A EMERGÊNCIA CONSTITUCIONAL
A derrota de Napoleão na batalha de Trafalgar levou o Imperador francês a abandonar o plano de invasão da Grã-Bretanha e a conceber como alternativa o Bloqueio Continental, visando asfixiar economicamente o inimigo, tão dependente do comércio marítimo. Em novembro de 1806, chegado a Berlim, Bonaparte proclamou o fecho de todos portos do velho continente aos navios britânicos. E em Tilsit, deu conta ao Imperador russo do seu objetivo de depor as casas reais da Península Ibérica, resistentes ao bloqueio. Conhecemos a História, as breves hesitações do governo de Lisboa, a sobrevivência do Reino, a posição britânica, o bombardeamento de Copenhaga, em setembro de 1807, para que a frota dinamarquesa não caísse em poder da aliança franco-russa e a decisão portuguesa de partir.
Estamos no coração da obra de António Alves-Caetano A Emergência do Liberalismo em Portugal no Ocaso do Antigo Regime (1796-1822), que merece uma leitura atenta, uma vez que aí se desenham o destino trágico de Napoleão, a reconfiguração da Europa oitocentista e futuro de Portugal com a independência do Brasil e o nascimento do constitucionalismo liberal. Há dúvidas e contradições, mas a convenção secreta anglo-portuguesa de 22 de outubro de 1807 operou um golpe de teatro, ou seja, a retirada da Corte portuguesa para o Brasil. É verdade que houve uma espera, mas tudo se passou de modo que a chegada de Junot tenha ocorrido felizmente a destempo, quando os navios importantes, militares e mercantes, já tinham partido rumo ao Atlântico Sul. É certo que as ordens deixadas pelo Príncipe D. João eram para que os invasores fossem acolhidos com benignidade, como Domingos António de Sequeira interpretou à letra, mas a verdade é que a águia imperial, que chegava muito fragilizada, sem o saber estava ferida de morte. Abria-se o caminho da independência do Brasil e terminava o pacto colonial, com todas as consequências económicas e políticas.
É assim importante o estudo sobre a forma como o bloqueio de Napoleão afetou o movimento de entradas e saídas dos navios mercantes no porto de Lisboa, demonstrando os efeitos negativos não só da abertura dos portos do Brasil à Inglaterra, mas também os condicionalismos impostos pela guerra europeia na quebra das produções agrícolas e industriais do Reino. Porém, as importações inglesas e americanas invadiam-nos, ainda que muitas fossem destinadas ao consumo das tropas britânicas. E deve recordar-se o outro importante estudo do autor sobre “Os Socorros Pecuniários britânicos destinados ao Exército Português”, muito esclarecedor sobre o tema. Contudo, mesmo depois da vitória definitiva sobre os franceses (1811), a Marinha portuguesa, outrora dominante, veio a perder influência, também por ausência das reformas necessárias. Já a foz do Douro continuou com um movimento significativo relacionado essencialmente com o trato do vinho do Porto.
O livro de António Alves-Caetano contém uma análise rigorosa dos momentos fundamentais da Guerra Peninsular, desde a chegada de Junot até à revolução de 1820, com o despontar do movimento liberal, apresentando a conjugação da resistência nacional contra o invasor com a formação de uma consciência de soberania constitucional. O livro apresenta ainda a análise das ingerências britânicas em Macau na era napoleónica, do papel desempenhado por Miguel de Arriaga como Ouvidor em Macau ou da vitória naval na batalha do Boca do Tigre (1809-10), esclarecendo o autor o papel do Conde de Farrobo no apoio decisivo à causa liberal de D. Pedro, contra injustas difamações. E assinale-se a justíssima referência a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, figura central na organização das Finanças Públicas portuguesas, aquando da fundação do Ministério da Fazenda. No fundo, a emergência constitucional significava a busca da liberdade pátria e a resposta aos ingentes desafios perante as profundas mudanças europeias.
GOM