CRÓNICAS PLURICULTURAIS
177. A ESPIRITUALIDADE E O SUBLIME
Pode haver espiritualidade sem religiosidade e o inverso.
Há religiosidade sem espiritualidade quando a religião é um mero ritual de solenidades, costumes, formalidades e tradições.
A espiritualidade é o estado poético do espírito.
O espírito num estado poético sublime transcende a realidade, quando ficamos de tal modo tocados que não temos palavras para o exprimir, ou soltamos finitas exclamações admirativas da nossa pequenez e incompreensão perante o inexplicável ou o infinito.
O valor das paisagens não é decidido em função de critérios estéticos formais relacionados com a sua simples beleza, proporcionalidade física e cromática, interesses económicos ou utilitários, mas pelo potencial que os seus lugares e o seu conjunto tiverem em elevar o espírito a um patamar do sublime. O mesmo quando confrontados com uma paisagem esmagadora e não temos palavras para exprimir o que sentimos, estabelecendo-se uma relação espiritual com o que estamos a observar.
Thomas Gray, poeta, quando fez uma travessia pelos Alpes, em demanda do sublime, escreveu: “Ao longo da nossa breve viagem até à Grande Chartreuse, não me lembro de ter dado mais de dez passos sem soltar uma exclamação diante do ilimitado”.
O sublime é um desafio à vontade humana, confronta-nos com uma força maior que nos ameaça, interpela e nos questiona, pode provocar medo, ira e ressentimento, mas também admiração e respeito pelo que é poderoso e nos transcende, podendo aliar-se a um desejo de adoração.
Numa viagem à Argentina, não esqueço as emoções sentidas com a visão dos glaciares, em especial numa viagem de barco em redor de um deles, que de tão avassalador, desafiante, intimidante, imponente e sublime fez soltar, espontaneamente, a alguns viajantes, frases como: “Alguém duvida, agora, que Deus existe!?”, “Eis uma prova da nossa pequenez e insignificância perante o que é mais poderoso que nós!”.
Podemos transferir a espiritualidade para múltiplas experiências que temos na vida. É comum a espiritualidade laica, como o exemplifica o “Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”, de José Saramago. Em experiências e relatos de viajantes como Thomas Gray, Edmund Burke, Wodsworth, Rimbaud, Artaud e René Daumal.
Patti Smith, em recente estadia entre nós, em Lisboa, após referir “Que há algo de belo em ter uma missão”, que a ambição, a todo o custo, de poder ocupar o trono, não vale nada perante a brevidade da nossa existência, reconhece que procurou o sentido da vida através do estado poético da poesia e sua espiritualidade, fazendo dele uma forma de perscrutar o destino do ser humano e a sua possibilidade de transcendência.
Quer nos entreguemos ou questionemos, há sempre uma procura, por meios diferentes, de alcançarmos uma “meta-física”, uma espiritualidade que pode ser uma espécie de estado poético do nada que é a essência de tudo.
31.05.24
Joaquim M. M. Patrício