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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


177. A ESPIRITUALIDADE E O SUBLIME


Pode haver espiritualidade sem religiosidade e o inverso. 


Há religiosidade sem espiritualidade quando a religião é um mero ritual de solenidades, costumes, formalidades e tradições.   


A espiritualidade é o estado poético do espírito.


O espírito num estado poético sublime transcende a realidade, quando ficamos de tal modo tocados que não temos palavras para o exprimir, ou soltamos finitas exclamações admirativas da nossa pequenez e incompreensão perante o inexplicável ou o infinito. 


O valor das paisagens não é decidido em função de critérios estéticos formais relacionados com a sua simples beleza, proporcionalidade física e cromática, interesses económicos ou utilitários, mas pelo potencial que os seus lugares e o seu conjunto tiverem em elevar o espírito a um patamar do sublime. O mesmo quando confrontados com uma paisagem esmagadora e não temos palavras para exprimir o que sentimos, estabelecendo-se uma relação espiritual com o que estamos a observar.   


Thomas Gray, poeta, quando fez uma travessia pelos Alpes, em demanda do sublime, escreveu: “Ao longo da nossa breve viagem até à Grande Chartreuse, não me lembro de ter dado mais de dez passos sem soltar uma exclamação diante do ilimitado”.   


O sublime é um desafio à vontade humana, confronta-nos com uma força maior que nos ameaça, interpela e nos questiona, pode provocar medo, ira e ressentimento, mas também admiração e respeito pelo que é poderoso e nos transcende, podendo aliar-se a um desejo de adoração.       


Numa viagem à Argentina, não esqueço as emoções sentidas com a visão dos glaciares, em especial numa viagem de barco em redor de um deles, que de tão avassalador, desafiante, intimidante, imponente e sublime fez soltar, espontaneamente, a alguns viajantes, frases como: “Alguém duvida, agora, que Deus existe!?”, “Eis uma prova da nossa pequenez e insignificância perante o que é mais poderoso que nós!”.   


Podemos transferir a espiritualidade para múltiplas experiências que temos na vida. É comum a espiritualidade laica, como o exemplifica o “Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”, de José Saramago. Em experiências e relatos de viajantes como Thomas Gray, Edmund Burke, Wodsworth, Rimbaud, Artaud e René Daumal.  


Patti Smith, em recente estadia entre nós, em Lisboa, após referir “Que há algo de belo em ter uma missão”, que a ambição, a todo o custo, de poder ocupar o trono, não vale nada perante a brevidade da nossa existência, reconhece que procurou o sentido da vida através do estado poético da poesia e sua espiritualidade, fazendo dele uma forma de perscrutar o destino do ser humano e a sua possibilidade de transcendência.  


Quer nos entreguemos ou questionemos, há sempre uma procura, por meios diferentes, de alcançarmos uma “meta-física”, uma espiritualidade que pode ser uma espécie de estado poético do nada que é a essência de tudo.


31.05.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

AS ÁRVORES METAFÍSICAS


Da coragem sofria-lhe as consequências, não todas. Mas.

Analisara os conluios de uma medicina assim praticada e dela se assumiu franco atirador.

Realizava com brio todas as consultas e demais trabalhos que a profissão lhe exigia e, ainda assim, os seus serviços eram dispensados com frequência.

Entendia que quase todos tinham conhecimento da injustiça que em relação a ele se praticava, mas as indeterminadas determinações superiores e o superior interesse da moral dos colegas, mandavam que a imprudência de uma existência e de uma essência diferentes, não fossem nunca realidade a ter em conta.

Havia que lhe fazer a vida difícil custasse o que custasse. E faziam. Registava.

Ele era o cordeiro.

E pelos anos fora enobrecia-se por tudo o que cumpria no equilíbrio calculado entre a diferença e a similitude que o não perturbava.

Tentara várias vezes conversar com os colegas explicando a sua mágoa do não reconhecimento do seu honesto e imenso saber na profissão, e escrevia cartas a quem poderia com ele nidificar posturas, mas uma tumba de silêncio fora sempre a resposta.

Os doentes, os doentes reconheciam-lhe uma dissemelhança exprimida numa zanga fria e distante, mas nada diziam. Aos doentes acode-lhes esmagadoramente a fragilidade sem outra saída, e eles sabem-no, e ainda que muito agradeçam qualquer dever que se cumpra na sua situação, toda a expressa gratidão faz parte da fragilidade do seu estatuto.

Contudo, nos vários hospitais por onde andara, o nosso franco atirador sentira-se sempre ferido por arbitrariedades; humilhado pelas dispensas de opinião, e sentira mesmo que o impediriam definitivamente de qualquer progressão na carreira.

Um dia, um dia, desesperado, decidiu solicitar uma reforma antecipada e, corajosamente, sofrer-lhe todos os resultados e partiu.

O contacto com o sofrimento humano elucidara-o da tragédia da condição de todos, mas a certeza de que na vida se podem contrariar os desesperos, levara-o a uma fuga para o reencontro. Certo estava de que tomara a decisão correta e que detinha o poder de a controlar.

Mas, o tempo foi-lhe trazendo um outro tempo, um tempo portador de situações complicadas como a de o clarificar no quanto a origem humana é comum e recente.

Contudo, ele bem conhecia como se geriam as culpas e que desculpassem, mas continuava a discordar dos demais. Era diferente. Parágrafo. Até porque egoísta não fora e a doçura e compreensão nas situações mais ariscas da vida, nunca lhe faltara. Poço de certezas esmagadoramente virtuosas com as quais negociava as interpretações, apercebeu-se um dia que também se esquecera totalmente do colega que lhe fizera o curso em grande parte.

                                                                                 *

Naquela noite a insónia encaixilhava-lhe árvores estranhamente contorcionadas como se se tratasse de belos destroços de guerra muito vivos.

O confinamento apresentara-lhe finalmente as árvores metafísicas.


Teresa Bracinha Vieira

BERNARD PIVOT

  


Partiu há dias Bernard Pivot (1935-2024), um jornalista único, conhecido por muitos como o “Rei Ler”, num jogo de palavras (de que ele tanto gostava) que o ligava à peça imortal de Shakespeare. Como afirmou Pierre Nora, Pivot foi o homem essencial que pôs a França a ler – e, não só para os francófilos, pois foi alguém que deu à leitura e aos livros uma importância fundamental no mundo da vida. Os programas “Apostrophes” e “Bouillon de Culture” foram grandes sucessos junto do público televisivo, conseguindo a extraordinária proeza de juntar cultura popular e erudita. Lançado em 1975, o “Apostrophes chegou a reunir entre 2,5 e 6 milhões de espectadores no mesmo programa em meados dos anos 80… Em 1983, um inquérito à opinião pública, revelou, aliás, que um terço das compras de livros em França se devia ao programa “Apostrophes”, o que levou Régis Debray, num acesso de mau humor, a falar de um monopólio de Pivot no mercado dos livros. O ativista arrepender-se-ia, porém, desse repente e pediria desculpas formais ao jornalista.


Lembro bem o entusiasmo de Isabel da Nóbrega sobre a importância desses programas, designadamente dos célebres “Dicos d’Or”, ditados nacionais para que se escrevesse melhor, com mais rigor, e que inspirou fugazmente os nossos Campeonatos Nacionais da Língua Portuguesa, que Francisco Balsemão, em boa hora, trouxe para Portugal. O segredo para o sucesso de Bernard Pivot deveu-se à escolha de personalidades capazes de suscitar boas polémicas e inesperadas controvérsias. Então presenciávamos o renascimento dos antigos salões literários, com uma qualidade e um refinamento difíceis de alcançar. Sabia-se sempre que algo se iria passar nessa noite – jocoso, dramático, inteligente, incerto, mas atraente, motivando uma boa razão de leitura e um bom livro ou uma ideia interessante. Bernard Pivot era de uma curiosidade e de uma imaginação inesgotáveis. Nunca perdeu a capacidade de fascínio de uma criança. E em alguns programas chegou mesmo a ter de lidar com situações muito desagradáveis, como aconteceu em 1978 com o desatino de um Charles Bukowski totalmente ébrio.


Mas Bernard Pivot gostava de arriscar, nunca tendo conseguido convencer Gracq, Cioran, Beckett ou Genet, mas tendo suscitado deliciosos encontros como o de Roland Barthes com Françoise Sagan, sob o olhar de Anne Golon, além da presença difícil, mas muito apreciada, de Marguerite Duras, Claude Levi-Strauss ou Vladimir Jankelévitch… Apesar de ter tido um desencontro profissional com Jean d’Ormesson no “Le Figaro”, a verdade é que este seria o autor com mais presenças nos seus programas. O debate de ideias funcionava e punha os espectadores presos à pantalha, como antes não suspeitariam possível. Só a qualidade excecional de Bernard Pivot permitia manter conversas apaixonantes, sempre renovadas, e sobretudo insuscetíveis de caber em qualquer receita repetitiva ou maçadora. Contudo, o trabalho a que se dava o jornalista era incomensurável, com uma equipa excecional, animada pela qualidade de um maestro culto, inteligente, atento e empenhado, com a tal curiosidade insaciável, facto bem evidente em livros como “Dicionário Amoroso do Vinho” (2006) e “As Palavras da Minha Vida”(2011), obras só possíveis para um grande e requintado especialista. Pode dizer-se que criou um fenómeno que nos obriga a pensar. Por mais campanhas que se façam, para promover a leitura, a verdade é que se torna necessário criar motivos sérios e exigentes para mobilizar vontades e interesses. Precisamos de catalisadores capazes de tornar a leitura e o amor aos livros fatores de cultura, como foi Bernard Pivot.          


Uma nota final. As Artes afirmam-se pela prática e pelo exemplo. Hoje, devo lembrar a memória de um jovem músico da Orquestra Gulbenkian, Pedro Freire, que nos deixou na flor da idade sem que alguém pudesse prever. Fica o seu entusiasmo e a sua extraordinária qualidade a demonstrar que o culto das Artes está no princípio de tudo.


GOM

DOIS ESTADOS. E JERUSALÉM?

  


Segundo as Nações Unidas neste ano de 2024 há — imagine-se! — 64 conflitos armados no mundo É o horror pura e simplesmente.


A opinião pública estará sobretudo voltada para os conflitos na Ucrânia e em Gaza. Deixo aí, com repetições, uma breve reflexão concentrada no confronto entre palestinianos e judeus, pois está a ser  objecto da atenção pública, também por causa das intervenções recentes do Papa Francisco em Verona e do bispo José Ornelas em Fátima. Sem esquecer, evidentemente, que o ataque terrorista do Hamas no passado  dia 7 de Outubro é pura e simplesmente inqualificável. Não há realmente palavras para aquele horror monstruoso.


No passado dia 13 de Maio, no final da Missa que encerrou a peregrinação internacional, o bispo José Ornelas pediu “paz para a Ucrânia, naquela cruel guerra que já dura há tanto tempo. Paz para a Terra de Jesus, a Palestina, onde mais de 35 mil pessoas já perderam a vida e a maioria, escândalo dos escândalos, são crianças”; e disse também: “o pior de tudo, o que não se pode permitir, é proibir que chegue a ajuda alimentar necessária para mais de um milhão de pessoas que estão a morrer de fome. Daqui, da Cova da Iria, apelo, apelamos para a paz. É inconcebível para um coração humano que isto esteja a acontecer no mundo.”


No passado dia 18, em Verona, Francisco participou num acontecimento verdadeiramente profético, a anunciar que é possível o milagre da paz.  Subiram ao palco e disseram: “Papa Francisco, sou Maoz Inon, sou de Israel e os meus pais foram assassinados no dia 7 de Outubro pelo Hamas; Papa Francisco, chamo-me Aziz Sarah, sou palestiniano e o meu irmão foi morto pelo exército israelita. Somos empresários e acreditamos que a paz é a coisa maior que podemos conseguir”, e apelaram à paz.  As dezenas de milhares de pessoas que enchiam o anfiteatro romano  de Verona ficaram suspensas num suspiro emocionado, a ansiar pela paz. A multidão aplaudiu de pé. O Papa agradeceu: “Tiveram a coragem de se abraçar, um testemunho não só de paz mas também de um projecto de futuro.” Abraçaram-se os três, no meio de aplausos e de lágrimas dos presentes.


Francisco tem sido incansável no apelo à paz, nomeadamente na Palestina, com a posição que sempre tem mantido, aliás na linha da diplomacia tradicional do Vaticano quanto aos dois Estados e ao estatuto  especial de Jerusalém, cidade santa para judeus, cristão e muçulmanos.


Neste espírito, relembro, por exemplo, uma Carta de Francisco ao Grande Imã de Al-Azhar, no Egipto, Amehd el-Tayeb: “A Santa Sé não deixará de recordar com urgência a necessidade de que se reate o diálogo entre israelitas e palestinianos em ordem a uma solução negociada, encaminhada para a coexistência pacífica de dois Estados dentro das fronteiras entre eles acordadas e reconhecidas internacionalmente, no pleno respeito pela natureza peculiar de Jerusalém, cujo significado está para lá de qualquer consideração sobre questões territoriais. Só um estatuto especial, também garantido internacionalmente, poderá preservar a sua identidade, a vocação única de lugar de paz a que apelam os Lugares Santos e o seu valor universal, permitindo um futuro de reconciliação e esperança para toda a região. Esta é a única aspiração de quem se professa autenticamente crente e não se cansa de implorar com a oração um futuro de fraternidade para todos.”


A quem se admire com este pedido de um “estatuto especial garantido internacionalmente” para Jerusalém, em ordem a preservar a paz, aconselho que relembre o acordo das Nações Unidas sobre esta temática, e a quem quiser aprofundar a questão, a leitura de duas obras monumentais do teólogo Hans Küng: O Judaísmo, O Islão.


Como é sabido e repito, em 29 de Novembro de 1947, por maioria sólida e com o beneplácito dos Estados Unidos e da antiga União Soviética, as Nações Unidas aprovaram a divisão da Palestina em dois Estados: um Estado árabe e um Estado judaico, com fronteiras claras, a união económica entre os dois e a internacionalização de Jerusalém sob administração das Nações Unidas. Note-se que, apesar de a população árabe ser quase o dobro, os judeus, que então possuíam 10% do território, ficariam com 55% da Palestina.


O mundo árabe rejeitou a divisão e são conhecidas as guerras sucessivamente travadas. Mas, à distância, mesmo admitindo a injustiça da partilha e as suas consequências — é preciso pensar na fuga e na expulsão dos palestinianos —, considera-se que a recusa árabe foi “um erro fatal” (Hans Küng). Aliás, isso é reconhecido hoje também pelos palestinianos, pois acabaram por perder a criação de um Estado próprio soberano pelo qual lutam.


Como se tornou claro, a guerra não gera a paz, que só pode chegar mediante o diálogo, a diplomacia, cedências mútuas, com dois pressupostos fundamentais: o reconhecimento pelos Estados árabes e pelos palestinianos do Estado de Israel e o reconhecimento por parte de Israel de um Estado palestiniano viável, independente, soberano. E Jerusalém?


Como já aqui escrevi, na continuação de Küng, o conflito do Médio Oriente é sobretudo político. Mas não haverá paz enquanto os membros das três religiões monoteístas, que se reclamam de Abraão, se não tornarem activos, impedindo o fanatismo religioso. Com base nos seus livros sagrados — Bíblia hebraica, Novo Testamento, Alcorão —, judeus, cristãos e muçulmanos devem reconhecer-se mutuamente e lutar pela paz. Esta é a mensagem de Roma para Jerusalém.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de maio de 2024

A VIDA DOS LIVROS

  

De 27 de maio a 2 de junho de 2024


Ao terminar em 23 de maio a celebração do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, a Gradiva acaba de publicar “Eduardo Antes de Ser Lourenço – Textos de Juventude” coordenado por Luciana Leiderfarb, um conjunto dos primeiros textos do ensaísta.

 


Falaremos oportunamente da obra, assim como da nova edição de “Do Colonialismo como nosso Impensado” – com organização de apresentação de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi. Hoje publicamos parte de um ensaio sobre a relação do ensaísta com Antero de Quental no período de Vila do Conde vivido pelo poeta.


«Aqui as praias são amplas e belas e por elas passeio ou me estendo ao sol com a voluptuosidade que só conhecem os poetas e os lagartos adoradores da luz». É Antero que o confessa a João de Deus, em 13 de janeiro de 1882. Desde os finais do ano anterior mudara-se ao encontro de paz, sossego e da proximidade dos seus amigos mais próximos. «Fixei atualmente a minha residência em Vila do Conde, terrinha antiga, plácida e campestre, muito ao sabor dos meus humores de solitário» - diz a João Machado de Faria e Maia. «Vivo aqui como um verdadeiro ermita» (2 de janeiro). Sentia-se bem e confessara a Jaime Batalha Reis, nos últimos dias de outubro de 81: “Eu aqui consigo uma coisa rara, prodigiosa: dormir. Faço-o como se fosse a coisa mais natural deste mundo! Veja se não hei de considerar esta terra, além de maravilhosa, salvadora».


De facto, na vida de Antero, há um tempo e um “espírito de Vila do Conde”, que merece atenção especial. E se a relação de Eduardo Lourenço com a memória de Fernando Pessoa é especialmente relevante, a ponto de podermos dizer que é a descoberta do mistério fundamental dos heterónimos um dos maiores contributos do ensaísta para o conhecimento do modernismo português no seu conjunto, o certo é que há com Antero de Quental um elo incindível que ilumina todo o fascínio que a obra do autor de Psicanálise Mítica do Destino Português nos reserva. É, realmente, o poeta de Odes Modernas que constitui referência fundamental para o entendimento da raiz de Heterodoxia, o que leva entender-se justamente que Eduardo Lourenço é um herdeiro legítimo da Geração de 70.  Como, aliás, está afirmado e reafirmado, há uma presença indelével do tema matricial das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, nas duas visões complementares que o ensaísta considera, a da segunda Conferência do Casino de Antero e a da releitura de Oliveira Martins na História da Civilização Ibérica. Com efeito, podemos dizer que a marca desses dois textos está claramente presente quando Eduardo Lourenço se demarca de uma interpretação tradicional da cultura portuguesa, marcada a um tempo pelos ecos das glórias antigas e pelo peso do decaimento moderno. No fundo, reinterpretando Antero e Oliveira Martins, Eduardo chega a um enigma subjacente à Mensagem segundo o qual o destino português está marcado pela revelação crítica dos mitos, marcados pelos dois textos. Se o Fernando Pessoa não esconde a importância que reconhece à herança poética de Antero, deixa na penumbra a influência de Oliveira Martins na interpretação deste relativamente ao auge da afirmação histórica da dinastia de Avis e de Os Filhos de D. João I. E Eduardo Lourenço não tem dúvidas de que na Mensagem, a matriz fundamental utilizada por Fernando Pessoa corresponde à leitura que fez do autor da História da Civilização Ibérica. Como diz Eduardo Lourenço: “Em sentido próprio só com Oliveira Martins e a partir de Oliveira Martins, Portugal é história e tem a sua História. À perceção do destino português como ‘epopeia’ (transcendente ou positiva), Oliveira Martins opôs a ideia do nosso destino como ‘drama’ permanente e ambíguo. A integração do ‘mito’ no discurso histórico separa o grande Herculano, homem ainda do século XVIII, de Oliveira Martins, o autêntico romântico. Paradoxalmente, contudo, o discurso histórico do autor de Portugal e o Socialismo se tem o mérito de integrar a sombra no processo épico da visão tradicional, confere-lhe, por outro lado, um perfil fantasmagórico ao separar na escrita dele o plano vital e psicológico do plano material que condiciona o permanente balancear entre euforia e tragédia característico, segundo a sua visão, da nossa peripécia nacional” (Prefácio a Oliveira Martins, Uma Biografia, INCM, 1986, pp 16-17).


Sabemos a importância do período de Vila do Conde e não será demasiado audacioso dizer que, não por acaso, esse momento marcou especialmente a relação entre Eduardo Lourenço e o poeta de Sonetos. Sem sombra de saudosismo, o ensaísta encarou o tempo de Vila do Conde de Antero como uma oportunidade serena, de modo a pensar o inconformismo como atitude necessária, ditada pela tensão entre transcendência e imanência. Por isso, o ensaísta lembra que há entre Antero e Pessoa uma diferença intransponível, entre os sonhos sonhados e as frustrações que os acompanham. “Foi na vida mesma – na sua e na da sociedade que o cercava – que Antero quis realmente encarnar os seus sonhos, não seus apenas, mas os de uma longa utopia humana, sonho de igualdade, de justiça, de fraternidade, todos muito século XIX, que nunca foram – se não ironicamente os de Pessoa. Os sonhos de Pessoa foram, desde a origem assumida e provocatoriamente sonhos, de negação ou viagem numa outra realidade, que aquela que assim chamamos, loucura calma ou arrebatamento proposto como a sabedoria suprema. Como se tivesse nascido, e de facto teve consciência disso, sobre as ruínas do sonho anteriano que mesmo utopia de vida era já a consumação de um desastre (A Noite Intacta, pp. 140-141).


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE RUI LAGE 

  


Auto da horta destruída


Que triste, país, é a moral
da fábula campestre
que longos séculos nos deste
a ler – flautas e penhas,
rios e fragas, acaso
aproveitaste, pastor? Acaso,
velho, te acharás menino
a caminho da horta depois
de abertas as comportas?
Quem te virá demandar
cheiros para a panela?
Ficas viúvo, país, e até que falem
de novo os animais, o teu luto
dá pelo nome de turismo rural.
Fábulas contadas, sobra
a metade mais salgada
e pífia de Portugal:
a banhos vai, com espuma
e crescidas onda pela cinta avança
mas perde o pé, e às arrecuas
se firma no cómico areal,
veleiro roto, crustáceo,
heróico baixio, obesa
prancha ocidental.


in Corvo, 2008


Tale of the ruined vegetable patch


How sad, o country, is the morality
of that rural fable
you gave us to read throughout
the centuries – flutes and rocks,
ravines and rivers, did you, by any chance, shepherd,
reap any benefit? Will you, old man,
find, youthful, your way
to the vegetable garden
after the lifting of the sluice gates?
Who will come in search of
aromatic herbs for the pot?
You’ll be widowed, o country, and till
animals speak again, your mourning
is at eco-tourism’s beck and call.
All said and told, what is left
is the most salty and sorry half
of Portugal:
it heads for the seaside
and braves the waves
but, powerless to beat the current,
beats back to the sands in comical haste –
bottom-holed hulk, crustacean,
heroically sandbanked, bloated
Western surfing board.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese 

 

ANTOLOGIA

  
O Gebo e a Sombra - espetáculo de Antuérpia 


ATORES, ENCENADORES (IX)

EVOCAÇÃO DE GINO SAVIOTTI NOS 70 ANOS DO CÍRCULO DE CULTURA TEATRAL E DO TEATRO ESTÚDIO DO SALITRE
por Duarte Ivo Cruz


Fazemos hoje uma evocação de Gino Saviotti e das grandes iniciativas de cultura e de espetáculo teatral com que este italiano, fixado em Lisboa a partir dos anos 40, marcou, e de que maneira, a cultura e a atividade profissional do teatro português. Digo desde já que participei nos cursos livres de Filosofia do Teatro que em 1958 e anos seguintes Saviotti ministrava no então Conservatório Nacional. E quando, anos depois, assumi no Conservatório e depois na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa a cadeira de História da Literatura Dramática e do Espetáculo Teatral, muito recordei e evoquei os ensinamentos de Saviotti…


O Círculo de Cultura Teatral foi criado em 1945, a partir de um grupo notável de escritores e intelectuais portugueses. Os objetivos eram basicamente “desenvolver o gosto pelo teatro como intervenção literária e espetacular, a cultura intelectual, o sentido artístico e as faculdades criadoras pela poesia e o pensamento dramáticos”, segundo o manifesto de criação assinado por individualidades tais como Alves Redol, Arquimedes da Silva Santos, Jorge de Faria ou Vasco Mendonça Alves e Luis Francisco Rebello que aqui citamos.


No mesmo ano, Saviotti publicou um texto programático intitulado “Premissas para a Constituição em Lisboa de um Estúdio Teatral”. E efetivamente, em 1946, arranca no Instituto Italiano de Cultura, onde Saviotti era professor, um chamado 1º Espetáculo de Teatro Essencial que marcaria o início do Teatro Estúdio do Salitre, importante movimento de renovação teatral.


Mas passados menos de 10 anos, encontramos Saviotti a dirigir uma Nova Companhia do Teatro de Sempre-NCTS, que por direito próprio se inscreve num movimento de renovação de repertórios e de espetáculos.  Era no Teatro Avenida, e reunia um rupo de então jovens atores, com destaque para Rogério Paulo e Carmen Dolores, designadamente: havemos de falar nas carreiras respetivas.


Mas neste texto, importa sublinhar sobretudo a renovação de repertório que esta NCTS trouxe ao meio teatral à cultura teatral portuguesa. Destaco em particular dois espetáculos.


Desde logo, em 1958, “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão, peça quase desconhecida na época não obstante uma brevíssima produção (apenas quatro espetáculos!) em 1927 e um espetáculo universitário em 1945. Rogério Paulo interpretou e protagonista e encenou em 1961 uma versão no Nederlamd Kamernoteel de Antuérpia.


A encenação de Gino Saviotti no Avenida teve assim foros de revelação. Como o teve também o texto de Brandão, na decadência resignada o pobre Gebo, para quem “a felicidade na vida é não acontecer nada, “pois (ele) não pode se senão isto”. Para proteger o filho assume um roubo que não cometeu. Mas volta da prisão completamente pervertido: e a última fala da peça é sintomaticamente – “tudo foi inútil”.


Ora, tal como escreveu Urbano Tavares Rodrigues, “todas as personagens ou quase todas, através dos 4 atos da peça, se interrogam a si próprias, mas do que se dirigem aos outros” (“Noites de Teatro” II – 1961). E João Pedro de Andrade: “Trata-se de uma tragédia do tempo presente, em que a fatalidade é gerada pelas modernas potências que tomam o lugar dos deuses na tragédia antiga” (in Dicionário do Teatro Português pág.348). 


Tudo isto constituiu revelação para o público de 1958. E também teve foros de revelação, na mesma companhia, a estreia, a seguir, de “Seis Personagens à Procura de Autor” de Pirandello, interpretado por Carmen Dolores e encenado por Gino Saviotti.  


São espetáculos que, decorrido mais de meio século, não esquecem!

  
Raul Brandão da autoria de Tagarro 


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 04.02.15 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


176. É MAIS DIGERÍVEL CONVERTER O MAL HUMANO NUM MAL NATURAL? 2


1. Ao tratarem, por exemplo, os seus bombardeamentos e dos aliados como choques de placas tectónicas e tempestades, as bombas ou mísseis como raios, relâmpagos, trovões, chuva, inundações ou tremores de terra, os alemães despiram a guerra de qualquer peso moral, evitando a reflexão, o arrependimento, o luto, um ato de contrição e de redenção sobre o seu passado agressor e sofredor, com reflexos no presente. 


Sebald, entre outros, desaprovou esta metamorfose da memória alemã impeditiva da compreensão do passado e comprometedora do futuro, mais grave que uma amnésia, tendo como condenável que a civilização humana nada possa fazer de melhor se a natureza nos confrontar com o seu mal natural, em detrimento do bem humano que pode haver, e é desejável, em nós.           


Adverso dessa visão amoral e naturalista, censurou o esquecimento da maioria dos alemães, dos negacionistas, dos que mentiram e foram incapazes de escrever o horror entre agressores e vítimas, incluindo quem criou o “mito do bom alemão”, sem alternativa e deixar que, paciente e sofridamente, tudo passasse. 


Elogia sobreviventes do Holocausto, como Jean Améry, que cumpriu o dever moral de escritor, ao escrever sobre o mal indizível, que não superou, no seu confronto permanente com essa perversidade, acabando por se suicidar.   


O que nos questiona de novo: será que com a indiferença ou a metamorfose da memória alemã, é exequível viver uma vida com alegria e superadora de ressentimentos? Se os japoneses não quisessem refletir sobre Hiroxima e Nagasáqui, não seriam convertidos em algo semelhante a um terramoto ou tsunami?   


Após escolher a via arqueológica do passado em busca do mal humano, W. G. Sebald não se ausenta, vence a inércia, enfrenta a dor e o mal do passado, faz o luto, procura a transcendência e a redenção, a catarse e o recomeço. Feito o ato de contrição, os alemães sobreviventes à destruição e à derrota da Alemanha nazi, estão marcados pelo pecado, sendo perdoados, o que é reforçado por referências bíblicas. 


Diz-se que há impulsos e instintos que não controlamos conscientemente, a que estamos ligados se quisermos ascender, que não podemos erguer-nos sem ter os pés no lodo. Em paralelo com a árvore que tem as raízes na terra e as folhas no céu. Só assim seremos transcendentes, incorporando tudo o que somos compreendendo-o. Ao encontro da reflexão de Sebald.   


2.
Depois do crime e castigo, da amnésia para amenizar o trauma, das tentativas de superação, da purificação, expiação e perdão há um reinício, uma ressurreição, uma nova Alemanha.   


Uma nova Alemanha aberta à universalidade, cosmopolita, emancipada, melhorada, que tenta diluir a sua culpa sendo invisível e não fazendo perguntas, passando cheques, não reclamando e pedindo licença por tudo e coisa nenhuma, em que a salvação é para todos e não apenas para um povo escolhido ou superior.   


Segundo uns, esta nova Alemanha, pós-Sebald, teve na ex-chanceler alemã um dos seus maiores expoentes, dando como exemplo maior a sua reação à crise dos refugiados, abrindo portas ao humanismo e à universalidade, contrariando o exclusivismo da cultura alemã do passado. 


Segundo outros, há ingratidão e falta de memória, pois apesar do pior país devedor do século XX, várias vezes em bancarrota e ter sido resgatado, foi implacável, por antinomia, na crise das dívidas soberanas. Nem é tido como humanismo, segundo os mesmos, a causa para a entrada massiva de refugiados, mas sim o défice demográfico, falta de mão de obra e o envelhecimento populacional. Rege-se, à semelhança dos Estados, por meros interesses próprios (até agora maioritariamente económicos) e geoestratégicos que uma futura presença no Conselho de Segurança da ONU e um potencial nuclear reforçarão. E há a fuga da razão e a luta do poder pelo poder, que é mais importante que a retórica declarativa da dignidade humana. Há quem pergunte: por que não foi criado Israel à custa de território da Alemanha, penalizando-a e purificando-a, por causa do Holocausto?   


Sebald, e bem, deu o seu contributo, deixou o seu testemunho de que, graças à força das ideias, se pode criar uma sociedade melhor, fazendo a sua libertação através da escrita, para quem o quiser compreender e enquanto houver gente para o ler.   


E se o mundo é um caos, injusto ou escapa à nossa total compreensão, temos de reconhecer as nossas limitações, embora lutando sempre para que as sociedades sobrevivam moral e eticamente, dignificando a pessoa humana, não convertendo o mal humano num mal natural, mesmo quando os vícios da humanidade são alavancados e ampliados pela técnica e o desastre se tenda a agravar. Se desistirmos, o mal será maior.


24.05.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

CONDIÇÃO 

  


A perda da liberdade tinha um sentido muito grave lá na aldeia: era algo que desonrava um homem para sempre. Era algo mais grave do que o crime que condenava à prisão.

O Manuel Pataca fora desprezado até pelo pai desde que fora preso.

Não fora o crime de matar alguém que despedaçara a vida do Pataca e manchara o bom nome da aldeia, fora sim a prisão, enjoo de vida a cozer os dias de um homem, um a um.

Sem forças, Pataca confessara, não fizera a coisa bem feita, e ainda endoudara a mãe e a noiva e manchara a mácula da terra. E assim se falava.

A mãe e a mulher com quem se ia casar, usavam contra elas a tirania da prisão do Pataca e achavam-se culpadas da culpa dele, e com o dever de sofrer no muito trabalho, para algum dinheiro comprar uns cigarritos que levavam religiosamente à prisão todos os meses.

E todos os meses o Pataca olhava para a mãe e para a noiva que lhe estendiam os cigarritos e irritado atirava-lhes um cuspo na direção delas antes de chupar o cigarro. Uma mortalha envolvia-lhe fundo o olhar de desprezo envolto no orgulho do poder de as aprisionar naquele penar.

Ambas andavam de luto ao domingo aquando da missa. O desgaste do desgosto tinha de ser também muito visível.

Tudo aquilo que acontecera com o Manuel Pataca, era pobreza de compreensão por parte de todos, e só elas entendiam a razão absoluta do crime praticado, que nenhum mal fizera às gentes, e ao próprio falecido até lhe dera calma definitiva, pois que só era um provocador dos maus instintos, um demónio, era o que era.

Na taberna, com ou sem vinho no sangue, repetia-se a história do detento e esta nunca se sepultava.

Arranchado, Pataca já não se esforçava por nada. A mãe e a noiva, também elas arranchadas na mais iniludível das manifestações do cumprir um luto vivo como o de todas as virgens de coração, arrastavam-se remendadas como podiam.

Quando Pataca apareceu morto, cada uma, ao seu modo, libertou-se.

E pronto! a Quina casara-se com um outro homem da aldeia, e já o quinto filho lhe rompera as entranhas, pois a boa parideira conhece a função e o quanto a prole é forma de rendimento e verdadeiro pecúlio a realizar, custasse o que custasse. De resto, o marido, tinha um poder acrescido ao de outros homens, o poder de lhe recordar de quem fora noiva.

À mãe do falecido, curvada pela idade e pela falta de consolo de Deus, acudia-lhe olhar para as facas, armas brancas que a seduziam com sinceridade e que eram para ela uma indicação de futuro ao outro lado para onde partiria desta vida.

Mas houve um verão em que a aletria, súbito, se lhe talhou, e com ela ainda a ferver atirou-a à própria cara.

De imediato ofereceu-se à prisão. Fizera mal à mãe de Pataca.

Retomava com denodo uma culpa imensa antes que uma outra realidade a pudesse absolver da consciência do papel que lhe coubera em vida.


Teresa Bracinha Vieira

AS DUAS POLÍTICAS NACIONAIS

  


António Sérgio incluiu no segundo volume dos Ensaios (1929) a conferência proferida em 1925 em Lisboa com o título desta crónica e que tem constituído tema para muitos debates e reflexões no último século. Afinal, tratava-se de discutir as razões do nosso atraso. É um tema recorrente, que não pode, porém, ser alvo de simplificações. As nossas dificuldades ancestrais não podem resumir-se a uma causa, a um tempo ou a alguns protagonistas. Portugal sempre foi uma sociedade complexa e por isso coexistiram ao longo dos tempos razões várias, positivas e negativas, a determinar a nossa evolução. Na célebre conferência referida apontava-se a contraposição tornada célebre entre Fixação e Transporte, obrigando a uma leitura atenta capaz de associar uma cópia de razões que se completam e que até, por vezes se contradizem. Nas duas escolas encontramos “a política da Produção e a Política da Circulação; a política da Agricultura e a política do Comércio; a política nuclear e a política periférica; a política de D. Pedro e a política de D. Henrique; a política da boa capa e a política do mau capelo”. Contudo, o ensaísta não se ateve a ideias exclusivistas, porque a faina da periferia, “a corrente vital do exterior para o interior, ou centrípeta”, seria mórbida e extenuante se não fosse “forte e regular a vitalidade do seu núcleo, e saudável a corrente que vai de dentro para o exterior, ou centrífuga, na lida económica de Portugal”. No fundo, dizia Sérgio, “se não descobrisse o Oriente, falharia a nação o seu papel”. Mas cumpre reconhecer que realizámos obra muitas vezes em condições depauperantes – e assim se compreende a voz crítica de Camões, “com o maior prestígio nas falas do Velho do Restelo – timbre da honra, do saber, da experiência, da autoridade”. E quando lemos os economistas do séc. XVII como Luís Mendes de Vasconcelos, Severim de Faria e Duarte Ribeiro de Macedo compreendemos a importância da proteção e do fomento da riqueza nacional na agricultura e na indústria e num plano de hidráulica… Uma base europeia sólida defendida pelo Príncipe Perfeito, na linha de seu avô materno, o Infante D. Pedro, merecia a melhor atenção, para que o Transporte não destruísse a Fixação. A leitura de textos antigos obriga, porém, a muito cuidado para evitar as análises apressadas assentes nas referências impressionistas desta ou daquela medida nos últimos séculos.

Eis porque as explicações sobre o atraso português exigem séria ponderação.     

A complexidade tem sempre de ser considerada (com atenção especial à educação e ao conhecimento), como tem ensinado Jaime Reis. “O atraso económico, a falta de desenvolvimento social, o baixo nível de urbanização, mesmo a formação religiosa dominante poderão eventualmente constituir razões para a lenta alfabetização de todo o conjunto de países do Sul da Europa. Não servem contudo, como elementos diferenciadores do caso português relativamente aos demais membros deste conjunto, demasiado parecidos com Portugal nestes aspetos para se encontrar neles uma interpretação convincente para o nosso comportamento diverso em termos educacionais” (O Atraso Económico Português 1850-1930, INCM). De facto, a complexidade leva-nos a ter de compreender que qualquer decisão de política pública, em especial com relevo para a educação, a cultura ou a ciência, que tudo condicionam, tem sempre um cariz fortemente económico, sendo consensual e durável. É preciso assim mobilizar os meios humanos e materiais adequados. A consideração das políticas nacionais exige, portanto, a compreensão de que o atraso não pode ser uma fatalidade, e de que são indispensáveis a concertação, o planeamento, a accountability e a rigorosa avaliação de resultados (com critérios comummente aceites). Nos diversos campos referidos estão as razões do atraso, mas também a indicação do começo dos remédios para delas nos libertarmos.    


GOM

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