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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O DIABO E O PENTECOSTES

  


Volto ao tema, porque permanentemente a questão está aí nos meios de comunicação social e há quem me telefona a perguntar o que é que eu penso. Um dos casos mais recentes tem a ver com um homem que envenenou os pais (felizmente sobreviveram) a mando de uma bruxa que lhe disse que eles tinham o diabo no corpo e era preciso matá-lo. Claro, o homem sofre de problemas psiquiátricos…  E lá vêm os rituais satânicos... Depois, perante a tragédia do nosso mundo hoje, com horrores sem conta e à beira do abismo, ouvimos: “Isto é o diabo, um inferno...”.


O Papa Francisco refere-se-lhe com frequência, para que as pessoas estejam atentas e evitem o que é obra do Maligno: o mal, o ódio, a guerra, as intrigas… O padre G. Amorth, falecido em 2016, exorcista na Diocese de Roma e fundador da Associação Internacional de Exorcistas, que fez milhares de exorcismos, chegou a dizer que ele andava à solta no Vaticano e denunciou seitas satânicas instaladas na Cúria e servidas por membros da Igreja, incluindo “monsenhores e até cardeais”. Ele lá saberia do que estava a falar!...


O Diabo é uma personagem com muitos nomes. Para lá de Diabo, também se chama Satã, Demónio, Satanás, Belzebu, Lúcifer, Mafarrico, Maligno... Ele enriqueceu enormemente a pintura e a escultura. Lembro-me particularmente de dois: um a defecar lá do alto, na Catedral de Friburgo (Alemanha), o outro, na Catedral de Basileia, a seduzir uma mulher, que sorri no enlevo da tentação… E há quem pretenda até tê-lo visto… Uma vez, uma senhora insistiu tanto que ele lhe aparecia, metendo-lhe medo, que o último conselho que me restou foi dizer-lhe: “Atire-lhe com o terço aos chifres!” Assim fez. E o terço? Caiu ao chão!


Mas desçamos ao núcleo do problema. Aquilo que o ser humano nunca entenderá é a massa incrível do sofrimento e da maldade no mundo. Quando olhamos para a História, com todo o seu cortejo de horrores, de crimes, de infidelidades, de crueldade, de suor, de lágrimas, de sangue, de desprezo, de traições, de desespero, de indiferença, de violências, de fome, de guerras, de massacres, de genocídios, de aviltamento, de torturas..., perguntamos como é que tudo isso foi e é possível. Como é que é possível e donde é que vem tanto mal?


Uma vez que o mal não pode ter origem em Deus, que é infinitamente bom, supõe-se então que o Diabo poderia muito bem ser uma explicação... Ele tentou e tenta o ser humano..., o Homem caiu e cai na tentação e provoca o mal do mundo. Mas já Kant colocou na boca de um catequizando iroquês esta pergunta: Porque é que Deus não acabou com o Diabo, e, sobretudo, quem é que tentou os anjos, que, de bons, se transformaram em demónios, pois Deus não os tinha criado?


Para explicar o mal, contrapor o Diabo a Deus, como se o Diabo fosse uma espécie de anti-Deus, só aparentemente é uma explicação. De facto, a afirmação de Deus e do Diabo, no quadro de um dualismo maniqueu, é uma contradição. O Diabo não explica nada. O mal está aí, porque vivemos num mundo finito, e Deus criou o Homem livre, mas a liberdade é condicionada, finita, e peca.  De qualquer modo, em vez do Diabo, que nada explica, é melhor reconhecer que não temos explicação cabal para a existência de tanto horror no mundo.


Já em 1969, talvez o maior exegeta do século XX, Herbert Haag, que tive o privilégio de ter como amigo, escreveu uma obra célebre Abschied vom Teufel (Adeus ao Diabo), mostrando que não há nenhum fundamento para a crença no Diabo, impondo-se acabar com os exorcismos.


É certo que, nos Evangelhos, Jesus aparece por vezes curando certas enfermidades no contexto da crença do seu tempo de que o Diabo era a sua causa. É-nos inclusivamente oferecida a imagem de Jesus expulsando os demónios. Hoje sabemos que se tratava de doenças do foro psiquiátrico ou pura e simplesmente de pessoas com ataques epiléticos ou sofrendo de histeria.


De qualquer forma, Jesus anunciou Deus e não Satanás, e felizmente o Diabo não faz parte do Credo cristão. O núcleo da mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, e o Reino de Deus consiste na salvação total e plena do Homem. Neste sentido, o Diabo pode aparecer como um símbolo personificado de todo o mal que aflige o ser humano, mas a que Deus há-de pôr termo, segundo a promessa de Jesus. O Diabo surge para dar expressão ao que não é o Reino de Deus, o contrário do Reino de Deus. Precisamente para realçar mais e melhor o que constitui o centro da mensagem de Jesus: o futuro do seu Reino.


O Diabo não pode de modo nenhum ser apresentado como uma espécie de concorrente de Deus. E não tem sentido continuar a pensar e a pregar que ele se mete nas pessoas, para tomar conta delas. Não há possessos demoníacos. Apenas há doenças e doentes de muitas espécies e com múltiplas origens, que devem ser ajudados. Assim, como escreveu o filósofo Manuel Fraijó, "deveriam cessar as delirantes cerimónias de exorcismos". Por outro lado, se Jesus não pregou Satanás, mas Deus, então a fé do cristão dirige-se a Deus e não ao Diabo, o que exige na prática “exorcizar”, expulsar da vida pessoal e pública tudo o que é  demoníaco, diabólico: o orgulho, a vaidade, a ganância, a corrupção, o ódio, o racismo, a misoginia, tudo o que se opõe à dignidade humana… E acolher os dons do Espírito Santo — amanhã é dia de Pentecostes: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade, temor de Deus — este, no sentido de o amor a Deus incluir o receio de O ofender no próximo.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de maio de 2024

A VIDA DOS LIVROS

  
De 20 a 26 de maio de 2024


A décima quarta edição de “Bibliotecando em Tomar” constituiu mais uma vez uma excelente oportunidade para um debate sobre ideias bem como sobre livros e leitura no tema “Hospitalidade e Hostilidade”.


Maio traz-nos “Bibliotecando em Tomar”. É sempre uma emoção regressarmos às ideias que os livros nos trazem. Este ano ocorreu a décima quarta edição do certame e sentimos intensamente a força da língua portuguesa como expressão viva da comunicação entre culturas que partilham um mesmo idioma. A escritora homenageada este ano foi Ana Paula Tavares e sentimos o calor da sua palavra e do seu afeto, lendo e relendo os seus textos, desde a poesia de Ritos de Passagem até às crónicas amargas e doces de O Sangue da Buganvília, onde sentimos que “somos cada vez mais como as buganvílias a florir em sangue no meio da tempestade”. O tema escolhido para esta edição não poderia ser mais apropriado: “Da hostilidade à hospitalidade – Um Caminho de Paz”. A proposta definida há um ano e anunciada por Agripina Carriço Vieira revelou-se de uma atualidade perturbante. As incertezas, os medos, a violência e o ressentimento assaltam o mundo a cada passo, com uma intensidade inequívoca. O étimo comum das duas palavras, de origem indo-europeia, serviu de mote a uma reflexão séria que obriga a pensarmo-nos como seres humanos com sentimentos contraditórios na relação com os outros. O hóspede e o hospedeiro (host) encontram-se a natural tensão entre quem é recebido e quem recebe, num contexto de surpresa e perplexidade. Com afirma a escritora angolana: “A guerra, o abandono e a fome são o pano de fundo de seres que a terra mãe nem sempre adotou como devia. (…) O rosto mais visível da devastação e da guerra tem olhos de criança, tão grandes e espantados como os símbolos solares das pinturas rupestres mais antigas”. E a presença de Ana Paula Tavares permitiu demonstrar a importância do humanismo no diálogo entre culturas diferentes que se confrontam e completam. 


Carmen Tindó Secco e Tania Macedo trouxeram-nos, nesta perspetiva, uma leitura da obra de Ana Paula Tavares assente no apelo permanente a uma fecunda e complexa diversidade, incompatível com qualquer simplificação, desde a arqueologia da vida e da palavra até a um rico universalismo angolanamente sentido. E, na roda do oleiro, a argila amassada simboliza o húmus donde deriva a humanidade. Assim, a reflexão filosófica de José Gil colocou-nos perante o que Derrida considera ser a tensão permanente entre a hospitalidade incondicional e a hospitalidade absoluta, quando entra no nosso desejo o desejo do outro ou quando convertemos o desejo da morte (e da destruição) em desejo de convívio. De facto, a relação entre o hóspede e o hospedeiro é sempre ambígua – porque o estrangeiro é recebido como hóspede ou como inimigo, mercê da desconfiança perante a chegada do outro. E o certo é que a paz perpétua de Kant torna-se irrealizável, abrindo caminho à necessidade de repensar o sistema de relações entre pessoas e culturas, no que podemos designar como reforma profunda da democracia, que permita respeitar as diferenças. Afinal, o outro ao chegar a um novo lugar muda o seu desejo. O hóspede (guest) é refém de quem o convida, tornando-se convidador do convidador, ou seja, o hóspede (host) torna-se o hospedeiro do hospedeiro. E o estrangeiro cristaliza a simbolização o outro. Afinal, todos os homens e mulheres tornam-se estrangeiros, e somos levados a agir perante os outros segundo essa consideração hipotética. Ser amável para com o estrangeiro será assim ser amável para com qualquer pessoa com a qual podemos encontrar-nos. E a hospitalidade revela-se vital como remédio eficaz contra a hostilidade. Estaremos sempre em dívida para com o outro quando o encontramos e a hospitalidade comum jamais é suficiente, tendo de ser analisada na perspetiva da hospitalidade absoluta e da hospitalidade incondicional. E José Gil põe-nos perante o dilema permanente entre os dois termos da situação. Eis como uma aparente contradição assume a naturalidade da imperfeição humana, num contexto de imanência que obriga a cuidar da vontade e da determinação na recusa da indiferença e no compromisso sempre incompleto entre seres humanos livres e iguais em dignidade e direitos.


E ao longo das reflexões que nos foram oferecidas em Tomar em dias de intensa reflexão foi possível afirmar o que José Carlos Seabra Pereira, neste ano de Camões, generosamente, voltou a considerar sobre A Cultura como Enigma, colocando os livros e as bibliotecas na encruzilhada entre as diferentes gerações da humanidade, numa comunicação mágica entre nós e os autores que lemos e ouvimos, que se projeta para além da passagem momentânea do tempo. E poderíamos ouvir, de novo, Ana Paula Tavares a dizer “Não posso escorregar na emoção fácil que a saudade e a distância criam”. De facto, o grande enigma desse grande caleidoscópio que é a cultura e a arte exprime-o Dante no termo da jornada paradisíaca: “ânsias e vontades era a movê-las, já como roda por igual movida, / o amor que move o sol e as mais estrelas”… E celebrar Camões significa compreender a nossa cultura antiga, cujas raízes nos conduzem à atualização permanente e a uma noção de património vivo. E nada melhor do que o prolífero autor de uma lírica inesgotável e atualíssima, duma dramaturgia bem presente e de uma épica que nos faz reviver uma aventura coletiva que ombreia com Homero e Virgílio, com Ulisses e Eneias, para podermos entender o cerne desse enigma inconfessável da cultura. Centrado no triângulo essencial Educação, Ciência, Cultura, “Bibliotecando” pôde ouvir ainda em diálogo vivo os testemunhos de Eduardo Barroso, Pedro Simas e Sandra Barão Nobre pondo a tónica na experiência inesperada de uma humanidade que se confrontou num tempo relativamente curto com uma crise financeira, a ilusão de uma riqueza aparente, e uma inesperada pandemia, com um confinamento longo e angustiante e o surgimento de vacinas eficazes, tudo isso seguido da ocorrência de uma guerra que parece multiplicar-se e da emergência de um populismo que ameaça a racionalidade, a ponderação e a reflexão. Todavia, se a paz perpétua de Kant parece distante – o diálogo entre as culturas revela-se urgente, como bem deixaram evidente, num rico encontro sobre o primado da humanidade, Ana Paula Tavares, João de Melo e Alice Neto de Sousa. E correndo as palavras como as cerejas Ricardo Cruz, Álvaro Laborinho Lúcio, Alexandre Castro Caldas interrogaram-se oportunamente sobre a Inteligência Artificial e o progresso científico. Graça Capinha e Joaquim Arena falaram sobre a Língua como espaço necessário de encontro da Humanidade; além da participação de Marco Daniel Duarte, Rita Gaspar Vieira, Afonso Seixas-Nunes, Isabel Baltazar e Vasco Becker-Weinberg numa convergência da sensibilidade, da arte e da espiritualidade, na vivência da ideia que a Biblioteca mais intensamente nos traz – a conexão entre criatividade e a capacidade de compreender.     


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE RUI COSTA  

  


Os turistas


Estes são os turistas e vêm da Grécia
para me ver.
Não sabem que estou extinto
há um milhão de anos
e que me transplantei no vértice de uma
estrela perdida no futuro
luzindo à nossa imagem.
Eis os turistas, com suas rodas de fogo,
como eles chegam afoitos
e estacam diante das pedras
desta cidade que apodrece junto ao rio
porque não sabe distinta forma de amar.
São os turistas,
eles limpam as unhas às gaivotas
e comem pasta de atum
enquanto apertam as sandálias,
e olham para mim,
e levantam-se com o saco a tiracolo e
empunham o arpão
e perguntam se eu sou Herodes e eu
respondo-lhes que não,
nem Platão,
nem o seu vizinho acidental que
dominou a Lídia,
nem o cavalo que decidiu morrer para
ocultar a fuga do Mestre rumo a estâncias
balneares que não devem ser menosprezadas,
mas que posso carregar, sim,
no botão da máquina fotográfica,
e eu caminho os passos necessários e
diante dos séculos que o universo
não contempla
decepo-lhes a cabeça – e volto
para junto de mim
enquanto eles começam a escovar
o cabelo das gaivotas
e entrando num tubo que César
construiu caminham às cegas
para bem longe
da cidade que apodrece junto ao rio.


in Mike Tyson para Principiantes, 2012


The tourists


These are the tourists and they come from Greece
to look at me.
They don’t know I’ve been extinct
for a million years
and that I’ve set off on the point
of a star lost into the future
and twinkling in our own image.
See the tourists, with their wheels on fire,
how boldly they land
and halt in the face of the stones
of this city rotting by the river
ignorant of another way to love.
The tourists,
they clean the seagulls’ toenails
and eat tuna paste
while they buckle their sandals
and look at me,
they stand up with their shoulder bags and
hold harpoons
and ask me if I’m Herod and I
say I’m not,
I’m not Plato either,
nor his accidental neighbour who
conquered Lydia,
nor the horse that decided to die to
hide the Master’s flight towards some seaside
towns that should not be underrated,
but that yes, I can press
their camera button,
and I take the necessary steps and
before the centuries the universe
doesn’t contemplate
I cut off their heads – and return
to myself
while they start to brush
the seagulls’ hair
and walking into a tube built
by Caesar they blindly walk
far and away
from the city that rots by the river.


© Translated by Ana Hudson, 2012
in Poems from the Portuguese 

ANTOLOGIA

  


MEMENTO QUIA PULVIS EST…
por Camilo Martins de Oliveira 


Meu Caro Manuel:


Passei, há quase um ano, uma semana amiga em casa do teu irmão Alberto, na raia de Lisboa, onde tantas outras vezes gozámos o sossego de conversas várias sobre o mundo. Sossego, digo, porque sempre nos entendemos e desentendemos bem: ele, sempre alerta e inesperado; tu sempre resmungão e talvez realista; eu sempre curioso e estrangeiro. Todos três sempre de acordo em que era preciso enxotar as senhoras da conversa... Dessa vez, na tua ausência, falámos do Inferno e de mafarricos, de malefícios à distância, de castigos vários... Tudo começou por um postal que o Alberto comprara no Louvre e usava como marcador de livros. Reproduz a frente de um retábulo pintado, em meados do século XIV, por um membro da família Memmi, aliás conhecido por Mestre dos Anjos Rebeldes. Cristo Pancrator preside à precipitação, por anjos legionários comandados pelo Arcanjo S. Miguel, dos anjos rebeldes, os de Satanás, no abismo. Estes são todos negros e horrendos, a sua queda desenha-se sobre fundo de ouro, mas... mas parece que vão cair num planeta! Como se fossem atirados à terra, para viverem no pecado e na maldição dos homens... O Alberto fora marcando com esta estampa a sua leitura, em francês, dos "Serões na granja nos arredores de Dikanka" de Nicolai Gogol. "Sempre me perguntei - disse-me - se o Diabo existiria como força ativa, autorizada por Deus para tentar e poder desviar os homens (e sobretudo as mulheres - e ria-se muito - como vítimas e agentes cooperadores...), ou se seria uma invenção nossa, para bode expiatório, donde os cornos dos mafarricos e outros desgraçados... Esta pintura de um Memmi leva-me a questionar esse "adquirido" e a pensar que, quiçá, os demónios todos, afinal, foram precipitados para a terra dos homens no preciso instante em que Yahvé enxotou Adão e Eva do paraíso, por terem preferido a desordem à obediência, o castigo de ser livre à beatitude de ser programado... Assim, todos eles, os demónios e os filhos de Eva (como diriam as feministas) se copularam para povoar de discórdia e guerra este vale de lágrimas. Até que Deus se achou longínquo e violento e, talvez arrependido de ter precipitado tantas criaturas para o esgoto de um planeta cheio de água, decidiu atirar cá para baixo o seu Filho Único, que por isso era Cristo, antes de se chamar Jesus. Mandou Deus que lhe dessem o nome de meu irmão: Manuel, Deus connosco. E, por esse gesto, tão dolorosamente simples, tão alegremente generoso, desafiou e chamou a si o mal que tinha expulso, porque os corações que se purificam vão convertendo o mundo. Não por práticas canónicas, nem rezas repetidas, nem incensos queimados às imagens em que pretendemos domesticar a maravilhosa liberdade do divino. Mas pela transformação silenciosa do nosso olhar no querer bem.... Nestes contos do Gogol, há um que me mete medo, pois tem a ver com o nosso terror inato à maldição que persegue gerações. Que culpa tem Catarina - e o filhito que seu marido Danilo lhe deu - da maldição que, por Deus, Ivan lançara sobre Petrof, o antepassado deles que traíra indignamente seu irmão? Deveremos nós ser todos filhos do castigo de Caim? Mas, olha, Camilo Maria, ri-me, como quem se desforra, com a história, tão divertida, da noite de natal do ferreiro Vakula que, após peripécias apimentadas e várias, apanha o estupor do Diabo num saco de carvão. Agarrando-o pelo rabo, vai-o apertando e, ameaçando-o com o sinal da cruz, obriga-o a levá-lo até Petersburgo, à Czarina Catarina da Rússia, a quem implorará a oferta dos seus melhores sapatos de cerimónia... Catarina é generosa. E Vakula, voando pelos céus da Rússia, velozmente levado pelo Diabo que meteu no bolso, bem agarrado pela cauda maléfica e aterrorizado pela ameaça do sinal da cruz, chegará à sua terra, com as arras que prometera a Oksana, sua amada. Casam no dia de Natal. Já só pela coragem dele, a menina lhe dera o sim". O riso dos olhos do teu irmão, ao contar-me esta história, conhece-lo tu melhor do que eu. Disse-me, tantas vezes, com aquela graça de quem talvez veja Deus no dia a dia: "O Senhor Celeste também é mafarrico: prega-me partidas todos os dias!" As insónias infligiam-lhe leituras várias, para lhe desviar também o pensamento daquelas aflições que o assaltavam. Mas, ao deitar-se, tinha sempre à beira da cama uns álbuns do Tintin, que o divertiam e lhe davam umas frases para dizer no dia seguinte. Se chovesse, por exemplo, lembrava Milou, o cão, a exclamar "Il fait un temps d’homme!". Além de Hergé, a leitura da noite era Eça de Queiroz: "O Mandarim", "A Relíquia", "A Ilustre Casa de Ramires" e "A Cidade e as Serras". Penso que tudo isso tinha a ver com ele: Em "O Mandarim", o desprezo pelo oportunismo e o horror à ganância, sem escapar à ironia: "Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio: pertencem-lhe; ele que os reclame e os reparta. E a vós, homens, lego-vos estas palavras: Só sabe bem o pão que, dia a dia, ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim! - E todavia, ao expirar, consola-me, prodigiosamente, esta ideia: ...nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, O pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, oh leitor, criatura feita por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!". Da "Ilustre Casa", até pelo arranque para África: "A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança tão terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até àquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora àquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra? - Quem? - Portugal". De "A Cidade e as Serras", o Alberto gostava de referir o passo em que, depois de jantar em Tormes, Jacinto e Zé Fernandes voltam "para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o sumptuoso céu de Verão"... Não sabem nomear as estrelas: ... "E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?  -  Não sei. Não sabíamos. Eu por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre astronomia, e o saber, assim acumulado, forma um monte, que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos obras da mesma Vontade". A "A Relíquia", Alberto ia buscar a memória de outra noite estrelada, quando Teodorico se despede da sua Mary luveira: "Por sobre os terraços adormecidos da muçulmana Alexandria soltei a voz dolorida, voltado para as estrelas; e roçando os dedos pelo peito do jaquetão onde deviam estar os bordões da viola, fazendo os meus ais bem chorosos  -  suspirei o fado mais sentido de saudade portuguesa: «Co’a minha alma aqui te ficas, / Eu parto só com os meus ais, / E tudo me diz, Maricas, / Que não te verei nunca mais». Parei, abafado de paixão. O erudito Topsius quis saber se estes doces versos eram de Luís de Camões. Eu, choramingando, disse-lhe que estes - ouvira-os no Dafundo ao Calcinhas. Topsius recolheu a tomar uma nota do grande poeta Calcinhas. Eu fechei a vidraça: e depois de ir ao corredor fazer às escondidas um rápido sinal da Cruz, vim desapertar sofregamente, e pela vez derradeira, os atacadores do colete da minha saborosa bem-amada". Era assim, maroto e terno, aflito de angústias mas cheio da alegria inicial da vida, o teu irmão. Deus o guarde em paz".


Esta carta do Marquês de Sarolea nunca seguiu, encontrei-a no seu espólio. Foi escrita, de Bruxelas, pouco depois da morte de meu Pai, a que assisti. Nas semanas derradeiras, Alberto Martins de Oliveira conversava longamente com o cónego Sarmento, jurista de formação, vocação tardia, camarada de Coimbra. Na extrema-unção, ambos rezaram em latim.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 17.09.13 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


175. É MAIS DIGERÍVEL CONVERTER O MAL HUMANO NUM MAL NATURAL? 1


A identidade de uma pessoa é maleável, em grau maior ou menor, segundo aqueles que nos acompanham. A sociabilidade de certas pessoas pode estimular a nossa compaixão, generosidade, humanidade e sensibilidade. A de outras, a nossa crueldade, frieza, desumanidade e indiferença.


Para William Wordsworth, a natureza incute-nos a acessibilidade de procurar na vida e uns nos outros o que há de bom e saudável. A natureza, ser inanimado, tem a capacidade de exercer influência sobre os outros seres que a rodeiam. Cascatas, flores, glaciares, icebergues, montanhas, oceanos, vulcões, um castanheiro ou uma celidónia, têm o poder de nos sugerir certos valores. Há quem veja nas flores modelos de humildade e mansidão, nos lagos de serenidade e nos pinheiros de resolução. 


Estes seres, que temos como desprovidos de consciência, não são apenas arquétipos inspiradores de virtude, mas também instigadores do medo, do terror, do inconquistável e invencível. Muitos deles fazem-nos sentir pequenos e insignificantes na ordem natural das coisas, perante a imensidão do deserto, dos oceanos, a altivez, altitude e imponência de algumas montanhas. Uns, com a sua aura sublime, também suscitam sentimentos de natureza espiritual ou dimensão religiosa. Outros, são indomáveis na sua impensável beleza.     


A hegemonia da natureza também está presente na obra de W. G. Sebald (escritor alemão, 1944-2001), onde as civilizações humanas acabam sempre em ruínas. São sempre reconquistadas pela natureza, que é insuperável e está permanentemente em guerra com o que é humano.     


A natureza determina a visão de Sebald sobre o seu país e a própria natureza humana: a sociedade sobrevive moralmente quando transforma o mal humano num mal natural, ou seja, quando mascara uma catástrofe causada pelos seres humanos com a roupagem de uma calamidade natural. A destruição causada pela guerra, as suas atrocidades e bombardeamentos convertem-se na destruição causada por uma tempestade, um terramoto ou um tsunami.   


Enquanto Wordsworth sustentava que a “amabilidade” da natureza servia de guia a incitar-nos à busca do bem dentro de nós, a Alemanha, em pleno nazismo e segunda guerra mundial, recorria à amoralidade da história natural de molde a justificar o mal que há dentro de nós.     


Ao lado da deslumbrante e idílica beleza dos campos, pode haver a fascinante beleza da ordem, do medo que intimida e aterroriza.


Este recurso a elementos amorais e inconscientes da natureza, como causa de justificação da ilicitude ou da culpa, levou Sebald a revoltar-se contra essa metamorfose da memória, convertendo-a em deturpação, interpelando o silêncio sobre a Alemanha enquanto agressora e, também, enquanto vítima.


Opina que os alemães, com especial responsabilidade para escritores e intelectuais em geral, não souberam ou não quiseram lidar com os bombardeamentos aéreos sobre as suas cidades, com as vítimas civis, os feridos, os órfãos, os que perderam tudo, conduzindo-os a uma sociedade moral desacreditada. Conclui: “parece que ninguém escreveu sobre essas coisas nem se lembrava delas”.


Assumiram a destruição da segunda grande guerra, incluindo a sua derrota e consequências, do mesmo modo que um terramoto ou tsunami, não procurando o luto ou culpados, impedindo qualquer reflexão como agressores e vítimas, o que Sebald censurou, sem querer diabolizar os vencedores e vitimizar os vencidos.


Se não havia responsáveis de ambos os lados, nem reflexão a fazer, aguenta-se e segue-se em frente, transformando o mal humano num mal natural, ou levantamo-nos contra esta perspetiva e, se sim, em que termos?   


Há quem se rebele contra esse consentimento, mesmo que tácito, sendo um deles W. G. Sebald.           


17.05.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

  


Meu filhinho:

E muito te desejo saúde. E tantas saudades tenho de ti. Aqui te botei no mundo com tanta alegria e te criei e o teu fadário foi ires buscar vida numa terra tão longe da tua mais rendosa para que outro galo te cante mas filhinho ainda hoje na festa da vindima ouve animação e fogo numa estrondearia que só visto e procissão e eu mãe no choro sem ti e tu filhinho dizes que virás mas que por ora não dá e lá me envias um dinheiro para os remédios mas estou ruim da alma por tantas saudades tuas e é sempre a mesma conversa o médico lá me diz que para a alma não tem como me ajudar. Bem-no escuto e lá me meto a caminho da horta com o teu cheiro na memória filhinho e quero dar a teu pai uma ideia prazenteira de teu futuro e só me ocorre tu pequenino a acreditar que o seio da tua mãe era tudo e não era afinal. Mas acredita no bom agoiro e na tal certeza que basta para mais uns anos e virás por tua causa e por causa de teus pais e desta terra que se visses como está sem ti meu filhinho valha-nos Deus. Com o rodar dos anos filhinho amado o que recordo quando te vi rebento de truz consola-me a esperança mas é martírio o que trago no peito por não te ter dado um futuro aliviado da tua partida. Filhinho recebi a tua carta a pedir notícias nossas e digo-te que teu pai não há quem no ature de noite a dormir aos migalhos que a abafação da tosse mais não permite e eu bem me custa afligir-te mas a moléstia grande é tu estares aí sozinho e não falares a fala das gentes para quem trabalhas e assim nem pão saberás pedir ainda que aqui pão com a bênção de tua mãe e de teu pai sempre aqui terás ainda que o andamento da vida seja o mesmo que conheceste e muito fizeste tu em achares coragem e partires para uma fome mais saciada e não me resigno filhinho até a maria celeste e a da purificação me acham assim mirradita mas diz quando achas que vens para eu ir destinando matança e nada faltará pois que estás sempre em meus cuidados e olha recebe a minha bênção tua mãe e a de teu pai e tantas saudades te envio que por elas a força de te aguardar aqui a tenho no peito toda junta e vai ser um outro parto quando te voltar a ver.

 


Teresa Bracinha Vieira

PORTUGAL EM BUENOS AIRES


Conta Jorge Luis Borges que o velho antiquário Joseph Cartaphilus, de Esmirna, ofereceu em Londres, no ano de 1929, à célebre manequim Princesa Marie Liliane de Faucigny-Lucinge, símbolo do exotismo da moda dos anos vinte, os célebres seis volumes da Ilíada de Alexander Pope (1715-1720). Cartaphilus era um poliglota reconhecido que rapidamente usava o inglês e o francês, cultivando também o ladino, numa conjugação enigmática do espanhol de Salónica com o português de Macau, não se sabe porque bulas… Ao regressar a Esmirna, o experimentado mercador morreu tragicamente no mar e o seu desaparecimento muito impressionou a lendária princesa que, entretanto descobrira maravilhada no último tomo da extraordinária edição de Pope, entre as descrições finais das cerimónias fúnebres dos heróis de Tróia, um estranho manuscrito sobre uma visita à Cidade dos Imortais, metáfora do mundo, dédalo edificado por deuses enlouquecidos como um labirinto sem saída, representando um momento sem memória, sem tempo, gerador de uma linguagem sem substantivos, feita de verbos impessoais e de epítetos indeclináveis. Em determinado passo, porém, um laivo de humanidade surge representado por Argos, o cão de Ulisses, como o cão das lágrimas de Saramago, anunciando um tempo em que na memória se desvanecem as imagens, para apenas ficar o rasto indelével das palavras…


Vem à lembrança o célebre conto de Borges “O Imortal” a propósito da iniciativa que tem lugar na Biblioteca Nacional da Argentina, dirigida pelo autor de Aleph entre 1955 e 1973, integrada na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, que tem Lisboa como cidade convidada, com curadoria de Carla Quevedo, compreendendo noventa eventos e a presença de uma importante delegação de escritores portugueses. Falo em especial de uma exposição singular de Livros de Artista e Edição Independente pertencentes à coleção da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. A mostra é fascinante, uma verdadeira explosão de criatividade, com coordenação de João Vieira e Ana Barata, sendo composta por uma seleção de 40 exemplares de livros de diferentes tipologias, formatos e materiais. Aí estão presentes Alice Geirinhas, Ana Hatherly, E. M. Melo e Castro, José Escada, Julião Sarmento, Lourdes Castro, Pedro Calapez, René Bertholo, entre outros. A coleção de Livros de Artista e Edição Independente começou em 1990 e é hoje a maior e a mais relevante deste tipo em Portugal, contando já com cinco mil títulos que refletem a criação artística nacional a partir da década de 1960. De facto, os Livros de Artista ocupam um espaço muito importante e inesperado na criação contemporânea e permitem abordagens plásticas experimentais, com formas diversas de leitura e fruição, multidimensionais e até interativas. Trata-se de uma experiência surpreendente e muito rica que foi explicada por Ana Barata na conferência “Quando a Arte e o Livro se ilimitam: notas para uma definição de Livro de Artista”. É um verdadeiro deslumbramento o que podemos usufruir na casa que foi de Jorge Luís Borges, constituindo um elogio vivo da criação artística enquanto memória viva.


Lídia Jorge disse, aliás, em Buenos Aires, o essencial, que não pode ser esquecido. “Há uma espécie de luta, na sociedade contemporânea, para que a memoria não passe. As pessoas têm medo das autocracias, mas os que as querem parecem unidos. E lembrou que o seu romance Misericórdia é um livro sobre a resistência, perante uma espécie de anel, à volta do mundo, daqueles que são contra a democracia”. Nos cinquenta anos da restauração democrática em Portugal, a voz dos artistas portugueses na Biblioteca Nacional da Argentina é um sinal de resistência para que a cidadania não seja palavra vã e não prevaleçam as tiranias absurdas, os verbos impessoais e os epítetos indeclináveis.


GOM

A PERGUNTA POR DEUS: UMA QUESTÃO INFINITA

  


Tem-se frequentemente a ideia de que, à partida, o ateu, quando nega a existência de Deus ou quando afirma que, com a morte, acaba tudo, tem do seu lado a razão, ficando o crente sob a suspeita de não-racional, de tal modo que é a ele apenas que compete ter de apresentar razões da sua fé.


Ora, as coisas não são assim, de modo nenhum. Por paradoxal que pareça, também o ateu assenta a sua negação da existência de Deus ou da vida depois da morte num acto de fé, melhor, numa crença. "Em qualquer das suas formas, o ateísmo é uma crença e não uma evidência, escreveu o filósofo Pedro Laín Entralgo, um 'creio que Deus não existe' e não um 'sei que Deus não existe'".


O chamado crente e o ateu encontram-se exactamente no mesmo plano: o crente não pode demonstrar a existência de Deus nem a vida eterna, exactamente como o ateu não pode demonstrar que Deus não existe ou que a morte é o termo definitivo da existência da pessoa. No que se refere a Deus ou à vida depois da morte, as posições do crente, do agnóstico ou do ateu assentam na crença.


Evidentemente, sendo humanos e, portanto, racionais, todos - o crente, o agnóstico, o ateu - têm de apresentar razões para a sua crença, pois esta, se quiser ser verdadeiramente humana, não pode ser cega. Sublinhe-se, porém, que se trata, para todos, de um acto de fé, certamente com razões, mas sempre de um acto de fé, e não da conclusão de uma demonstração.


Assim, o crente, o agnóstico, o ateu, em vez de se excluírem, devem encontrar-se e enriquecer-se mutuamente num conflito dialógico de razões, e, por paradoxal que pareça, num diálogo sincero e aberto, concluirão que há entre eles muito mais sintonias do que poderiam supor à primeira vista. Quantos crentes, por exemplo, não ficarão surpreendidos ao ler em Santo Tomás de Aquino que o saber da fé, não podendo ser evidente, convive com a opinião, a dúvida...


Fé religiosa e dúvida não se excluem. Pelo contrário, a fé está sempre acompanhada de perguntas. Estas perguntas humanizam a religião, pois impedem todo o tipo de fundamentalismo, abrem ao diálogo não só com os crentes de outras religiões, mas também com os ateus e agnósticos, obrigando a uma reformulação constante das fórmulas doutrinais, que ao mesmo tempo que tentam dizer o Mistério também o ocultam. Por outro lado, é bem possível que também ateus e agnósticos aceitem que há um Mistério inominável que a todos envolve...


Aprofundando a conhecida diferença entre problema e mistério, estabelecida por Blondel e sobretudo por Gabriel Marcel, Pedro Laín Entralgo distinguia entre problema, enigma e mistério.


Problemas são aquelas questões que mais tarde ou mais cedo o Homem pode resolver. Assim, concluiu-se que a Terra é redonda e que gira à volta do Sol, e pode encontrar-se solução para uma crise financeira...


O enigma está referido àquelas questões que nunca serão completamente resolvidas, mas de cuja solução racional o Homem se vai aproximando cada vez mais, ainda que apenas assintoticamente. Enigmas são, por exemplo, a realidade da matéria ou o pensamento. Hoje, sabemos muito mais sobre o que é a matéria do que Aristóteles ou mesmo Galileu ou Newton, mas isso não significa que tenhamos uma intelecção plena ou que algum dia venhamos a possuí-la. Neste domínio, há um saber cumulativo, mas num horizonte assintótico, na medida em que, como escreveu H.-G. Gadamer, o horizonte não é uma fronteira fixa, mas algo para onde viajamos e que ao mesmo tempo se desloca connosco, de tal modo que o não alcançamos...


Finalmente, o mistério refere-se a uma realidade na qual se crê, mas cuja intelecção racional estará para sempre vedada ao Homem. O mistério refere-se às perguntas últimas, como: Qual o sentido último do universo e da existência? Porque é que existo precisamente eu? Porque é que há algo e não nada? A vida continua depois da morte? Deus existe?


Estas perguntas colocam-nos perante o que é por si mesmo misterioso, pois relacionam-se com a ultimidade, que não é objecto do saber de evidência, mas do saber de crença. Daí, um dos dramas maiores da existência, pois, como não se cansava de repetir P. Laín Entralgo, o objecto da ciência é penúltimo, mas o último é objecto de crença, seguindo-se daí que "o certo é penúltimo e não pode não ser penúltimo, será sempre penúltimo, e o último é incerto e não pode não ser incerto, será sempre incerto".


Mas, por outro lado, repetindo, a crença, para ser autêntica e verdadeiramente humana, não pode ser cega, o que significa, portanto, que tem de ser argumentativa, isto é, tem de dar razões de si mesma. A fé não demonstra, mas tem de argumentar, de tal modo que mostre que é razoável. As razões que tem a capacidade e o dever de apresentar têm de mostrar a sua plausibilidade.


Concretamente quanto à questão de Deus e da vida depois da morte, isto é, com a morte, o Homem acaba definitivamente ou, pelo contrário, entrará na sua plena realização na Realidade Última e Primeira a que chamamos Deus, quanto a esta questão, nem o não-crente nem o crente podem demonstrar a sua respectiva posição, pois é de uma crença que, em última análise, se trata. No entanto, um e outro apresentarão razões a que ambos serão sensíveis. Ser ser humano é levar consigo esta questão. Melhor: ser esta própria questão. E o que, em última instância, une os homens é esta procura sem fim e o diálogo à volta desta questão infinita.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 de maio de 2024

A VIDA DOS LIVROS

  
De 13 a 19 de maio de 2024


«Filosofia Medieval – Uma Introdução Histórica e Filosófica» de John Marenbon (Gulbenkian, 2024) é a mais recente publicação da reconhecida Coleção dos Clássicos, permitindo um conhecimento de um dos períodos mais ricos e complexos da história europeia.


Filosofia Medieval
 de John Marenbon (Gulbenkian, 2024) oferece um relato sintético e abrangente sobre a história da filosofia na Idade Média, referindo os principais escritores e ideias daquele período histórico, envolvendo os contextos sociais e intelectuais e os principais conceitos a considerar. O Professor John Alexander Marenbon (1955) é um prestigiado filósofo britânico, Fellow do Trinity College da Universidade de Cambridge e membro da British Academy. Exerceu a docência ou realizou conferências na Sorbonne, na Universidade de Toronto, no Vaticano e em Beijing. Tem vasta obra publicada, avultando a conferência “De quando foi a Filosofia Medieval” (2011) e “Pagans and Philosophers. The problem of paganism from Augustine to Leibniz”, Princeton University Press 2015. Esta introdução fornece um relato cronológico que trata das quatro principais tradições da filosofia que derivam da herança grega da Antiguidade tardia (filosofia cristã grega, filosofia latina, filosofia árabe e filosofia judaica); inclui secções de «estudo» focadas nos argumentos e «interlúdios» mais curtos que apontam para questões mais amplas do contexto intelectual; combina a análise filosófica com antecedentes históricos; incluindo um guia detalhado e útil para leitura adicional e uma extensa bibliografia, atualizada para esta edição. A tradução foi coordenada por José Meirinhos.


Foi Boécio, filósofo do século VI, quem definiu pessoa humana como “substância individual de natureza racional”. A citação do pensador romano na declaração sobre a dignidade humana permite-nos fazer a ligação, numa inserção plural, da obra agora publicada à declaração “Dignitas Infinita” sobre a Dignidade Humana, elaborada durante cinco anos e publicada em março de 2024 pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, pondo a tónica na dimensão universal, filosófica e antropológica, do respeito pela pessoa humana enquanto fator de salvaguarda dos direitos humanos, do primado da justiça e do reconhecimento de que todos os seres humanos como livres e iguais em dignidade e direitos. De facto, importa enfatizar «o caráter único da pessoa humana, incomensurável em relação aos outros seres do universo» (DI, 14). Assim se pode compreender o modo como é usado o termo dignidade na Declaração Universal das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948, onde se fala «da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos, iguais e inalienáveis». Apenas esse caráter inalienável da dignidade humana permite que se fale de direitos da pessoa humana na sua plenitude. Contudo, para melhor esclarecer o conceito de dignidade, deve tornar-se claro que esta não é concedida à pessoa humana por outros seres humanos, a partir de seus talentos e qualidades, por isso não pode ser perdida ou retirada por decisão aleatória. A dignidade é, pois, intrínseca à pessoa. «Em consequência, todos os seres humanos possuem a mesma dignidade, independentemente de serem ou não capazes de exprimi-la adequadamente» (DI, 15). Assim, o Concílio Vaticano II refere a «eminente dignidade da pessoa humana, superior a todas as coisas e cujos direitos e deveres são universais e invioláveis». E para a Declaração conciliar Dignitatis humanae, «os seres humanos tornam-se sempre mais conscientes da própria dignidade, crescendo o número daqueles que exigem poder agir por iniciativa própria, com a sua liberdade responsável, movidos pela consciência do dever e não obrigados por medidas coercivas».  Assim, a liberdade de pensamento e de consciência, individual ou comunitária, é baseada no reconhecimento da dignidade humana «como foi dada a conhecer pela Palavra de Deus revelada e pela própria razão». 


Infelizmente, há numerosos mal-entendidos sobre o conceito de dignidade, que distorcem o seu significado. Longe de uma abstração devemos insistir no facto de se tratar da dignidade de cada pessoa humana, “para além das circunstâncias”, reconhecendo-se ao ser humano uma dignidade que não se perde mais, sendo possível garantir a tal qualidade um inviolável e seguro fundamento, que não oscila à mercê de diferentes e arbitrárias avaliações, pois «os direitos da pessoa são direitos do ser humano». Assim, a dignidade não se identifica com uma liberdade isolada e individualista. A defesa da dignidade do ser humano é fundada em exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem do arbítrio individual, nem do reconhecimento social. Os deveres que resultam do reconhecimento da dignidade do outro e os correspondentes direitos que daí derivam têm, pois, um conteúdo concreto e objetivo, fundado sobre a natureza humana assumida em comum. Desse modo, a dignidade do ser humano compreende a capacidade ínsita na mesma natureza humana, de assumir obrigações em relação aos outros.


Segundo nos lembra o Papa Francisco, «devido à sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas. [...] Por isso o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar um uso desordenado das coisas». E assim, a vida humana torna-se incompreensível e insustentável sem as outras criaturas. Pertence, por isso, à dignidade humana o cuidado com o ambiente, considerando em particular a ecologia humana que lhe preserva o próprio existir. Importa ainda salientar que um dos fenómenos que contribui consideravelmente para negar a dignidade de tantos seres humanos é a pobreza extrema, ligada à desigual distribuição da riqueza. De facto, «continua “o escândalo de desigualdades clamorosas”, em que a dignidade dos pobres é duplamente negada, seja pela falta de recursos à disposição para satisfazer as suas necessidades primárias, seja pela indiferença com que são tratados por aqueles que vivem a seu lado» (DI, 36).


Outra tragédia que atinge a dignidade humana é o prolongamento da guerra, hoje como em todos os tempos. E o Papa Francisco sublinha, que «não podemos mais pensar na guerra como solução. Diante desta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível “guerra justa”. «Aqueles que invocam o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra não seguem o caminho de Deus: a guerra em nome da religião é uma guerra contra a própria religião. Também os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. E é urgente recordar que «cada migrante é uma pessoa humana que, enquanto tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados por todos em todas as situações». O seu acolhimento é um modo importante e significativo de defender «a inalienável dignidade de toda pessoa humana para além da origem, da cor ou da religião». O tráfico de pessoas, os abusos sexuais, a violência contra as mulheres, o recurso ao aborto, a maternidade de aluguer, a eutanásia e o suicídio assistido, o desrespeito pelas pessoas com deficiência, a violência digital e tecnológica são violações graves da dignidade humana. E urge ainda reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, evitando “toda marca de injusta discriminação” e particularmente toda forma de agressão e violência.


É nesse espírito que, com referida Declaração, a Igreja Católica exorta a colocar o respeito pela dignidade da pessoa humana, para além de toda circunstância, no centro dos esforços pelo bem comum e de todo o ordenamento jurídico. “O respeito pela dignidade de cada um e de todos é, de facto, a base imprescindível para a existência mesma de cada sociedade que se pretende fundada sobre o justo direito e não na força do poder. Sobre a base do reconhecimento da dignidade humana se sustentam os direitos humanos fundamentais, que precedem e fundam toda convivência civil” (DI, 64). E Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE RUI CÓIAS 

  


Hoje, à hora em que o sol descai…


Hoje, à hora em que o sol descai nas hastes secas dos ulmeiros,
william sentou-se comigo no paredão do cais.
Ajeitou os óculos, virou-se para o prolongamento da costa, mais
visível, do ponto em que estávamos, na direcção de rosses point, e falou:
“e se te disser que as amamos e elas não sabem?”
Deteve-se nos montes, na sua erva rasa que da escarpa acomete ao oceano,
e permaneceu a seguir-lhes as sombras, a completá-las com fantasias dóceis,
como nas manhãs em que, cabisbaixo, seguia os nevoeiros de drumcliff.
“E se te disser que não entregues o coração completamente;
aquele que todo o coração ofereceu tudo acabará por perder”.
Inclinou-se, a madeixa caiu-lhe na testa, tal a traçara o pai para o retrato,
e os seus vinte e poucos anos escoaram, o rosto desuniu-se, perdeu o ângulo
para revelar-se como o ventre ruinoso de uma casa sob a fachada colorida.
E à hora em que os quintais se abriam à vizinhança, em sligo,
onde por acaso só ao redor da baía o mar adensa as casas, de resto nítidas,
william confessou que nada descobrira, que em tudo se enganara e
tudo era um logro, por muito que nelas os suaves lábios o desmentissem.
Depois estendeu-me a mão e levantou-se. Pediu para caminhar com ele.
Levou-se à clareira onde na infância esgravatava a terra à procura das raízes
e sentira, sem ninguem ver, um empurrão nas costas, num domingo de tempestade.
Conheço quem todo o coração deu e perdeu tudo. Mas elas não sabem,
elas não sonham que de beijo em beijo se irão sempre consumindo.
Mais tarde, soube-o, partiu. Tal como ela havia partido, ao chegarem as
primeiras chuvas de setembro quando por um par de vezes passou no canal
e expulsou os quatro pássaros, os quatro beijos dos seus ombros.
Soube-o que jamais seguiu os muros de pedra e a arquitectura das torres,
contornou os afluentes e os fortins das ilhas devastadas,
sem por um dia deixar para trás, por entre as canções e os prenúncios,
os seus olhos bronzeadores dos ulmeiros, os seus pássaros nos ombros.
E william, que com os anos se foi tornando distintamente leve, harmonioso,
nas vésperas de flanquear a branca porta quadrada sob os gonzos, ao entardecer,
voltou a sentar-se comigo como à vinte e poucos anos na baía de sligo,
à hora em que do outro mundo de além mar, de sete em sete anos,
ela aparecia sob as ondas das ilhas fabulosas, nos areais da terra encantada,
e lhe entregava o coração para que nele poisassem os quatro pássaros
e os dois pudessem despedir-se com quatro beijos.


in A Função do Geógrafo, 2000


Today, at the hour the sun drips…


Today, at the hour the sun drips from the dry elm branches,
william sat next to me on the brakewater wall.
He adjusted his specs, turned towards the coastline, the most
visible from where we stood, in the direction of rosses point, and spoke:
‘what if I told you we love them and they don’t know?’
His gaze paused on the hills, their flat grasses leaning over the cliffs to the sea,
and followed their shadows, contemplating them in docile fantasy,
as on the mornings when, dispirited, he followed the drumcliffe mists.
‘What if I told you not to hand over your whole heart;
whoever offers his whole heart will end up with nothing’.
He bent slightly down, his hair covered his brow, just as it had been drawn by his father in the portrait,
his twenty something years slipped away, his face cracked, losing its angle
to reveal itself as the ruined entrails of a house with a colourful façade.
And at the time when the backyards were opened to the neighbours, in sligo,
where by chance the sea thickens the houses, nevertheless distinct, around the bay,
william confessed he had discovered nothing, he had mistaken everything and
all was a sham, no matter how often this was denied by soft lips.
Then he gave me his hand and stood up. He asked me to walk with him.
He took himself to the clearing where in his childhood he had scratched the earth for roots
and where on a stormy Sunday , while seeing no one, he had been pushed from behind.
I know who gave his whole heart and lost everything. But they don’t know,
they don’t imagine that from kiss to kiss they’ll be consumed.
Later, knowing, he left. Just as she had left, with the first
September rains when she went by the canal a couple of times,
shooed away the four birds, the four kisses from her shoulders.
He knew he had never followed the stone walls and the towering towers,
trailed the tributaries and the small forts of the devastated islands
without having left behind for a single day, among songs and presages,
her elm-tanning eyes, her birds on the shoulder.
And william who, as the years went by, became distinctly gentle, harmonious,
just days before he flanked the white square hinged door, as evening fell,
sat again with me like twenty odd years ago on the sligo bay,
at the time when from the other world across the sea, every seven years,
she would appear under the waves of the fabulous isles, on the sands of the enchanted land,
to hand over her heart so that the four birds could land on it
and they could kiss four times goodbye.


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese