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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 3 a 9 de junho de 2024


A Desoras – diário – 2017-2023
(D. Quixote) é o sexto volume dos diários de Marcello Duarte Mathias, publicados sob o título geral de No Devagar Depressa dos Tempos.


METÁFORA DA VIDA HUMANA
O título geral destes Diários lembra-nos o extraordinário conto de João Guimarães Rosa “A terceira margem do rio”, onde, no percurso da narrativa, o genial autor nos diz a dado passo, que “Os tempos mudavam no devagar depressa dos tempos”. A escolha do conto e da passagem não foi arbitrária, pois essa terceira margem é uma metáfora sobre a vida humana, talvez hoje com uma pertinência mais evidente, permitindo a compreensão do mundo por um memorialista de exceção que nos fala do tempo e das pessoas sempre sob a tónica da procura de uma outra dimensão para além do lugar-comum, representado pelas duas margens do rio. Como tem salientado Paula Morão, a quem este volume é justamente dedicado, o escritor continua a deixar-nos preciosos fragmentos autobiográficos que se referem não apenas a si próprio, mas também a quem o rodeia. E a paixão pela História corresponde, no fundo, à necessidade de a compreender a partir dos pequenos pormenores, dos microcosmos, único modo de dar um panorama geral que nos liberte do momentâneo ou daquilo que a evolução das coisas vai desvanecendo irremediavelmente. É real a observação do “verso e reverso das coisas e dos dias: livros, citações, lembranças – entre viagens, amizades e desaparecimentos”. De facto, há uma permanente busca das raízes, das luzes e das sombras e da razão de ser dos acontecimentos, que constituem verdadeiros mestres interiores do autor, para usar a expressão clássica de Mounier.


NUNCA ESCREVEMOS AQUILO QUE SOMOS
“Somos sem dúvida aquilo que escrevemos e, todavia, nunca escrevemos aquilo que somos” – disse-nos Marcello Mathias, em tempos, no primeiro volume destes diários. Hoje, continua a pensar do mesmo modo e tem razão, mas é levado a acrescentar: “acabamos também por nos tornar naquilo que deixamos escrito, especialmente em textos de índole intimista, pois quer queiramos quer não, somos o que fomos, sobretudo o que nos foi dado viver (…) Sim, para lá de uma cronologia, somos por igual uma série de datas que constituem outras tantas linhas-fronteiras do nosso percurso”. E precisamos da presença de espírito para não nos deixamos apanhar pelas armadilhas da vida. A cada passo notamos nestes diários a capacidade de estar desperto para olhar o horizonte e para ver o outro lado das coisas, para além do que está na ordem do dia. E não podemos esquecer as ironias do destino, como é recordado a propósito do caso de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor de um dos grandes romances do século XX, O Leopardo, recusado em vida pelos maiores editores, e que poderia ter ficado, por um triz, esquecido no fundo de uma gaveta. Morreu esquecido e só depois se tornou celebrado. E quantos casos desses nunca tiveram um desenlace favorável? A História está à mercê de vicissitudes absurdas, ditadas pela pura ilusão ou pela incapacidade de ver para além da escuridão de um canto esconso.


COMPREENDER O VERDADEIRAMENTE IMPORTANTE
Como compreender o que é realmente importante? E Marcello D. Mathias lembra-nos uma série dedicada no “Le Monde”, por Jean Birnbaum, a figuras marcantes do seu tempo, como Albert Camus, Hannah Arendt, George Orwell, Raymond Aron e Georges Bernanos. Talento, cultura e carácter – todos eles espíritos de exceção. E aí se realçavam qualidades como a capacidade de admirar, a consciência dos limites, a pluralidade infinita da condição humana, o gosto da liberdade, a recusa do slogan e da servidão ideológica, a necessidade de preservar a ética do justo e do verdadeiro, a simplicidade aliada à autenticidade, a apreensão do real em toda a sua complexidade, o decifrar das contradições, sem desconhecer a pulsão das forças irracionais, o heroísmo da incerteza, o sentido do humor, como coragem e distanciamento. Eis as virtudes que entusiasmam o memorialista. “O culto da nuance é um ato de bravura”. E Bernanos afirma claramente que escrevia para se justificar. Aos olhos de quem? Da criança que foi. “Moral da história: as imposturas e os impostores têm a vida curta e a decantação do tempo acaba, em regra, por selecionar quem merece sê-lo”. Dir-se-ia que aqui encontramos assim o denominador comum de um pensamento e de uma atitude perante a existência. Recordando um amigo comum, Alberto da Costa e Silva, embaixador e intelectual de exceção, evoca as suas memórias, e a afirmação de que “a imaginação vai alterando com o tempo o entrelaçado da lembrança”. De novo, o elogio de uma atitude essencial. A escrita tem capacidade de alterar o tempo. E essas são memórias que correspondem àquela “galeria de livros-depoimentos que não vêm nos manuais escolares, mas que pertencem ao mais íntimo da nossa biblioteca, integrando ao lado de outros a nossa pessoalíssima família”. E assim se recorda um excelente companheiro e a sua ironia, lâmina fina, que lembrava um florete pela leveza e precisão… Acompanhamos, a cada passo, o que o autor vai partilhando connosco – dúvidas, angústias, prazeres e preocupações, os passeios matinais com o saudoso Charlie, que conhecemos com expressão simpática na badana do livro. “Em regra a passagem do tempo cimenta, solidifica, congrega. A doença de Alzheimer perfaz o caminho contrário afasta, separa, desune. Onde se está, afinal? Simplesmente alhures, entre desconhecidos”. Mas há pequenos milagres que se usufruem de modo inesperado, como a natureza que renasce, o cheiro da erva molhada, depois da chuva, as padarias ao abrir do dia, o pão quente…  E compartilhamos gostosamente a divisa do Conde de Ficalho, autor dessa pequena maravilha que é o Conto do Malhadeiro: “Sei andar só e a pé”…  E há o barulho do mundo. Perante os tremendos acontecimentos no leste europeu, independentemente de todos os riscos e incertezas, Marcello tem razão: “hoje Putin é um homem acossado, à cabeça de um país enfraquecido, sujeito a um conjunto de imponderáveis que não domina: a situação militar no terreno, as relações com a China, o empobrecimento da Rússia devido à severidade das sanções, etc. E não se vislumbram soluções favoráveis. Porque não as há. É o proverbio grego: ‘O carvão quando quente, queima as mãos; frio, suja-as’”. Afinal, e a desoras (com o tempo fora do tempo), procuramos compreender-nos e compreender o que dura e o que passa. E é verdade o que o autor nos diz sobre todos quantos connosco viveram e já não os temos próximos. “Minha infância, embora se situe para lá do tempo ainda não morreu”. Por absurdo que pareça assim é. Eis o grande enigma da vida. E se pensamos na relação entre a vida e a literatura podemos dizer, sem hesitar: “Afinal, feitas as contas, ninguém morreu”.   


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença