A VIDA DOS LIVROS
De 29 de abril a 5 de maio de 2024
Neste ano de Camões, em que assinalamos a comemoração dos 500 anos do nascimento do nosso maior poeta, iniciamos a publicação de textos que pretenderão dar a conhecer melhor uma figura que os portugueses conhecem mal, em toda a sua importância e originalidade. Deste modo, mais do que repetirmos o que tem sido dito, pretendemos dar ao grande poeta o lugar a que tem direito na língua comum falada por duas centenas e meia de cidadãos do mundo.
Camões é um todo inesgotável que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo verificável. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica, devemos procurar entrar pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embrenhou-se não só na existência comum do seu tempo, mas também na cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”.
Oiçamo-lo: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. São inesgotáveis a força, a sensibilidade, o ritmo, o génio, a arte, tudo… Luís de Camões em “Os Lusíadas” apresenta e representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do épico constitui, assim, oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Só um humanista completo poderá dar-nos o que nele encontramos. Deveremos, por isso, ler Camões nos seus momentos mais marcantes. Centremo-nos em “Os Lusíadas”, poema que se divide em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heroicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas.
“Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II, narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordância de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “glória de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo. No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contém as lamentações, num tom de desabafo, de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica a reflexão sobre a exigência da porfia e do trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. E, como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que se trata o tema sublime relativo à essência da vida humana… Mais do que símbolo pátrio, “Os Lusíadas” apresenta-se, na linha dos grandes clássicos como uma obra sobre o caminho da humanidade no sentido da emancipação e do aperfeiçoamento.
Guilherme d'Oliveira Martins
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