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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  
De 17 a 23 de junho de 2024


Ao ler a reedição de Sophia de Mello Breyner Andresen – Biografia de Isabel Nery (D. Quixote), quando celebramos os 500 anos do nascimento de Camões e os 50 anos da Revolução de Abril de 1974 devo salientar como na referência à autora de Mar Novo encontramos, em ligação estreita, a recordação do épico e a evocação perene da liberdade.



ESTA É A MADRUGADA QUE EU ESPERAVA
Se lembramos como Camões tem sido ao longo da nossa história símbolo da liberdade, desde antes de 1640 ou no período final do século XIX, no centenário de 1880, temos de ter presente como Sophia simbolizou a voz corajosa de “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” e a proclamação inolvidável - “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Em que emergimos da noite e do silêncio / E vivos habitamos a substância do tempo”. Estão assim evidenciados os ecos da essência poética das nossas raízes, desde os trovadores até às mais recentes gerações, passando pela maturidade da língua na poesia de Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett ou Antero… “Sophia afirmou em várias entrevistas que foi feliz enquanto aluna do colégio, mas o que mais a marcou foram as aprendizagens recebidas dos avós – e das criadas.  Sólida terá sido a experiência que a levou a memorizar a Nau Catrineta”.  “Lá vem a Nau Catrineta / Que tem muito que contar / Ouvi agora, senhores, / Uma história de pasmar…”. “A transmissão oral dos versos, mesmo antes de saber ler, levaria Sophia a afirmar ter crescido a acreditar que a poesia tinha existência própria, depois de um primeiro contacto com as palavras de Antero de Quental e de Camões que o avô Tomás de Mello Breyner lhe ensinava. E que a pequena Sophia não compreendia ainda, mas reconhecia”. E o avô não lhe poupava elogios: “Admirável na maneira como recita”. “Um assombro”. E acrescentava: “Quando há dias estive no Porto via-a decorar um soneto de Antero de Quental depois de ouvir apenas três vezes. Que encanto de pequena!”. “Com apenas 10 anos, Sophia passeava-se com uma edição dos Lusíadas na algibeira e já fazia furor perante as visitas que ficavam de boca aberta quando a ouviam recitar”. Mais do que o natural orgulho do avô, que conhecera a geração excecional do próprio Antero e que se formara na valorização das raízes do Romanceiro de Garrett, a verdade é que sentimos desde cedo em Sophia a importância da vivência poética, cujo ritmo sentia intimamente, a ponto de afirmar que os três pontos cruciais numa escola deveriam ser: poesia, música e a consciência do corpo, pela ginástica e pela dansa, palavra que escrevia sempre com um s, para que não se perdesse o sentido do movimento. As artes constituíam, assim, o começo de qualquer aprendizagem. “todo o mundo é poético quando visto em verdade. Todas as coisas são maravilhosas quando as compreendemos. E a poesia limita-se afinal a iluminar a verdade, a beleza secreta que há em tudo aquilo que existe” – como afirmava Francisco Sousa Tavares, ao considerar Sophia como alguém “que se adivinha, adivinhando o mundo, para além das aparências e atinge o ritmo secreto, verdadeiro e universal da vida”…


DEPURADA PERSONALIDADE DE POETA
Convergindo com a sabedoria inconformista do Padre Manuel Antunes, mestre da cultura clássica, Sophia encontra nele o elogio da unidade, da concentração e da intensidade de uma “poesia intemporal que revela uma forte e depurada personalidade de poeta”. E a própria esclarece: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é a arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência, nem uma estética, nem uma teoria. Pede-me apenas a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna (…). Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa, compacta” (Arte Poética II). De facto, há um evidente contacto entre o crítico da Brotéria e a artista: “A palavra é dada ao homem para traduzir, interpretar, dizer a realidade que está aí, na sua imediatez, bruta e elementar, diversa e una”. É a busca da coerência da vida que está em causa, tal como encontramos nos Contos Exemplares, quer na figura de Mónica, que em nome do sucesso não renuncia à poesia, ao amor e à santidade; quer em “O Jantar do Bispo” onde o padre (Varzim) diz: “Da nossa própria fome podemos dizer que é um problema material e prático. A fome dos outros é um problema moral”. A atenção e o cuidado eram marcas da coerência de Sophia, bem sentida na casa da Travessa das Mónicas.


UMA BUSCA APAIXONADA
“Nuno Júdice recorda a busca por livros que não faziam parte do programa. Nos intervalos, no Liceu Camões, em Lisboa cambiavam-se conquistas literárias. Ora Guterres chegava dizendo, orgulhoso, que tinha acabado de comprar um exemplar de Sophia, Geografia, ora Cintra trazia o Livro Sexto de presente a Nuno Júdice, aniversariante no mesmo dia do amigo encenador. Procurávamos tudo o que fosse contra a ditadura. Livro Sexto que é importantíssimo, tem muitos textos com forte componente política. Sophia marcou toda aquela geração”. O Centro Nacional de Cultura, depois do encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, aquando da atribuição do prémio a Luandino Vieira, tornou-se um lugar de desassossego e de jovens poetas que seguiam o exemplo de Sophia e Francisco de Sousa Tavares. E ele mesmo tem a ideia de pedir a sua mulher que assuma a presidência do Centro, uma vez que havia que mobilizar uma nova geração de poetas e escritores, perante a afronta do regime contra a liberdade de criação e a cultura. E havia ainda que cuidar clandestinamente do apoio aos presos políticos, e Sophia era a melhor pessoa para poder assumir-se como necessário polo agregador. É um tempo decisivo que vai preparar a democracia que se anunciava. Numa dedicatória dirá exemplarmente: “Para o Francisco, que me ensinou a coragem, e a alegria do combate desigual”. E como ensinaram os teólogos do Concílio Vaticano II: “Gostar da Terra é gostar da obra de Deus”. E Eduardo Lourenço verifica que a mitologia grega lhe serviu de inscrição para os seus próprios santos, ao culto da beleza e do natural. “Porque é a ética que concilia a imanência e o presente (o instante e a eternidade), as nossas ações compõem o futuro depois da morte. Se não formos capazes de criar o paraíso no dia a dia ele nunca será encontrado”. A cada passo “a paixão helénica” enche o pensamento poético centrado no ser. Já falámos da centralidade da arte na educação, da ética no bem comum, da atenção e do cuidado, do exemplo e da experiência, e sentimo-lo intensamente quando fomos à Escola que tem o seu nome em Carnaxide, tendo Sophia pedido a professores e alunos que representassem de cor A Menina do Mar. E, ao ouvi-los, emocionada, compreendeu quanta esperança há na arte de educar, como modo de fazer da palavra a expressão do ser.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença