A CAMINHAR PARA O PRINCÍPIO…
A Exposição que está na Biblioteca Nacional de Portugal alusiva ao centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, comissariada por João Dionísio, é uma muito boa surpresa. Não se trata apenas de mais uma evocação do pensador e ensaísta, já que se baseia no seu espólio inesgotável, que agora começa a ser revelado. Nesse sentido, mostra-se uma faceta do escritor que só agora pode começar a ser estudada, enriquecendo o conhecimento do prolífero autor, cuja obra longa e multifacetada precisa de ser mais bem conhecida. E cabe elogiar o excelente trabalho desenvolvido por João Dionísio na conceção do percurso, apresentado numa sequência que vai do epílogo para o começo, em revelação apaixonante de uma vida cuja riqueza correspondeu a uma simbiose fecunda entre a existência e a reflexão, não podendo esquecer-se o contributo decisivo para a reunião destes preciosos elementos de João Nuno Alçada, conhecedor profundo deste extraordinário acervo.
O título “A caminhar para o princípio” diz tudo. Há um percurso cronológico concebido às avessas baseado num pequeno apontamento do ensaísta e numa fotografia. No primeiro lê-se: “Pour moi il (est) trop clair que nous marchons dès le commencemet vers notre commencement» - Para mim é demasiado claro que caminhamos desde o começo até ao nosso começo. Na fotografia, de Sílvia Seova, já publicada num dos volumes das Obras publicadas pela Gulbenkian, Lourenço, de costas, na companhia de um cão, caminha na direção de um túnel, sobre o qual os arbustos e as árvores deixam entrever a parte cimeira de uma casa. De forma natural, é como se Eduardo nos contasse a sua vida – começando por uma bela fotografia de Duarte Belo, que reproduz o gabinete, com luzes de estúdio, no qual captou centenas de imagens do espólio. Em seguida, identificando o século XXI, surge a imagem de Eduardo Lourenço na Fundação Calouste Gulbenkian, quando administrador não executivo, seguindo-se, para os anos 90, o pensador com Annie Salomon na muralha da China, na comitiva oficial do Presidente Jorge Sampaio. Para os anos 80, temos a impressiva imagem da visita ao Carmelo de Santa Teresinha, onde estava Lurdes, irmã de Eduardo. Nos anos 70, contamos com a paradoxal colagem da autoria de Mário Botas, em que a face recortada do pensador, com ar prazenteiro, ocupa a face do Rei Desejado, na pintura clássica de Cristóvão de Morais. A década anterior apresenta-nos a imagem do casal Faria com o filho Gil, enquanto o prólogo colocado às avessas envolve imagens inéditas do casamento de Annie e Eduardo em Dinard (Bretanha) e a presença do herói de tenra idade com os olhos bem abertos para o mundo. Estes são os marcos fundamentais deste fantástico caminho, também ilustrado pelo friso multicolorido com as capas das obras vindas a lume em Portugal e no estrangeiro. E, ao seguir esse caminho, orientado para o começo, fica a lembrança do devorador de periódicos que Eduardo era, colecionando, dobradas em quatro, as páginas dignas de maior interesse: “Não posso passar um dia sem ler o jornal. Compro-o e vou para ele como se o mundo viesse ao meu encontro”. E o exemplo de Hegel vinha à baila, na oração matutina do homem civilizado. Sou testemunha disso, com o meu vizinho de gabinete. E, em lugar de imagens já conhecidas, surpreendem-nos referência inéditas que ilustram a passagem dos sinais dos tempos que tanto o interessavam. Não por acaso, na célebre “Heterodoxia”, surgiu como símbolo, como ex-libris inconfundível, Migdar, a serpente de aspeto circular que morde a própria cauda. “Podemos ver (no velho mito germânico) uma imagem da vida como um todo que solicitou no seu seio a necessidade mesma da morte”. É a paixão circular da vida por si mesma, demarcada de um só caminho ou de nenhum caminho. Está de parabéns a Biblioteca e a sua diretora Inês Cordeiro, convidando o visitante a conhecer um pouco do fascinante espólio de um não menos fascinante autor.
GOM