Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PORTUGAL EM BUENOS AIRES


Conta Jorge Luis Borges que o velho antiquário Joseph Cartaphilus, de Esmirna, ofereceu em Londres, no ano de 1929, à célebre manequim Princesa Marie Liliane de Faucigny-Lucinge, símbolo do exotismo da moda dos anos vinte, os célebres seis volumes da Ilíada de Alexander Pope (1715-1720). Cartaphilus era um poliglota reconhecido que rapidamente usava o inglês e o francês, cultivando também o ladino, numa conjugação enigmática do espanhol de Salónica com o português de Macau, não se sabe porque bulas… Ao regressar a Esmirna, o experimentado mercador morreu tragicamente no mar e o seu desaparecimento muito impressionou a lendária princesa que, entretanto descobrira maravilhada no último tomo da extraordinária edição de Pope, entre as descrições finais das cerimónias fúnebres dos heróis de Tróia, um estranho manuscrito sobre uma visita à Cidade dos Imortais, metáfora do mundo, dédalo edificado por deuses enlouquecidos como um labirinto sem saída, representando um momento sem memória, sem tempo, gerador de uma linguagem sem substantivos, feita de verbos impessoais e de epítetos indeclináveis. Em determinado passo, porém, um laivo de humanidade surge representado por Argos, o cão de Ulisses, como o cão das lágrimas de Saramago, anunciando um tempo em que na memória se desvanecem as imagens, para apenas ficar o rasto indelével das palavras…


Vem à lembrança o célebre conto de Borges “O Imortal” a propósito da iniciativa que tem lugar na Biblioteca Nacional da Argentina, dirigida pelo autor de Aleph entre 1955 e 1973, integrada na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, que tem Lisboa como cidade convidada, com curadoria de Carla Quevedo, compreendendo noventa eventos e a presença de uma importante delegação de escritores portugueses. Falo em especial de uma exposição singular de Livros de Artista e Edição Independente pertencentes à coleção da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. A mostra é fascinante, uma verdadeira explosão de criatividade, com coordenação de João Vieira e Ana Barata, sendo composta por uma seleção de 40 exemplares de livros de diferentes tipologias, formatos e materiais. Aí estão presentes Alice Geirinhas, Ana Hatherly, E. M. Melo e Castro, José Escada, Julião Sarmento, Lourdes Castro, Pedro Calapez, René Bertholo, entre outros. A coleção de Livros de Artista e Edição Independente começou em 1990 e é hoje a maior e a mais relevante deste tipo em Portugal, contando já com cinco mil títulos que refletem a criação artística nacional a partir da década de 1960. De facto, os Livros de Artista ocupam um espaço muito importante e inesperado na criação contemporânea e permitem abordagens plásticas experimentais, com formas diversas de leitura e fruição, multidimensionais e até interativas. Trata-se de uma experiência surpreendente e muito rica que foi explicada por Ana Barata na conferência “Quando a Arte e o Livro se ilimitam: notas para uma definição de Livro de Artista”. É um verdadeiro deslumbramento o que podemos usufruir na casa que foi de Jorge Luís Borges, constituindo um elogio vivo da criação artística enquanto memória viva.


Lídia Jorge disse, aliás, em Buenos Aires, o essencial, que não pode ser esquecido. “Há uma espécie de luta, na sociedade contemporânea, para que a memoria não passe. As pessoas têm medo das autocracias, mas os que as querem parecem unidos. E lembrou que o seu romance Misericórdia é um livro sobre a resistência, perante uma espécie de anel, à volta do mundo, daqueles que são contra a democracia”. Nos cinquenta anos da restauração democrática em Portugal, a voz dos artistas portugueses na Biblioteca Nacional da Argentina é um sinal de resistência para que a cidadania não seja palavra vã e não prevaleçam as tiranias absurdas, os verbos impessoais e os epítetos indeclináveis.


GOM