A VIDA DOS LIVROS
De 20 a 26 de maio de 2024
A décima quarta edição de “Bibliotecando em Tomar” constituiu mais uma vez uma excelente oportunidade para um debate sobre ideias bem como sobre livros e leitura no tema “Hospitalidade e Hostilidade”.
Maio traz-nos “Bibliotecando em Tomar”. É sempre uma emoção regressarmos às ideias que os livros nos trazem. Este ano ocorreu a décima quarta edição do certame e sentimos intensamente a força da língua portuguesa como expressão viva da comunicação entre culturas que partilham um mesmo idioma. A escritora homenageada este ano foi Ana Paula Tavares e sentimos o calor da sua palavra e do seu afeto, lendo e relendo os seus textos, desde a poesia de Ritos de Passagem até às crónicas amargas e doces de O Sangue da Buganvília, onde sentimos que “somos cada vez mais como as buganvílias a florir em sangue no meio da tempestade”. O tema escolhido para esta edição não poderia ser mais apropriado: “Da hostilidade à hospitalidade – Um Caminho de Paz”. A proposta definida há um ano e anunciada por Agripina Carriço Vieira revelou-se de uma atualidade perturbante. As incertezas, os medos, a violência e o ressentimento assaltam o mundo a cada passo, com uma intensidade inequívoca. O étimo comum das duas palavras, de origem indo-europeia, serviu de mote a uma reflexão séria que obriga a pensarmo-nos como seres humanos com sentimentos contraditórios na relação com os outros. O hóspede e o hospedeiro (host) encontram-se a natural tensão entre quem é recebido e quem recebe, num contexto de surpresa e perplexidade. Com afirma a escritora angolana: “A guerra, o abandono e a fome são o pano de fundo de seres que a terra mãe nem sempre adotou como devia. (…) O rosto mais visível da devastação e da guerra tem olhos de criança, tão grandes e espantados como os símbolos solares das pinturas rupestres mais antigas”. E a presença de Ana Paula Tavares permitiu demonstrar a importância do humanismo no diálogo entre culturas diferentes que se confrontam e completam.
Carmen Tindó Secco e Tania Macedo trouxeram-nos, nesta perspetiva, uma leitura da obra de Ana Paula Tavares assente no apelo permanente a uma fecunda e complexa diversidade, incompatível com qualquer simplificação, desde a arqueologia da vida e da palavra até a um rico universalismo angolanamente sentido. E, na roda do oleiro, a argila amassada simboliza o húmus donde deriva a humanidade. Assim, a reflexão filosófica de José Gil colocou-nos perante o que Derrida considera ser a tensão permanente entre a hospitalidade incondicional e a hospitalidade absoluta, quando entra no nosso desejo o desejo do outro ou quando convertemos o desejo da morte (e da destruição) em desejo de convívio. De facto, a relação entre o hóspede e o hospedeiro é sempre ambígua – porque o estrangeiro é recebido como hóspede ou como inimigo, mercê da desconfiança perante a chegada do outro. E o certo é que a paz perpétua de Kant torna-se irrealizável, abrindo caminho à necessidade de repensar o sistema de relações entre pessoas e culturas, no que podemos designar como reforma profunda da democracia, que permita respeitar as diferenças. Afinal, o outro ao chegar a um novo lugar muda o seu desejo. O hóspede (guest) é refém de quem o convida, tornando-se convidador do convidador, ou seja, o hóspede (host) torna-se o hospedeiro do hospedeiro. E o estrangeiro cristaliza a simbolização o outro. Afinal, todos os homens e mulheres tornam-se estrangeiros, e somos levados a agir perante os outros segundo essa consideração hipotética. Ser amável para com o estrangeiro será assim ser amável para com qualquer pessoa com a qual podemos encontrar-nos. E a hospitalidade revela-se vital como remédio eficaz contra a hostilidade. Estaremos sempre em dívida para com o outro quando o encontramos e a hospitalidade comum jamais é suficiente, tendo de ser analisada na perspetiva da hospitalidade absoluta e da hospitalidade incondicional. E José Gil põe-nos perante o dilema permanente entre os dois termos da situação. Eis como uma aparente contradição assume a naturalidade da imperfeição humana, num contexto de imanência que obriga a cuidar da vontade e da determinação na recusa da indiferença e no compromisso sempre incompleto entre seres humanos livres e iguais em dignidade e direitos.
E ao longo das reflexões que nos foram oferecidas em Tomar em dias de intensa reflexão foi possível afirmar o que José Carlos Seabra Pereira, neste ano de Camões, generosamente, voltou a considerar sobre A Cultura como Enigma, colocando os livros e as bibliotecas na encruzilhada entre as diferentes gerações da humanidade, numa comunicação mágica entre nós e os autores que lemos e ouvimos, que se projeta para além da passagem momentânea do tempo. E poderíamos ouvir, de novo, Ana Paula Tavares a dizer “Não posso escorregar na emoção fácil que a saudade e a distância criam”. De facto, o grande enigma desse grande caleidoscópio que é a cultura e a arte exprime-o Dante no termo da jornada paradisíaca: “ânsias e vontades era a movê-las, já como roda por igual movida, / o amor que move o sol e as mais estrelas”… E celebrar Camões significa compreender a nossa cultura antiga, cujas raízes nos conduzem à atualização permanente e a uma noção de património vivo. E nada melhor do que o prolífero autor de uma lírica inesgotável e atualíssima, duma dramaturgia bem presente e de uma épica que nos faz reviver uma aventura coletiva que ombreia com Homero e Virgílio, com Ulisses e Eneias, para podermos entender o cerne desse enigma inconfessável da cultura. Centrado no triângulo essencial Educação, Ciência, Cultura, “Bibliotecando” pôde ouvir ainda em diálogo vivo os testemunhos de Eduardo Barroso, Pedro Simas e Sandra Barão Nobre pondo a tónica na experiência inesperada de uma humanidade que se confrontou num tempo relativamente curto com uma crise financeira, a ilusão de uma riqueza aparente, e uma inesperada pandemia, com um confinamento longo e angustiante e o surgimento de vacinas eficazes, tudo isso seguido da ocorrência de uma guerra que parece multiplicar-se e da emergência de um populismo que ameaça a racionalidade, a ponderação e a reflexão. Todavia, se a paz perpétua de Kant parece distante – o diálogo entre as culturas revela-se urgente, como bem deixaram evidente, num rico encontro sobre o primado da humanidade, Ana Paula Tavares, João de Melo e Alice Neto de Sousa. E correndo as palavras como as cerejas Ricardo Cruz, Álvaro Laborinho Lúcio, Alexandre Castro Caldas interrogaram-se oportunamente sobre a Inteligência Artificial e o progresso científico. Graça Capinha e Joaquim Arena falaram sobre a Língua como espaço necessário de encontro da Humanidade; além da participação de Marco Daniel Duarte, Rita Gaspar Vieira, Afonso Seixas-Nunes, Isabel Baltazar e Vasco Becker-Weinberg numa convergência da sensibilidade, da arte e da espiritualidade, na vivência da ideia que a Biblioteca mais intensamente nos traz – a conexão entre criatividade e a capacidade de compreender.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença