e o mal, o conveniente e o inconveniente, o justo e o injusto, — e sobre si mesmo: autoconsciente, consciente de que é consciente, afirmando-se como um eu único e perguntando ao infinito pelo Infinito, Deus... Mas, na Declaração insiste-se na fundamentação na fé. E só posso estar de acordo com o teólogo José L. González Faus, quando escreve que, embora melhorável — ao longo da exposição também levantarei interrogações a confirmá-lo —, o documento “constitui uma fundamentação de e um apelo a essa tarefa hoje tão urgente e comum a crentes e não crentes: a fé na absoluta dignidade do ser humano e o imperativo categórico de trabalhar pelo respeito dessa dignidade como a tarefa mais importante no mundo de hoje”, contribuindo assim para “um mundo menos cruel e menos triste”.
Desgraçadamente, como sublinhou o cardeal prefeito do Dicastério, “a dignidade humana não é algo que a Igreja tenha reconhecido sempre com a mesma clareza: houve um crescimento na compreensão. Acrescenta-se, aprofunda-se a compreensão, notamos que no interior da própria Bíblia há uma explicação crescente.” E lembrou, como exemplo, que, se em 1452 o Papa Nicolau V numa carta aos reis de Portugal tinha justificado e até ordenado a escravatura — cito parte da bula, que constitui, no meu entender, uma das maiores vergonhas da Igreja: ”Nós... concedemos faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que estiverem, e os reinos, ducados principados, domínios, possessões... e reduzir a escravidão perpétua as pessoas dos mesmos...” —, Paulo III em 1537 lançou a excomunhão sobre quem a defendia, pois tratava-se “de humanos”.
Para sublinhar que nunca se perde a dignidade intrínseca, o documento apresenta a dignidade segundo quatro dimensões: precisamente a dignidade ontológica; a dignidade moral, que se refere à liberdade e ao seu exercício; a dignidade social, que se refere às condições de vida; a dignidade existencial, em conexão com o modo como nos apercebemos da própria dignidade: “Hoje fala-se cada vez mais de uma vida ‘digna’ e de uma vida ‘indigna’; referimo-nos a situações propriamente existenciais, por exemplo, o caso de uma pessoa que, embora nada de essencial para viver lhe falte, tem, por diversas razões, dificuldades para viver na paz, na alegria e na esperança.” Referindo-se a esta “distinção entre a dignidade ontológica que nunca se perde e outra social, moral e existencial que podem crescer ou diminuir com as circunstâncias da vida”, o cardeal esclarece: “Posso ter uma vida indigna, mas nunca perco a inalienável dignidade humana. Os outros podem fazer com que eu leve uma vida indigna, mas nunca me tiram a dignidade por ser humano: a dignidade é a mesma para alguém nascido na Itália ou na Etiópia, em Israel ou em Gaza. É exactamente a dignidade inalienável. Não há nenhuma circunstância que faça com que uma pessoa tenha menos valor, a sua dignidade permanece inviolável em qualquer contexto, situação, cultura.”
Este esclarecimento é importante, para não dizer decisivo, pois chave essencial de leitura da Declaração é ver a dignidade, sempre, “para lá de toda a circunstância”. Continuaremos.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 20 de abril de 2024
Com a morte do Arquiteto Bartolomeu Costa Cabral desaparece uma das últimas referências de uma geração fundamental na renovação da Arquitetura portuguesa.
Com Nuno Teotónio Pereira, foi um dos autores do Bloco das Águas Livres, que constitui um marco na história da renovação urbanística de Lisboa.
O Centro Nacional de Cultura homenageia o grande Arquiteto e apresenta sentidas condolência aos seus familiares e amigos.
Nota biográfica
Formado na Escola de Belas Artes de Lisboa (onde viria a lecionar), o seu percurso profissional tem início desde muito cedo, quando ainda estudante. Iniciou colaboração no Gabinete de Urbanização do Plano Diretor de Lisboa, entre 1956 e 1959, e colaborou com Nuno Teotónio Pereira (1922-2016).
Bartolomeu Costa Cabral teve uma relevante atividade sindical, ao ter sido membro da direção do Sindicato Nacional dos Arquitetos e da direção da secção portuguesa da União Internacional de Arquitetos.
Entre os seus principais trabalhos, lembramos a Escola Primária do Castelo (Lisboa, 1960), a estação do metropolitano da Quinta das Conchas (1998-2002) e os blocos de habitação social dos Olivais (Lisboa, 1961, com Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas).
Bartolomeu Costa Cabral recebeu vários prémios ao longo da carreira, como o prémio Eugénio dos Santos, em 1997 (com Nuno Teotónio Pereira pela remodelação do Teatro Taborda, em Lisboa), o prémio de arquitetura Raul Lino, em 1978 (pela agência da CGD de Sintra), a menção honrosa do prémio Valmor, em 2009 (habitação individual na Travessa da Oliveira, em Lisboa), e foi distinguido como Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (2022).
“Uma Voz na Revolução” (Clube do Autor, 2014). É emblemática a imagem de Francisco Sousa Tavares no Largo do Carmo a dizer que esse dia 25 de Abril de 1974 era o dia mais importante da história portuguesa, desde o dia Primeiro de Dezembro de 1640.
UMA HISTÓRIA EXEMPLAR A Revolução de 25 de Abril de 1974 constitui um momento especial na História política contemporânea. Soma-se, no caso português, a 1820, 1826, 1834, 1836, 1851 e 1910 – datas marcantes na afirmação do constitucionalismo liberal e democrático. Para Samuel Huntington, Abril de 1974 foi mesmo o começo da Terceira Vaga da Democratização, numa perspetiva global. (Cf. Democracy’s Third Wave, Journal of Democracy, Spring 1991). De facto, entre 1974 e 1990, pelo menos em 30 países operaram-se transições para a Democracia, duplicando-se no mundo o número de governos legitimados pelo primado da lei e pela legitimidade do voto e do exercício. Para o pensador norte-americano, a Primeira Grande Vaga da democratização começou em 1820 com a conquista nos Estados Unidos do reconhecimento da generalização voto masculino, antecâmara do sufrágio universal, com a consagração até 1926 de 29 democracias constitucionais. Contudo, já em 1922, a chegada ao poder de Mussolini em Itália determinou o início de uma reversão de tendência que levou, tragicamente, até 1942, à redução drástica do número de democracias no mundo a apenas 12, na contabilidade de Huntington.
Com o triunfo dos Aliados na II Guerra Mundial iniciou-se a Segunda Vaga da Democratização que atingiu o seu apogeu em 1962 com 36 países governados democraticamente. Apesar de ter ocorrido no período 1960-1975 uma segunda reversão que reduziu a 30 os regimes de liberdade. A Terceira Vaga, que o 25 de Abril de 1974 lançou, tem expressão significativa na Europa, em especial com a transição em Espanha e na Grécia e com o impulso democrático nas Comunidades Europeias, designadamente a partir de final dos anos oitenta com os alargamentos decorrentes da queda do muro de Berlim, do fim da Guerra Fria e da abertura política ocorrida no centro e leste do Velho Continente. Contudo, a situação atual apresenta-se com especial complexidade, uma vez que assistimos a uma nova tendência de regressão, especialmente evidenciada nas tensões manifestadas quer na Europa quer na América… São evidentes hoje as incertezas ditadas pelas Presidências de Donald Trump e de Vladimir Putin, pela crise financeira de 2008, pela Pandemia Covid-19, pelos conflitos da Ucrânia e do Médio Oriente, pela ambiguidade da R. P. da China, pela evolução protecionista na Hungria e na Polónia, pelos efeitos do Brexit, num contexto de polaridades difusas no sistema internacional, que ditam a emergência de paradoxos originados por tensões entre as liberdades políticas, as ineficiências económicas, o agravamento das desigualdades e a afirmação de correntes radicais de sinal contrário, que têm posto em causa a afirmação dos Estados de Direito. A emergência de situações autoconsideradas como democracias iliberais e o desrespeito da legitimidade democrática nas relações internacionais constituem fatores que têm marcado negativamente uma evolução equilibrada e gradualista, de um pluralismo capaz de favorecer o desenvolvimento humano.
UMA CRISE A SUPERAR Vivemos, pois, um tempo em que as democracias registam uma crise de legitimidade quer pela ausência de mecanismos institucionais de mediação, que permitam aos cidadãos sentirem-se devidamente representados e participantes, quer pela crise demográfica nos países desenvolvidos e pela pressão migratória proveniente dos países menos desenvolvidos do sul. Por um lado, temos a crise do Estado-Providência pelo desequilíbrio entre contribuintes e beneficiários dos sistemas de segurança social, por outro, há as carências de mão-de-obra para empregos indiferenciados que conduzem a uma pressão significativa ditada pelo afluxo de migrantes – com consequências na coesão social e no sentimento de insegurança. Nestes termos, a crise da Democracia tem a ver com a necessidade do estabelecimento de soluções que visem a coesão, a confiança e a estabilidade das sociedades. A sustentabilidade cultural entra, assim, na ordem dia, ligando questões diversas e complexas como a preservação do meio ambiente e as respostas ao aquecimento global, o envelhecimento das populações nos países desenvolvidos, a transição digital, a emergência a Inteligência Artificial e a desmaterialização da economia, exigindo a criação de instituições mediadoras capazes de favorecer a defesa do bem comum, a prevenção da corrupção e do desperdício e a estabilização social.
COMPROMISSO NECESSÁRIO Jorge de Sena, num poema de 1971, distinguiu as “verdadeiras revoluções que terminam em compromisso e as que não começam nem acabam” (Poesia III, Moraes, 1978). E foi João Fatela quem lembrou, na revista “Esprit” (1979), as duas razões que podem explicar os compromissos que ritmaram a vida portuguesa. Antes do mais a economia e a sua incerteza e ainda o desejo de salvaguardar e de estender os valores democráticos, que surgem como a conquista fundamental de Abril. Em Portugal, primeiro, houve a tentação radical e depois o compromisso europeu. E a ideia de compromisso constitucional e político apresenta uma dupla face: a estabilização necessária e um conformismo perverso. Eis o dilema. Mas o compromisso permitiu a duração e a continuidade da Democracia. Como salientou Eduardo Lourenço, a questão colonial foi o detonador da eclosão da revolução. “Quando os portugueses regressam a casa, fecham-se como os piratas sublimes com o seu tesouro imperial. E pouco importa que esse tesouro seja um verdadeiro tesouro ou apenas a lembrança de um tesouro perdido. O imaginário português não tem outro centro nem outra circunferência a não ser os desse império sonhado” (Cf. Une Vie Écrite, Gallimard, 2015). E a diáspora portuguesa assumiu toda a sua amplitude com os movimentos migratórios para as Américas e, a partir dos anos sessenta do século XX, para França e para a Alemanha. Assim, a Europa e a Democracia foram as duas faces da mesma moeda, suscetíveis de mobilizar os portugueses no sentido da liberdade necessária. Mário Soares compreendeu perfeitamente a necessidade de ligar estas duas referências num projeto político de abertura e de estabilização que designou com “A Europa Connosco”. Ernesto Melo Antunes, o dirigente militar que assumiu com exemplar coerência o caminho desde o programa do MFA até ao compromisso constitucional, teve um papel fundamental ao afirmar, em 25 de novembro de 1975, quando foi vencida a última tentativa dos militares radicais, que o pluralismo e a democracia deveriam ser defendidos com todas as suas consequências, e sem qualquer exclusão. E João Fatela afirmou: « Se a democracia não se forma sem compromisso, só o exercício coletivo da liberdade o torna possível». A grande lição de Abril, é, deste modo, o que Agustina Bessa-Luís exprimiu ao dizer: «Não se tratava de uma revolução no sentido que cada um desejava dar-lhe, como triunfo de uma classe sobre outra, por exemplo, mas de algo talvez mais profundo, como o fim de um medo milenar e do desprezo de si» («Crónica do Cruzado Osb», 1976). Esta é sem dúvida uma das reflexões mais lúcidas sobre a «revolução portuguesa».