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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

CONDIÇÃO 

  


A perda da liberdade tinha um sentido muito grave lá na aldeia: era algo que desonrava um homem para sempre. Era algo mais grave do que o crime que condenava à prisão.

O Manuel Pataca fora desprezado até pelo pai desde que fora preso.

Não fora o crime de matar alguém que despedaçara a vida do Pataca e manchara o bom nome da aldeia, fora sim a prisão, enjoo de vida a cozer os dias de um homem, um a um.

Sem forças, Pataca confessara, não fizera a coisa bem feita, e ainda endoudara a mãe e a noiva e manchara a mácula da terra. E assim se falava.

A mãe e a mulher com quem se ia casar, usavam contra elas a tirania da prisão do Pataca e achavam-se culpadas da culpa dele, e com o dever de sofrer no muito trabalho, para algum dinheiro comprar uns cigarritos que levavam religiosamente à prisão todos os meses.

E todos os meses o Pataca olhava para a mãe e para a noiva que lhe estendiam os cigarritos e irritado atirava-lhes um cuspo na direção delas antes de chupar o cigarro. Uma mortalha envolvia-lhe fundo o olhar de desprezo envolto no orgulho do poder de as aprisionar naquele penar.

Ambas andavam de luto ao domingo aquando da missa. O desgaste do desgosto tinha de ser também muito visível.

Tudo aquilo que acontecera com o Manuel Pataca, era pobreza de compreensão por parte de todos, e só elas entendiam a razão absoluta do crime praticado, que nenhum mal fizera às gentes, e ao próprio falecido até lhe dera calma definitiva, pois que só era um provocador dos maus instintos, um demónio, era o que era.

Na taberna, com ou sem vinho no sangue, repetia-se a história do detento e esta nunca se sepultava.

Arranchado, Pataca já não se esforçava por nada. A mãe e a noiva, também elas arranchadas na mais iniludível das manifestações do cumprir um luto vivo como o de todas as virgens de coração, arrastavam-se remendadas como podiam.

Quando Pataca apareceu morto, cada uma, ao seu modo, libertou-se.

E pronto! a Quina casara-se com um outro homem da aldeia, e já o quinto filho lhe rompera as entranhas, pois a boa parideira conhece a função e o quanto a prole é forma de rendimento e verdadeiro pecúlio a realizar, custasse o que custasse. De resto, o marido, tinha um poder acrescido ao de outros homens, o poder de lhe recordar de quem fora noiva.

À mãe do falecido, curvada pela idade e pela falta de consolo de Deus, acudia-lhe olhar para as facas, armas brancas que a seduziam com sinceridade e que eram para ela uma indicação de futuro ao outro lado para onde partiria desta vida.

Mas houve um verão em que a aletria, súbito, se lhe talhou, e com ela ainda a ferver atirou-a à própria cara.

De imediato ofereceu-se à prisão. Fizera mal à mãe de Pataca.

Retomava com denodo uma culpa imensa antes que uma outra realidade a pudesse absolver da consciência do papel que lhe coubera em vida.


Teresa Bracinha Vieira