CRÓNICA DA CULTURA
Era um livro-coto.
Um livro muito interrompido.
Faltavam-lhe muitas páginas. A que se podia pressupor como última nunca existira. A primeira, se a considerarmos como página escrita, era, na realidade, uma nota dispersa, e muitas das restantes continham narrativas que se interrompiam constantemente como se se tivessem deparado com uma outra força maior.
Era um livro-coto.
Importa explicar o poder que desde logo exercia aquele livro-falho sobre mim.
Era um livro que de imediato abria caminho à estranheza. Era um livro-desafio. Um livro que incitava às inquietações. Era afinal um completo livro-viagem.
Tive a certeza de que ao tentar cifrá-lo me entregava a um compromisso que poderia não compreender.
Mas tinha um plano para aquele livro. E fui progredindo numa narrativa que me levava a recordar que o trabalho não tem sempre forma conhecida, e que se alteram formas de verbos e se transportam textos até para outros já escritos ou para outros que nem existem.
Pois é.
Assim fui avançando como discípula de uma aula de nascimento.
O livro, e eu nele, assegurava-me a um tempo o visível e o invisível, labirinto que me ocultava a chave e com ela a possibilidade da decifração última do meu descobrir e do meu dizer.
E por entre assédios e dúvidas, precipitei-me numa circularidade.
Foi a minha natureza a lidar com o impasse a que chegara.
De súbito, quase leitora e quase narradora e quase escritora, dei-me conta que o livro-coto era uma casa de lavoura com um rebanho de filhos e terrenos pastados, a uma hora de todas as serras e mares e bestas e dores e trabalhos e beijos e céus e colheitas e pavios-lamparinas que sempre seguraram ilusão e esperança, enquanto o azeite, o azeite do livro-coto procurava sem fim escorar um ponto.
*
Um dia, passados anos, voltei a abrir o livro-coto.
Senti-o amável e silencioso como os sábios.
Nada a provar.
O mundo da literatura, revisitação de nós próprios, rasto naquele que viu, memória do ter visto ou intuído em páginas lidas, ou escandalosamente não escritas e ainda assim.
Teresa Bracinha Vieira