Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
homens bêbados cantavam nas ruas a primavera um deus mais jovem teve o seu começo no entrançado dos cabelos negros no empedrado dessa ruela agarrou-te pelos pulsos magnético vingativo tu giraste sobre o centro o braço primeiro hesitante a mão contra as costas depois puxando-te subindo pelas coxas
acrescenta agora nunca saberei de quantas formas te destruí te recomecei para a flor que alastra nos cabelos mais tarde esquecida nas mãos
o seu maior medo era o silêncio e foi a arma que escolheu
no fim daquela tarde regressou ao quarto na baía em naxos o quarto pobre velho e sujo com o senhorio maldoso e indiscreto
o gato escapuliu-se rasteiro pela porta e correste atrás dele pousando o cinzeiro na estante da entrada
lembro-me sempre disto e recomeço e é só por isto que recomeço
in teatro de rua, 2013
restart the heart
drunken men singing in the streets spring a younger god his beginnings in the plaiting of dark hair grabbed you by the wrists on that cobbled narrow street vengeful magnetic you swung round on yourself hesitant arm at first hand against your back then pulled you in searching your thighs
now factor in I’ll never know in how many ways I destroyed you revived you for the flower that spreads through the hair later forgotten in the hands
his deepest fear was silence and this was the weapon he chose
at the end of that afternoon he went back to the room in the bay of naxos the poor old dirty room its malicious and indiscreet landlord
the cat crept out through the door and you ran after it putting the ashtray down on the side
I always remember this and start again and that’s the only reason I do start again
JERUSALÉM, JERUSALÉM… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Escreveu Paul Claudel sobre a sua conversão: «Tel était le malheureux enfant qui, le 25 décembre 1886, se rendit à Notre-Dame de Paris pour y suivre les offices de Nöel». Começava então a escrever e pensava que nas cerimónias católicas, consideradas com superior diletantismo, eu encontraria um excitante apropriado e matéria para alguns exercícios decadentes. Assim disposto, acotovelado e empurrado pela multidão, assisti, com medíocre prazer, à missa solene. Depois, como nada mais tinha para fazer, voltei para as "vésperas". Os meninos do coro, vestidos de branco, e os alunos do Seminário Menor de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, que assistiam, cantavam o que, mais tarde, soube ser o Magnificat. Eu mesmo estava de pé, no meio da multidão, junto do segundo pilar, à entrada do coro, do lado direito da sacristia. E foi então que se produziu o acontecimento que domina toda a minha vida. Num instante o meu coração foi tocado e EU ACREDITEI. Acreditei, com tal força de adesão, com tal comoção de todo o meu ser, com tão poderosa convicção, com certeza tal que não deixava lugar a qualquer dúvida, ao ponto de, desde então, todos os livros, todos os raciocínios, todos os acasos de uma vida agitada, não puderam abalar a minha fé, nem, na verdade, lhe tocarem sequer". Isto tem algo de paulino. No livro dos Atos dos Apóstolos, regista-se uma arenga de S. Paulo aos judeus de Jerusalém, em que, a dado passo, o fariseu de Tarso narra a sua conversão à "Via": "Estava a caminho e aproximava-me de Damasco, quando, de repente, cerca do meio-dia, uma grande luz vinda do céu me envolveu com o seu brilho. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ´Saúl, Saúl, porque me persegues? ‘Respondi: ‘Quem és tu, Senhor?’ E ele então disse-me: ´Sou Jesus Nazareno, que tu persegues´." E o mesmo Paulo escreverá na sua carta aos Gálatas: "Com Cristo estou crucificado. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. Se ainda vivo dependente de uma natureza carnal, vivo animado pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Não quero tornar inútil a graça de Deus, porque se a justificação viesse por meio da Lei, então Cristo teria morrido em vão". Nestes e noutros testemunhos, a conversão irrompe no duplo sentido que a palavra latina "rutura" em línguas latinas significa: a rutura que nos chegou por via erudita e quer dizer cisão, separação; e a rotura, adveniente por via popular, com que dizemos corte interno, golpe, ferida. O convertido rompe com o seu passado, crenças e pertenças antigas. Mas também sente que, no fundo de si, uma ferida se abriu, que o mantém alerta e ele não deverá deixar sarar. A vocação de Deus à transformação dessa criatura num "homem novo", cega pelo brilho da luz da revelação. Quando reabrir os olhos e sentir a dor profunda de uma alegria nova, verá tudo com outro olhar e saberá que nada poderá fazer com que estremeça a fidelidade interior ao destino que então descobriu. Outras conversões houve e há que seguiram um percurso mais lento, estudioso até: as dos Maritain, Jacques e Raïssa, e de Vera, irmã desta; a de Edith Stein. E outras que nunca se manifestaram em confirmações públicas, mas não terão, por isso, sido menos profundas, como a "Attente de Dieu" de Simone Weil. As Escrituras não dizem se Saúl de Tarso ia a cavalo no caminho para Damasco. Mas tombando de um cavalo o foi representando a arte europeia, talvez para realçar a nobreza da personagem, a violência do acontecimento, o efeito da força que vem de cima. Miguel Ângelo pintou a cena numa parede da Capela Paulina, no Vaticano: seguindo o relato de S. Lucas, representa Cristo nas alturas, rodeado de anjos guardiões sem asas, desferindo o relâmpago da graça que fere S. Paulo e o deita ao chão, cego de luz... O tema da graça foi muito discutido antes e durante o Concílio de Trento, cujo papa foi Paulo III, que encomendou o fresco, iniciado por Miguel Ângelo em 1542. O grande artista regressou muitas vezes a ele, incluindo em poemas que compôs no fim da vida. Os exemplos das conversões repentinas e estrondosas parecem sustentar as teses da predestinação, de Calvino aos jansenistas: a graça de Deus opera independentemente da vontade dos homens... No quadro de Caravaggio - que também vimos juntos em Roma,lembras-te? - Cristo inclina-se, suspenso no ar por um anjo que parece transportá-lo, para estender a mão direita a Paulo derrubado, gritando de dor, com ambas as mãos postas sobre os olhos que a súbita iluminação cerrou, e que só voltarão a ver depois da revelação interior lhe ter transformado o olhar. Um soldado tapa os ouvidos, não quer ouvir a voz que fala a Paulo, e não vê a luz, como no relato de S. Lucas; outro, mais idoso, nada ouve, mas a luz tira-lhe a vista e ele aponta para cima, contra quem não pode ver, a lança que manipula. A graça de Deus escolhe? Ou será como a Palavra na parábola da semente lançada à terra, cujo destino dependerá do solo em que for cair? Estou no meu antro, nem pássaros já cantam no jardim. Todos dormem por estas longitudes. Vem ainda longe a manhã. Vou ao sermão 71 do "meu" Mestre Eckhart: "Surrexit autem Saulus de terra apertisque oculis nihi videbat". O místico dominicano alemão, que ainda viveu no século de Petrarca e foi condenado em Avignon (fala-se hoje em canonizá-lo!), cita da "Vulgata" latina este passo dos "Atos" de S. Lucas, que diz: Paulo levantou-se do chão e, de olhos abertos, não viu nada. E comenta: "Não poderia ver o que é Uno. Nada viu, era Deus. Deus é um nada e Deus é um algo. O que é algo, isso também é nada. O que Deus é, é-o plenamente. Por isso Dinis, o luminoso, diz, quando escreve sobre Deus: Ele é para além ser, para além vida, para além luz; não lhe atribui nem isto nem aquilo, e quer dizer que Ele é não se sabe o quê que é tão longe para além. Alguém vê qualquer coisa, ou qualquer coisa cai no teu conhecimento, não é Deus; não o é pela simples razão de que Ele não é isto nem aquilo. Aquele que diz que Deus está aqui ou ali, não acrediteis nele. A luz que Deus é, brilha nas trevas. Deus é uma verdadeira luz; aquele que deve vê-la tem de ser cego e deverá manter Deus à parte de toda qualquer coisa. Diz um mestre (Santo Agostinho): aquele que fala de Deus por qualquer comparação, fala d´Ele de um modo que não é límpido. Quanto ao que fala de Deus por nada, esse fala d´Ele de modo apropriado. Quando a alma chega ao Uno e entra num límpido despojamento de si mesma, então ela encontra Deus como num nada. Pareceu a um homem, como em sonho - era um sonho acordado - que ele estava prenho de nada como uma mulher com um menino, e no nada nasceu Deus. Ele era o fruto do nada. Deus nasceu do nada. Por isso ele diz: ´Levantou-se do chão e, de olhos abertos, não viu nada´... Aquele sonho acordado teve-o Mestre Eckhart. A linguagem dos místicos é sempre um pouco difícil para nós, sobretudo por vivermos no mundo confuso das imagens. Ela é simplíssima, magra, não se perde em pietismos ou devoções sentimentalmente antropomórficas. Procura comunicar a experiência íntima de evidências que só no silêncio se descobrem e só na disciplina interior do silêncio podem ser partilhadas. Ao ser derrubado e cego, S. Paulo apenas pergunta: ´Quem és tu, Senhor?´ E só isso faz sentido." O marquês de Sarolea tinha dois mundos: o da sua circunstância, onde folgadamente se movia, e o do seu mistério interior, a que pertencia.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 24.09.13 neste blogue.
Escrever, em geral, é uma atividade solitária, que pode ou não ser recompensada pela leitura e leitores, se os houver.
Escrever poesia, em particular, é uma atividade ainda mais solitária, onde a solidão do autor é menos recompensada pela leitura, sendo usualmente mais exíguos, nulos ou quase nenhuns os ledores.
Indagar a profissão de alguém e ter, como resposta, entre nós, ser poeta, é misterioso, audacioso e ousado, por um lado, delirante, despistado, despassarado e inútil, por outro.
Os poetas, como formação específica, têm as suas poesias, as quais, com sorte, são conhecidas, cantadas ou lidas, o que não significa poderem viver da poesia.
Há quem nunca se apresente profissionalmente como poeta. Há quem o tenha um privilégio, pela positiva: “Fiquei conhecido como poeta desde muito novo. Quando voltei do exílio, o funcionário que me fez o bilhete de identidade, no lugar de profissão, sem me perguntar, escreveu “poeta”. É assim que me tratam. Considero uma honra. Às vezes vêm ter comigo e dizem: posso cumprimentar o nosso poeta? É a melhor homenagem que me podem prestar. Não creio que essa circunstância prejudique a outra parte da escrita”. Acrescentando, de seguida: “A prosa só tem a ganhar em ser escrita por um poeta”, elevando-se a poesia para um patamar superior ao da prosa (Manuel Alegre, JL n.º 1368, março 23).
Nos tempos que correm, dominados pelas leis do mercado, converter a poesia em dinheiro é tarefa hegemonicamente inglória, não utilitária. Daí a poesia ser “invendável”, exceção à norma e, como tal, uma singularidade preciosa, uma relíquia.
Um privilégio permanente e persistente, corroborado pelo enigma de os poetas, ao que consta, serem proporcionalmente em maior número que os leitores de poesia, em que um público minoritário tem ao seu dispor um pomposo aparelho de divulgação poética (festivais, fundações, academias, centros e institutos culturais).
E se a poesia sofre com a ausência de reconhecimento no espaço público, muitas vezes são os seus criadores que reivindicam para ela a missão de viver em oposição radical à sociedade, declarando-se rebeldes a qualquer poder, ficando ao lado do pensamento crítico que, em certo sentido, faz falta e é bem-vindo, mas que, noutra interpretação, deslegitima os seus defensores de se queixarem da indiferença face à suas obras.
Mesmo se a poesia é, para muitos, elitista, inútil e supérflua, sempre abalou o poder pela sua insubmissão, de que foram vítimas, no limite, sob a tirania estalinista, Anna Akhmátova e Osip Mandelstam. O último, quando vivo, segundo a viúva, ironizou: “Não te podes queixar, em mais nenhum lugar há tanto respeito pela poesia, até se mata por causa dela”. Um poema, dedicado a Estaline, custou-lhe a vida, e nele há a arte do essencial e indispensável, essencialidade que também subsiste ao comemorarmos, entre nós, o nosso dia, no dia de Camões, um poeta.
A liberdade é um sentir que quando alcançado nunca evolui para trás.
Muitos não o sabem porque não sabem o que é o saber, e não o sabendo, desconhecem que algo essencial sobre a sua identidade é constantemente atacada.
E afinal tudo tem a ver com o modo como as pessoas pensam a liberdade.
Os aparelhos de opressão de certas instituições das sociedades, desde sempre, estiveram e continuam, no processo de pôr limites ao que se pensa e ao que se diz; inclusive a franqueza da arte é responsabilizada pelas sérias dificuldades de a manter controlável, motivo bastante para a considerar «ilegal»
De muitos modos, diga-se, inúmeros galileus continuam a negar o que sabem ser verdade.
Ultimamente nos EUA (e não só) tem tido lugar, com uma clareza arrogante, e por parte de um mundo de acusações desonestas, o quanto é importante que a liberdade signifique fanatismo autorizado, distorcendo-se as palavras de modo que as violências dos significados conduzam à insanidade das interpretações.
Encontramo-nos, de facto, face a uma sensibilidade contemporânea desencantada na pergunta do como chegámos aqui, e afinal o que chegou antes de nós, para que isto acontecesse.
Fomos contando a nós próprios as explicações de tudo o que não fomos entendendo, e no amor e no medo chamámos os deuses, desejando sermos os seus favoritos, já que se preferissem outros que não nós, então pensaríamos em Aracne transformada em aranha.
Nunca admitimos o quanto a humanização também surgiu prenha das suas muitas e grandes falhas.
Todas estas coisas aconteceram de há muito, mas a história não tem sido um espaço disputado acerca do passado para melhor interpretação do presente.
As princesas e os príncipes mimados, os poderosos do revisionismo, os supremacistas, os da pseudoinvestigação filosófica que lhes esconde as inseguranças, são os grandes fedelhos dos desejos de que os seres humanos nunca os ponham em causa; são os incapazes de compreender que em liberdade, a existência é um direito a defender e a celebrar; que a liberdade é um sentir que quando alcançado nunca evolui para trás.
“Foram os economistas que ensinaram os historiadores a observarem as conjunturas longas e curtas, a analisar os mecanismos económicos e a valorizar os estudos estatísticos”. Quem o lembra é a historiadora Miriam Halpern Pereira, na antologia agora publicada pela Fundação Gulbenkian com o título O Século do Liberalismo, lembrando Pierre Vilar, para referir a importância que no seu percurso pessoal teve a relação entre a História e a Economia. Contudo, acrescenta que: “cabe aos economistas compreenderem que os movimentos observados não têm apenas causas ou consequências económicas”. Estamos perante a necessidade de um verdadeiro diálogo, capaz de permitir um melhor conhecimento da realidade humana, bastante complexa, exigindo sempre a consideração de múltiplos fatores. E a História ensina-nos a encarar a realidade como algo que apenas pode ser compreendido se soubermos ligar os interesses materiais e os valores éticos sem a tentação de procurar soluções providenciais que não dependam da vontade dos cidadãos, da limitação do poder e da legitimidade democrática.
Para a historiadora, os séculos XIX e XX apenas podem ser compreendidos através de uma evolução dinâmica, em que a política, a economia, a sociedade, as finanças e a inserção europeia e internacional se articulam intimamente. Daí a necessidade de uma análise circunstanciada e rigorosa das grandes mudanças políticas e sociais desde 1820 até ao Ato Adicional à Carta Constitucional de 1852. Se é verdade que as mudanças do Marquês de Pombal prenunciaram a metamorfose política que ocorreu no século XIX sob a invocação da liberdade política e económica, o certo é que as razões de ordem interna e externa, entre a resistência da sociedade tradicional e o desenvolvimento urbano, condicionaram a evolução do Portugal oitocentista. Liberais influentes como Almeida Garrett e Alexandre Herculano viram-no com a preocupação comum de modernizar o país, pondo-o ao ritmo da Europa. Era uma sociedade nova que nascia depois da Revolução de 1820 e as guerras civis do cabralismo. Não por acaso, a autora coloca as suas reflexões sob a invocação do espírito constitucional, que consagra o primado da lei, a cidadania livre, plural e responsável, a limitação do poder em lugar da condição subordinada dos súbditos. Se dúvidas houvesse, bastaria lermos a evolução do pensamento político de Alexandre Herculano para compreendermos como se chegou ao compromisso, que reforçou a legitimidade original da Carta Constitucional de 1826, tornando-a em 1852 uma Constituição legitimada por um verdadeiro processo constituinte.
“Sem a economia, a história torna-se historizante, e sem a história a economia fica mais pobre nas suas explicações”. A afirmação da autora perpassa em toda esta obra fundamental. Estamos perante uma investigadora de excecional qualidade, que soube aliar a análise rigorosa dos acontecimentos complexos com uma perspetiva crítica, centrada no diálogo e na reflexão. A perspetiva económica completa-se com a compreensão psicológica e sociológica – com um particular cuidado na dimensão pedagógica, para que o método histórico possa abrir horizontes no entendimento do desenvolvimento humano. No nosso caso, a evolução tem de ser analisada nos seus progressos e inércias. A lentidão das reformas liberais que se arrastaram depois do reformismo audacioso de Mouzinho da Silveira, teve efeitos negativos. Os impasses do final do século XIX nas finanças públicas tiveram incidência na situação económica, aumentando a necessidade de empréstimos para os melhoramentos materiais, que elevaram o custo do crédito, cerceando o impacto da modernização dos instrumentos de crédito e da eficácia dos investimentos, que a Geração de 70 criticou – e por isso Portugal tornou-se um dos países menos desenvolvidos da Europa no dealbar do século XX. Eis por que, contra o atraso e o fatalismo, precisamos da vontade e dos compromissos sociais para uma cidadania inclusiva e justa.
Concretamente nestes tempos de globalização, torna-se mais claro que não haverá paz entre as nações sem diálogo inter-religioso. Como não se cansou de repetir o teólogo Hans Kung: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial".
O diálogo inter-religioso é mais do que simples tolerância religiosa, pois é exigência do próprio Absoluto a que todas as religiões estão referidas. Precisamos de todas as religiões para tentar dizer melhor, embora sempre na gaguez quase muda, o Mistério que sempre transcenderá o que dele possamos pensar e dizer. As religiões estão referidas ao Absoluto, mas não são o Absoluto. Neste sentido, o místico diria: Deus é "nada" de todas as religiões. Mestre Eckhart pedia a Deus que o libertasse de "Deus", isto é, dos seus conceitos, imagens e representações de Deus.
Deste diálogo fazem parte também os ateus, não os ateus vulgares, mas os ateus que sabem o que isso quer dizer, porque são eles quem constantemente pode colocar, tem colocado e coloca os crentes de sobreaviso quanto ao perigo da superstição, da idolatria e da desumanidade, que as religiões muitas vezes transportaram e transportam consigo.
Quando se pensa na coragem heróica necessária para, em tempos de hegemonia religiosa confessional e sabendo que se corria o risco da prisão, da morte no cadafalso e da “certeza" do inferno, ousar, em nome da dignidade humana, do respeito para com Deus, das exigências mínimas da razão, lutar contra a superstição e contra o ridículo clerical-eclesiástico, surge-nos do mais íntimo e fundo de nós o sentimento de veneração e de reconhecimento de "santidade" em relação a muitos daqueles que, a maior parte das vezes em sentido pejorativo, ficaram na história como críticos da religião e até ateus. Esses não são santos de nenhuma Igreja, mas são com certeza "santos" da Humanidade.
Impressiona que hoje o cristianismo, que é uma fonte de liberdade e de libertação – estou convicto de que é a maior na história da humanidade -, para muitos já não exerça fascínio. Surpreende que, frente a Deus, enquanto o Infinito é a verdade do finito, grande número de homens e mulheres se mantenham indiferentes ou até O recusem pura e simplesmente. Há múltiplas razões explicativas desta indiferença e recusa. Uma delas, que não será a menor, prende-se com a imagem de Deus transmitida pelos crentes. Muitas vezes o Deus que aparece é um Deus menor, triste, invejoso, impeditivo da liberdade, da autonomia, do novo, que envenena o amor, a alegria e a criação. Depois, os crentes teriam de cindir a vida: a vida propriamente dita e uns enclaves de beatice. Não se caminha livre, erguido, inteiro, autónomo, solidário, na busca, correndo riscos. Como homens e mulheres humanos, justos, criadores. Perante uma imagem de Deus que humilha e atemoriza, ergue-se então, como escreveu o filósofo Carlos Díaz, a tentação de "matar Deus com medo que Deus me mate a mim".
Hoje, a questão essencial é que se corre o risco de já nem sequer se colocar a questão de Deus, nem sequer como questão. Ora, não é o que já está a acontecer nesta nossa sociedade de imediatismo disperso, de hiperactividade, num tempo descontinuado?... Como escreveu Byung-Chul Han, no seu recente livro Vita Contemplativa, referindo-se a esta sociedade: “A actual crise religiosa não se pode simplesmente atribuir ao facto de termos perdido toda a fé em Deus ou determinadas crenças terem passado a inspirar-nos desconfiança. A um nível mais profundo, esta crise indica que estamos a perder cada vez mais capacidade contemplativa. A crescente compulsão para produzir e comunicar dificulta a permanência no contemplativo. A religião requer uma atenção especial. Malebranche refere-se à atenção como a oração natural da alma. Hoje, a alma já não ora. Pelo contrário, produz-se. É precisamente à sua hiperactividade que se deve a perda da experiência religiosa. A crise religiosa é uma crise de atenção.”
Espíritos eminentes preveniram para os perigos, sendo urgente preparar-se para o pior. Václav Havel, o grande dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer, surpreendeu muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização global” e “também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por isso, que caminhe para a catástrofe.” Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX - tive o privilégio de tê-lo como professor -, perguntava: O que aconteceria, se a simples palavra “Deus” deixasse de existir? E respondia: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu”. Neste domínio, o perigo maior provém de a questão de Deus já não ser sequer questão. Como escreveu o historiador Georges Minois, o mundo parece encontrar-se hoje perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e "abdica da sua procura de sentido".
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 22 de junho de 2024
Publicamos hoje, quando iniciamos o “Disquiet”, uma carta imaginária a Eugénio de Andrade, invocando a sua obra.
Meu Caro Eugénio de Andrade
Começo por lembrar o que um dia o meu amigo (permita-me que o trate deste modo) disse sobre Camões, e que constitui referência fundamental para compreendermos como a língua se faz através da vida dos seus melhores cultores. E se falo de vida, refiro-me ao testemunho de quem faz da literatura a essência da comunicação e do ofício.
«Foi Camões que deu à nossa língua este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar de abelhas, esta graça súbita e felina, esta modulação de vagas sucessivas e altas, este mal corrosivo da melancolia”. Não poderia haver melhor apreciação, ligando o maior poeta da nossa língua à própria existência da língua como a mais intensa e pura expressão da nossa cultura.
O aprumo do vime branco representa o equilíbrio no uso das palavras, no que podemos considerar como a maturidade da língua na poesia, desde as origens dos trovadores, da decisão do rei poeta de tornar a língua vulgar em idioma oficial para legistas e tabeliães, até à lírica e à épica em “Os Lusíadas”. O juvenil ressoar das abelhas significa ouvir os passos de Leonor pela verdura, formosa e não segura. A graça súbita e felina vem do picaresco. A modulação de vagas sucessivas e altas põe-nos diante do Adamastor, mas também do juízo critico do saber de quem estava na praia, todo de experiências feito e do alerta contra a glória de mandar e a vã cobiça. Enquanto o mal corrosivo da saudade e da melancolia, do desejo e da lembrança desenvolve a tensão entre o drama e o sentimento, o passado e o futuro…
Por isso mesmo, estimado Eugénio de Andrade, pela sua sensibilidade e pela sua escrita, pôde tornar, por exemplo, a cidade do Porto, onde viveu, vindo da Beira Serra, ainda mais heroica, dramática e sentimental. Bem haja. Por um momento, percebemos, como a transparência se liga ao granito, à saudade e ao humor melancólico. «A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma claraboias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real».
E, mesmo sem querer, ouvimo-lo como poeta na mais pura expressão da sua palavra: «É urgente o amor. / É urgente um barco no mar. / É urgente destruir certas palavras, / ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas. /É urgente inventar alegria, / multiplicar os beijos, as searas, / é urgente descobrir rosas e rios / e manhãs claras. / Cai o silêncio nos ombros e a luz / impura, até doer. /É urgente o amor, é urgente permanecer».
As palavras marcam, deste modo, a ligação íntima entre pessoas e pessoas, entre pessoas e lugares, e na sua obra, Eugénio, isso se sente com especial intensidade.
E não nos cansamos de o ouvir, dirigindo-se à palavra poética: «1. Sê tu a palavra, / branca rosa brava. / 2. Só o desejo é matinal. / 3. Poupar o coração / é permitir à morte / coroar-se de alegria. /4. Morre de ter ousado / na água amar o fogo. /5. Beber-te a sede e partir / - eu sou de tão longe. / 6. Da chama à espada / o caminho é solitário. / 7. Que me quereis, / se me não dais / o que é tão meu?». E como não recordar o modo como tem procurado o essencial: «Colhe / todo o oiro do dia / na haste mais alta / da melancolia»?
E tenho bem presente o que sempre nos disse: «É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela». E o nosso Eduardo Lourenço com a lucidez poética que bem conhecemos disse, melhor que todos: “Talvez a essência e o milagre dessa singular transparência, que tornaram a poesia de Eugénio de Andrade ao mesmo tempo a mais refinada e a mais popular do nosso tempo português, se cifre toda no facto de ser, na medida em que isso é possível, uma poesia sem sujeito. Poesia sem sujeito como o pode ser a do nosso contacto, impossivelmente inocente, com as realidades primordiais que nos inventam no ato em que as olhamos e nos devolvem sem mediação à nossa esquecida mas sempre presente condição celeste, a luz do sol, o fluir dos rios, o passar do vento, o ritmo das estações, a visão das árvores, o apelo dos frutos. Como se um Alberto Caeiro, realmente novo Adão antes da culpa (da consciência) se tratasse, foi quase irresistível inscrever o poeta de As Mãos e os Frutos na arcádia do paganismo poético moderno”. E o ensaísta reforça esta intuição. “Toda a poesia é ‘palavra no tempo’ sem dúvida, mas a do autor de Ostinato Rigore, de tão colada ao tempo, de tão íntima do instante e sua fulguração, mais parece, sem ser intemporal, uma como que sensível suspensão do tempo”.
Lembramo-nos da sua estreia de 1939 com “Narciso”, ainda como José Fontinhas, e de “Adolescente”, ou do encontro com António Botto, e sobretudo da publicação de As Mãos e os Frutos, com o auspicioso reconhecimento de Jorge de Sena e de Vitorino Nemésio. José Saramago resumiu com felicidade o lirismo dessa poesia, que se singulariza por uma permanente referência ao corpo, a que chega através de um depurado caminho de aperfeiçoamento da palavra. Ficam na memória As Palavras interditas (1951); Ostinato rigore” (1964); Escrita da terra e outros epitáfios (1974); Limiar dos pássaros (1976); Memória doutro rio (1978); Matéria Solar (1980); Ofício de Paciência (1994); O Sal da Língua (1995); ou Os Sulcos daSede. Cada uma destas palavras constitui exemplo de uma maturidade poética conquistada num permanente exercício digno de uma oficina de artesão… O mesmo se diga na prosa: em Rosto precário (1979) ou À sombra da memória (1993). E em 2001, veio, com inteira justiça, o Prémio Camões, graças a uma obra segura e consistente, como de primeira grandeza na poesia portuguesa do século XX.
Em carta de junho de 1949 (leio a “Correspondência - 1949-1978 entre Jorge de Sena e Eugénio de Andrade”), Jorge de Sena foi muito claro a propósito de As Mãos e os Frutos: “Não sei se alguma vez lhe disse da estima que a sua poesia me merece, pela categoria autêntica, tão diferente do que a nossa desvairada geração tem produzido (…). Lembro-me que, em tempos, o acusaram de desumanidade. Não encontro, todavia, senão uma pagã humanidade; e mais vale uma humanidade assim, que só se importa com o que liricamente toca, do que fingir sentimentalidades oportunas”. Estou de acordo e julgo que ao longo do tempo tem-no demonstrado. O curso do tempo confirmou e afinou essas qualidades e a coerência.
E devemos recordar Montaigne: “l’essentiel est dit: deux êtres singuliers se rencontrent et comprennent en un éclair, que leur vie ne sera plus jamais comme avant». E o Eugénio fala dos Amigos com especial cuidado: «Os amigos amei /despido de ternura/ fatigada;/uns iam, outros vinham, /a nenhum perguntava /porque partia, /porque ficava; /era pouco o que tinha, / pouco o que dava, / mas também só queria / partilhar / a sede de Alegria / - por mais amarga». É La Boétie que vem à lembrança, já que não existiria na nossa memória sem o testemunho admirável do amigo Montaigne: “parce que c’était lui, parce que c´était moi!”.
E devo dizer, caro Eugénio, que a sua humanidade se exprime bem no diálogo com Dario Gonçalves, ao mesmo tempo, causa e consequência de muitos de seus versos. Passou a ser, de facto, uma espécie de afinador de palavras e fonte de inspiração. O piano poético em que o intérprete toca torna-se naturalmente mais legível.
Leia-se o postal de outubro de 1987 sobre uma viagem do Porto até Ribatua. Aí se nota a proximidade e a cumplicidade de uma partilha quase perfeita de sentimentos e de sensações. “Querido Amigo. Retomo a tradição dos postais em viagem. Saímos do Porto atrasados, comemos bogas fritas, já perto do Pinhão, e mal chegamos a casa, por volta das quatro, o Laureano acendeu o lume e aqui me tem à lareira a escrever-lhe. Só para lhe dizer que tem de ter cuidado consigo, que tem que alterar o seu ritmo de vida, essas correrias tiram-lhe anos de vida e eu quero que V. dure muitos anos, porque a sua amizade me é preciosa, além do livro sobre o Porto».
E voltamos ao mal corrosivo da saudade e da melancolia, ao desejo e da lembrança que desenvolve a tensão entre o drama e o sentimento, o passado e o futuro… E interrogo-me sobre as “Espadas da Melancolia”. Aqui está o corpo e pergunto-lhe se não é a essência da sua humanidade que aqui se encontra, como Jorge de Sena reconheceu.
“Um corpo / para estender a náufragos – o teu corpo. / Um rasto de cadelas aluadas, / um charco de maçãs apodrecidas / ou longas cabeleiras apagadas // Não dizias palavras, ou só dizias / aquelas onde o rosto se escondia. // Palavras onde o sangue não abria / a corola de fogo à madrugada. // O azul não canta, a água morre / na mais secreta boca do teu corpo. // Aqui não brilha a terra, a luz é fria, / aqui o horizonte não respira. // Não havia vento: só medo e cobardia”.
É esta a realidade humana, contraditória, duvidosa, mas próxima. Sem ilusão, importa entender que o lirismo nos obriga a ouvir a história trágico-marítima, e que esta também reclama o picaresco. Não acha, caro Eugénio de Andrade, que todos temos em nós um pouco do aventureiro Fernão Mendes Pinto? E a sua paixão pela língua que nos une e o seu amor camoniano obrigam-nos a ligar tudo isto, compreendendo que, como disse ainda o nosso querido Eduardo Lourenço – “Eugénio de Andrade, nascido já para cá de Pessoa, reinventou o canto dessa aparência (com que só em sonhos Pessoa comunicava) tornou-se puro olhar, escuta atenta do milagre do mundo, fez do universo seu espelho, aceitando-lhe o brilho da superfície e a sua sombra. É o poeta do mistério em pleno dia: ‘Claridade sem repouso, ó claridade, / aguda nos juncos, nas pedras rasa.”
Caro Eugénio, não é fácil descortinar a realidade humana na sua integralidade. Para os mais distraídos até parece que a humanidade está ausente quando deseja torná-la evidência. Mas basta ler atentamente e ouvir as palavras realmente ditas para não ter dúvidas. “Ama / como o rio sobe os últimos degraus / ao encontro do seu leito”.
Por isso, chamei para junto de nós Eduardo Lourenço, com a preocupação de ir além das aparências. Ele tinha toda a razão. Ao interrogar o mistério da realidade, o Eugénio tornou puro o olhar, como escuta atenta do milagre do mundo. “Estou de passagem: / amo o efémero”. E tenho de lhe agradecer, como leitor fiel, essa sua capacidade única. E por isso não esqueço: “Assim eu quero o poema: / fremente de luz, áspero de terra / rumoroso de águas e de vento”. Desse modo deve ser.
Eis por que lhe fico eternamente grato, evocando a busca do que está para além da superfície do tempo: “De palavra em palavra / a noite sobe / aos ramos mais altos // e canta o êxtase do dia”.
Aceite, assim, um abraço do admirador que o não esquece
Eu tenho que contar com tudo o que há de dentro – pulmões e suspiros e cérebro e desilusões intestinos funcionais no sentido lato do termo rins e fígado à espera de amor breve bebida a mais muito depressa consumo mínimo para então conforto máximo
E todos eles velados pelo irascível (mas paciente) coração rei do sopro da vida e da ventania dos amores o que julgando que em todos manda de todos sofre o resultado – seja aos amores baqueando seja importando problemas das outras resoluções do corpo
Até que uma tarde, manhã, noite por impulso e por vingança (aquela que se serve fria) arrefece e deixa de bater sem dar tempo aos outros de o chorarem: eles que em breve estarão a chorar por conta própria cada qual para seu lado renegados e pouco a pouco sem pavor desaparecidos.
O que foi tido por inesperado e imprevisível talvez seja apenas à maneira de um todo se descentrar fugir à tarefa insanamente por nós mesmos exigida à nossa pequena parte, já manchada de sangue, sangue por rectas e curvas de coerência. O sangue por um fio.
in O sangue por um fio, 2009
Vital organs
I have to count on everything that’s inside – lungs and sighs and brain and disappointment functional intestines broadly speaking kidneys and liver waiting for brief love too much drink too quickly drunk minimum consumption for maximum comfort.
And all of them watched by the irascible (but patient) heart king of the breath of life and of the wild winds of love believing it is in charge while it suffers, surrounded – whether pounding for all loves or importing all the troubles of the body’s other pledges.
Till one afternoon, a morning, a night by impulse and by revenge (that which is served cold) it cools off and it stops beating no time for others to rally round: they who soon will cry for their own sorrows each one by itself disowned and by and by gone without fear or fright.
What’s taken for unexpected and unforeseen may perhaps be the way for a whole to be un-centred to escape the insane task that we ourselves demand from our small share, already stained by blood, blood along the coherence of straight and curved lines. Blood by a thread.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA A MATA DO SOLITÁRIO
1. Faz tempo que não nos víamos. A 27 de agosto, bem avisei que nas próximas cinco semanas não ia haver eu. Mas prometi que voltava a 8 de outubro, "se Deus quiser". Temente a Ele, não posso dizer que foi Ele quem não quis (embora a conversa desse pano para mangas). Eu é que preguicei mais um bocado. Cumprir prazos nunca foi o meu forte nem a minha reputação. Para quem deu pela minha falta, aqui ficam as minhas desculpas.
2. Por onde é que eu andei? Tirando um saltinho a Veneza, para festejar em corpo e alma o segundo Leão de Ouro do meu querido Manoel de Oliveira (em 1985, nessas duas espécies, festejei o primeiro, contava ele apenas 76 anos e já libertava as almas cativas) fiquei-me pela Arrábida como é meu setembral costume. Mas, contra todos os costumes, consegui a proeza de não sair de lá entre 13 e 30, dezassete dias bem contados. Fui de retrato em retrato, como em próxima crónica contarei, andei pelas praias e nadei pelos mares, com a mercê do calor. Não se deve ser mal agradecido, mas prefiro, a estes verões póstumos de 2004, os setembros de antigamente, quando às 6 da tarde o tempo se fazia mui fresco e apetecia passear pela serra, bem sabendo embora que "em setembro, às 8, já é noite". Nem sempre me lembrei, donde algumas "aventuras", dessas que tanto assustavam os crescidos e faziam a felicidade da minha neta Sofia, agora juntinha a M. de La Palisse nas muralhas de Pavia. Este ano não houve aventuras nenhumas e a noite mais perdurável foi aquela em que, chegado ao Beira-Mar (é um restaurante no Portinho), me não apeteceu muito nenhum dos peixes que constavam da ementa. "Apetece-lhe salmonetes?" perguntou-me o simpático Lousão, dono do dito. Que sim ou como não, respondi-lhe em bom português, desse só aparentemente contraditório. Pediu-me dez minutinhos, o tempo de um copo. Acabado ele, apareceu-me com uma rede de salmonetes vivos, ainda a saltar, como aqueles que apareciam, nos anos 40 ou 50, à porta da cozinha da Vila Raul, noite dentro, trazidos pelos pescadores. Pedir salmonetes num restaurante e eles não virem do frigorífico mas direitinhos do mar é coisa que pensava não me voltaria a suceder. Sucedeu mesmo e tenho testemunhas. Trinta anos depois da revolução, a doçura de viver ainda existe. E salmonetes como os da Arrábida, não os há em nenhuma outra parte do mundo.
3. Volto do mar para a Serra. Num dos raros passeios deste Verão, tornei à Mata do Solitário, no vale entre o Monte do Guincho e a Serra do Risco. "Mata das bruxas", chamava-lhe a minha Mãe, quando éramos pequenos e continuei eu a chamá-la para os meus filhos e netos. Entre os adernos, os olhados, a aroeira e os grandes carvalhos e medronheiros, é uma das matas mais gloriosas da Arrábida e nunca ouvi a palavra floresta (como essa onde se perderam o Polegarzinho, o Joãozinho ou a Guidinha) que não a visse na minha frente, estivesse onde estivesse. Em miúdo, era capaz de jurar que vira mesmo bruxas por lá, depois do sol se pôr e antes da lua nascer. Vindo de Alportuche, onde então morava, onde agora moro, era um passeio pequeno, bem próprio para crianças. Estrada acima, nesse lado que, mais tarde, me ajudou a perceber o que era o lado de Guermantes, andavam-se uns dois quilómetros. Depois, a entrada na mata por um carreirinho do lado esquerdo da estrada, uns metros adiante de um centenário carvalho, que tem fama de já ter dado sombra ao Senhor D. João V, quando o Duque de Aveiro lhe oferecia uma batida aos javalis. Dez minutos, não mais, bastavam para chegar a uma vasta clareira, no coração do vale, sobranceira ao mar. Chamávamos-lhe (chamamos-lhe) o Calhau do Frederico, mas o termo é mal aplicado. O Calhau (termo da região para designar uma armação de pesca) ficava lá em baixo, junto ao mar e à Lapa do Peixe-Homem, a das águas mais verdes que já estes meus olhos viram. O caminho continua da clareira para o mar e dá mesmo o único acesso por terra ao tal Calhau. Só que essa segunda etapa já não fazia parte dos nossos passeios de criança, pois que, como o outeiro do Canto IX, era bastante mais fácil de descer que de subir e nem mesmo possantes adultos se achavam com força de nos trazer às cavalitas, de volta dos penhascos. Frederico porquê? Porque o dono da armação era um tal Frederico Fernandes, que também deu nome a um Poço na Charca ("Quem por este poço passar / e uma pedra não deitar / nunca mais se há de casar") e tinha uma lenda assaz curiosa. Fixou-se na Arrábida (no Portinho, zona de que era proprietário) cerca de 1870, aos vinte anos, época em que, para além dos pescadores, devia ser o único morador da região. Tinham-lhe diagnosticado uma tuberculose e pouco tempo lhe davam de vida. Segundo a fábula, curou-se na Arrábida, onde viveu até quase aos 90 anos. De cada vez que se aventurava até Azeitão tinha uma hemoptise. Regressado aos seus calhaus, os pulmões deixavam de lhe sair pelas goelas, se bem me lembro do meu José Duro, e ficava rosado como uma maçã reineta. A minha Mãe descrevia-mo como um velho alegre e prazenteiro, de cabelos e barbas muito brancas. Depois da morte dele, a armação ficou ao abandono e o ciclone de 41 acabou por a destruir. Mas os alicerces eram bem visíveis e quem saiba ainda pode detetar restos deles. Agora tudo está muito diferente. O caminho, só mesmo quem o conheça bem ainda é capaz de o achar e a clareira está reduzida a metade (ou nem isso) porque a vegetação rasteira cresceu imenso e quase a cobriu. Mesmo assim, continua a ser um sítio mágico, entre as duas colinas escarpadas e o mar vagarinhoso cá muito em baixo. Não se vê viv'alma nem sítio onde a mão do homem tenha posto o pé. Prolongando tradições ancestrais, tenho por hábito pedir aos miúdos que se calem e ouçam o silêncio. Este ano, a minha neta Maria, quando depois lhe perguntei o que o silêncio a fizera escutar, respondeu-me: "Os anjos." Não me admirava nada.
4. A mata chama-se do Solitário porque, segundo a tradição, nela viveu, no século XVII, um minorista que aí construiu habitação. O local era propício, pois muito próximo fica uma das raras fontes da Arrábida (a água é rara na Serra, devido à estrutura calcárea), a chamada Fonte do Solitário. Havia (se procurarem bem ainda há), mas está quase intransitável, um caminho que a ligava ao Convento, pois que os monges também se abasteciam ali. Minorista chamei-lhe, em consonância com as fontes mais fiáveis. Mas também ouvi dizer que era santeiro (da escola de olaria de Paio Pires) e curandeiro. E como as lendas na Arrábida são como as cerejas (que é coisa que lá não há) dizem-no ainda conspirador, envolvido na conjura de 1641 contra D. João IV, esse que levou à degola o marquês de Vila Real, o duque de Caminha, o conde de Armamar e D. Agostinho Manuel, entre vária outra gente de menos algo. O santeiro conseguiu fugir a tempo e refugiou-se na Serra da Arrábida. Até por razões políticas, o sítio não foi mal escolhido. A serra era pertença da casa de Aveiro, que os Filipes tinham sempre tratado com sumo favor. O 4º Duque, D. Raimundo, como sua mãe, a Duquesa de Torres Novas, D. Ana Manrique de Lara, aos quais se deve o Convento Novo e o maior fausto dos arrábidos, não escondiam simpatia pelos espanhóis em rocambolescas histórias (talvez justifiquem muitas das construções da serra, se as chamadas ermidas foram edificadas para fins militares e não pios) que duraram até 1666 e passaram pela execução em efígie de D. Raimundo, em 1661.
Seja como for, o Solitário terá estado bem acompanhado na Arrábida, sem temer delatores. Prosperou a ponto de aí fazer a tal casa, exercendo a sua arte em imagens para o novo Convento e sarando as gentes de Azeitão, que até à Mata viajavam pelo caminho do Regato, atravessando os Casais da Serra (esse caminho ainda existia quando eu nasci). Terá ali vivido entre 1641 a 1666. Um belo dia, desapareceu. Ou foi finalmente descoberto e pagou o crime antigo (é a versão mais plausível) ou foi engolido pela Serra, que tem fama de ter feito desaparecer muita gente. Esta ultima é a história mais popular e a que explica o nome da Lapa do Médico, gruta situada próxima do caminho entre a Fonte e o Convento. Quando a dita Lapa foi descoberta, algures no século XVIII (a habitual história do pastor que demandava ovelhas tresmalhadas) diz-se que, no fundo dele, foi achado um esqueleto. Existindo ainda memória do desaparecimento do Solitário, logo houve quem pensasse que as ossadas eram as dele, promovido na toponímia de curandeiro a médico, o que a evolução da ciência ajuda a explicar. Hoje, tudo isso (quero eu dizer, os restos materiais disso) desaparecem aos poucos, em meio à incúria a que a serra foi votada e de que já falei em crónicas pretéritas. Das ruínas da casa do Solitário, onde quer eu quer os meus filhos tantas vezes brincámos (ainda tinha paredes e tetos nos anos 60) já mal se advinham vagos restos, só possíveis de alcançar com as roupas esfarrapadas. Da última vez que o tentei (e já lá vai uma meia dúzia de anos) demorei uma tarde para chegar da Fonte do Solitário à Lapa do Médico, o que antigamente se fazia em vinte minutos, com uma perna às costas.
Desapareceu, assim, uma das minhas aventuras favoritas da Serra. Conduzir "estrangeiros" até à entrada da gruta e vê-los recuar, aterrorizados, perante um buraco no chão por onde mal cabe um corpo humano. Quem vence o temor é compensado pela sucessão de galerias, estalactites e estalagmites, de enfilada até aos catafúndios, aí uns 100 metros abaixo do nível do solo. Mas ai de quem se aventure nela sem lhe conhecer os meandros e sem luz de sobra. Entrará, mas não sairá, a não ser eventualmente em esqueleto, como o Solitário da Mata, que, só por acaso, ou porque há Deus, não desapareceu já toda num dos incêndios como o de julho deste ano. Na Mata do Solitário, sinto-me cada vez mais solitário. "Alone with my memories", como dizia o Groucho Marx no "Room Service". Assim se passou um Verão de Setembro augustinado e de ocasos singulares.
por João Bénard da Costa 15 de outubro 2004, Público