Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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180. DEBATENDO A DUALIDADE E A ESSÊNCIA DA CONDIÇÃO HUMANA
Sempre, em qualquer parte, ao lado do Bem existiu o Mal. É impossível imaginar um sem o outro.
Nos vários sistemas religiosos explicativos do universo, os espíritos do bem e do mal parecem ter nascido conjuntamente do caos, subsistindo sempre, num combate incessante e permanente, ora vencidos, ora vencedores.
Segundo a Bíblia, quando ainda não existia este mundo, já no Além houvera um crime político: a revolta dos anjos maus, comandados por Lúcifer, contra Deus. Criado o ser humano, cometeu de imediato os crimes de desobediência e furto, a que se seguiu a sua condenação e punição.
Assim convergiram e se incarnaram nos humanos os princípios do bem e do mal. Assim se explica, nesta perspetiva, que nenhum de nós seja incapaz de praticar o mal, nem que nenhum delinquente, marginal ou criminoso esteja incapacitado de realizar atos reveladores do bem.
Nesta dualidade fundamentam-se as teorias da prevenção do crime e da regeneração do delinquente pela pena, pelo trabalho e pela educação.
Indicia-se ser inglório saber qual dos dois princípios é mais antigo, aparentando ser duas faces da mesma moeda, tendo nascido em simultâneo.
E o bem pode associar-se ao bom, a Deus, à luz, ao certo, à norma e à ordem estabelecida, o mal ao mau, ao Diabo, às trevas, ao errado, à transgressão.
Porque nem tudo é a preto e branco repugna, a muitos, o maniqueísmo.
Ser de direita, do centro ou de esquerda, é bom ou mau? Onde fica o bem e o mal?
É usual dizer-se que não podemos viver sem reflexão transdisciplinar, dado que a análise global não se pode apoiar apenas nas conquistas da investigação especializada, pois há fenómenos cuja compreensão não é acessível por uma observação tecnicista e laboratorial, havendo que situá-los no meio ambiente, num conjunto complexo de interações.
Daí a preocupação de contrapor à especialização dos conhecimentos a investigação transdisciplinar, no seguimento da velha frase de Pascal, segundo a qual não podemos conhecer o todo sem conhecer as partes, como não podemos conhecer as partes sem conhecer o todo.
Todavia, pretende-se apenas detetar o possível, dentro do possível, em obediência ao princípio de que tudo é possível e questionável de novo.
Significa que aceitamos a incerteza, que sabemos e não sabemos.
Significa que o que se nos depara como fundamental é a necessidade de assumir plenamente a ausência de uma verdade absoluta, de aceitar o erro e a incerteza como componentes iniludíveis de toda a atividade humana.
Quando uma teoria se fecha ao real, os seus axiomas tornam-se dogmas e ela própria se transforma numa doutrina, assumindo a sua verdade como definitivamente provada e refutando todos os desmentidos tidos como reais.
Ora, toda e qualquer teoria só é verdadeira dentro de certas condições e limites, pois a verdade é biodegradável, abrindo-se ao mundo exterior e correndo os riscos de modificação e morte, tendo de permanente a sua luta, ao seu redor e em si própria.
E se, na vida, há algo de belo em todos termos uma missão, também temos a convicção de que a verdade e a verdadeira essência da condição humana está muito para lá daquela que convencionamos aceitar para podermos viver em coabitação, não sendo a internet e a inteligência artificial a mãe-de-Todas-as-coisas, porque permanecem sempre mistérios fora do alcance da imensurável sapiência que se queira atribuir a um verdadeiro Deus, e não a uma presumível divindade do Homo Deus.
Temos a sensação de que as coisas se fecham e de que os muros se levantam ao diálogo para o asfixiar quando o deveríamos estar a amplificar.
Estamos numa época de grande teste à liberdade, e pensa-se mesmo em lançar retaliações contra o pensamento, contra o questionamento do eu, bem como contra as interrogações aos princípios das religiões.
Argumenta-se e tenta-se convencer que as sociedades para serem éticas, carecem de quem estabeleça, supremamente, o que é certo e o que é errado, e logo nos atenta o romano poeta Juvenal: Quis custodiet ipsos custodies. «E quem nos guardará dos guardiães?»
A censura é a energia negativa. É o não-ser que reivindica uma autoridade que se deseja indiscutível.
Recordo – entre tantas outras realidades - o Festival Literário de Jaipur e as agressões a Ashis Nandy quando abordava a corrupção nas castas inferiores.
Na verdade, até o famoso romance de Rohinton Mistry, Such a Long Journey, foi retirado de estudos da universidade de Bombaim já que os radicais se opuseram ao seu conteúdo.
O escritor Ye Du desapareceu em 2011 depois de denunciar o “crédito social” como uma nova forma de controlo totalitário da sociedade.
A um Augusto César, logo lhe ocorreu desterrar Ovídio.
Recordo igualmente o quanto li acerca das vidas que se desmembraram e desmembram ao cair pelos buracos do sonho americano ou nos das superioridades morais das causas esquerdistas.
Se a nossa civilização for a que melhor convive com a compreensão, nunca como agora, um diálogo global se mostra tão importante e indispensável.
Mas há que nos lembrarmos com muita resistência o quanto a capacidade de discernir deixa a tirania desconfortável.
Se conseguirmos inspirar que as várias formas de comunicação se constituirão ainda a tempo de o mundo ser capaz de se ouvir, então retomaremos todas as conversas interrompidas.
Crescer é um fenómeno de liberdade que assenta em nós próprios.
De Lao Tzu, poeta e filosofo chinês, é a frase «uma viagem de mil milhas começa com um único passo».
E afinal sem cenoura e sem paus a escolha é nossa.
Compreender Camões é lê-lo no que tem a ver connosco. E Jorge de Sena disse no Dia de Portugal de 1977, que importava «dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência». O poeta de Perseguição deixava, assim, claro que, «sendo Camões o maior escritor da nossa língua, que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um escândalo». No fundo, Camões é «o homem universal por excelência, o português estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo». Fora de qualquer tentação de autossatisfação ou de ilusão, «ninguém, como Camões, desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exatamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares». No essencial, «ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa». Eis a legitimidade própria para considerar Camões como um verdadeiro símbolo, em que o sentido crítico sobreleva quaisquer argumentos de oportunidade. E, como Sena disse ao seu amigo Ruy Cinatti, “Viver é coisa de mar, cheira a horizonte”. Ora, quanto a Camões, o essencial é isto: «Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E não esqueçamos que Portugal é, como Camões, a vida pelo mundo em pedaços repartida».
E já Camilo Pessanha em 1924, há exatamente um século, neste mesmo mês de junho dissera: “Tem-se debatido desde há anos a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se aqui desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há de decerto renascer mais animada algum dia; e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa. É a sorte de todas as tradições consagradas…”. Mas o genial poeta solucionava o mistério do modo mais poético: “Há, é certo, lendas e lendas, tradições e tradições: umas sublimes, outras grotescas. Estas são efémeras, aquelas eternas. Basta como exemplo da indestrutibilidade destas últimas o da lenda heroica da Grécia”. Também aqui, mais importante que tudo, nessa simbólica Gruta de Camões, importaria não ficar pelo pormenor biográfico, mas sim considerar o culto mesmo do Poeta, que simboliza a Pátria, como nenhum outro povo designou, num sentido aberto e universal, e as suas palavras são imortais. Mais do que discutir se esteve nesse local sagrado, o certo é que está!
1. Este texto foi escrito antes da realização de um acontecimento que julgo muito significativo e que teria lugar no Vaticano no dia de ontem: o encontro do Papa Francisco com mais de 100 humoristas de todo o mundo, entre eles Joana Marques, Maria Rueff e Ricardo Araújo Pereira.
Um encontro organizado pelo Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério da Comunicação. O seu objectivo: “estabelecer um diálogo entre a Igreja Católica e os humoristas”. “Francisco reconhece o grande impacto que a arte da comédia tem no mundo da cultura contemporânea. Através do talento humorístico e do valor unificador do riso nos dias de hoje, são oferecidas reflexões únicas sobre a condição humana e a situação histórica. Além disso, a arte da comédia pode contribuir para um mundo mais empático e solidário”, referia o comunicado do Vaticano, acrescentando que “o encontro entre Francisco e os actores cómicos do mundo pretende celebrar a beleza da diversidade humana e promover uma mensagem de paz, amor e solidariedade, e promete ser um momento significativo de diálogo intercultural de partilha de alegria e esperança.”
2. Estando a escrever antes do acontecimento, só posso esperar que assim seja. E, sobre o tema, deixo aí algumas reflexões, já por vezes aqui expandidas.
A Igreja oficial nunca se deu muito bem com o humor e o riso. Por exemplo, ainda vivi tempos nos quais durante o Carnaval, nos seminários, havia a chamada “Exposição do Santíssimo Sacramento” e durante o dia e a noite rezava-se pelos pecadores e fazia-se penitência em reparação pelos pecados daqueles dias. Sou sincero: nunca percebi em que diferiam os pecados do Carnaval dos pecados dos outros dias.
Até se generalizou a ideia de que Jesus nunca se riu. Na verdade, de Jesus diz-nos o Evangelho que chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro e Jerusalém... Não se diz que riu. Mas já Santo Tomás de Aquino observou que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é homem e rir é característica essencial, distintiva, do ser humano. Jesus participou em festas de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos? Uma boa piada pode estabelecer pontes, o riso são cura. Lá está Kant: para aliviar as agruras da vida, o Céu deu-nos três coisas: “a esperança, o sono e o riso”.
Digo: ai da Igreja e dos crentes, ai das instituições, sem a crítica por vezes mordaz, que pode ajudar a curar. Só nas ditaduras é que não se pode fazer humor nem rir dos poderes instituídos. Ai de cada uma e cada um de nós, se não souber rir-se de si mesmo, de si mesma, das suas manias e disparates… O que não se pode — não se deveria — é cair no riso alarve, na piada boçal e ofensiva, que apenas significam falta de inteligência. Ah! o riso também ajuda a curar a vaidade oca, e ele há tanta, tanta vaidade oca: "Mesmo no mais alto trono do mundo, está-se sentado sobre o cu", escreveu Montaigne.
Na Idade Média, realizava-se a chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Elegia-se, entre os subdiáconos, um senhor da festa, designado “Bispo”. Esse subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de Bispo, colocado em cima de um burro, e entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em certos momentos, o celebrante e o povo zurravam. Na entrega simbólica do “báculo” episcopal entoava-se o Magnificat — o hino de louvor que o Evangelho coloca na boca de Maria — naquele passo: "Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes." Sobre a Festa dos Loucos pronunciou-se a Faculdade de Teologia de Paris em 1444, justificando-a: "Os nossos eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita?” Neste descalabro burlesco, dever-se-ia ver, no limite, a urgência de não confundir o Sagrado em si mesmo com as mais variadas formas idolátricas com que tantas vezes os crentes se lhe dirigem.
A propósito da força crítica da piada e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores, com mitras, tricórnios, alguns vestidos de púrpura… Aconteceu que São Pedro veio à janela do Céu e viu aquilo. Estarrecido, chamou Jesus, que olhou e apenas disse: "E pensarmos nós, Pedro, que começámos aquilo, entrando de burro em Jerusalém onde fui crucificado pelos poderes do Templo e do Império... Lembras-te?"
Sim, Francisco socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a “Oração do bom humor”, oração atribuída a São Tomás Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a quem falta o bom humor divino: "Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./ Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não se amedronta facilmente diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/ que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as lamentações,/ nem os excessos de stress por causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá - me, Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os outros./ Ámen."
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 15 de junho de 2024
Ao ler a reedição de Sophia de Mello Breyner Andresen – Biografia de Isabel Nery (D. Quixote), quando celebramos os 500 anos do nascimento de Camões e os 50 anos da Revolução de Abril de 1974 devo salientar como na referência à autora de Mar Novo encontramos, em ligação estreita, a recordação do épico e a evocação perene da liberdade.
ESTA É A MADRUGADA QUE EU ESPERAVA Se lembramos como Camões tem sido ao longo da nossa história símbolo da liberdade, desde antes de 1640 ou no período final do século XIX, no centenário de 1880, temos de ter presente como Sophia simbolizou a voz corajosa de “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” e a proclamação inolvidável - “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Em que emergimos da noite e do silêncio / E vivos habitamos a substância do tempo”. Estão assim evidenciados os ecos da essência poética das nossas raízes, desde os trovadores até às mais recentes gerações, passando pela maturidade da língua na poesia de Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett ou Antero… “Sophia afirmou em várias entrevistas que foi feliz enquanto aluna do colégio, mas o que mais a marcou foram as aprendizagens recebidas dos avós – e das criadas. Sólida terá sido a experiência que a levou a memorizar a Nau Catrineta”. “Lá vem a Nau Catrineta / Que tem muito que contar / Ouvi agora, senhores, / Uma história de pasmar…”. “A transmissão oral dos versos, mesmo antes de saber ler, levaria Sophia a afirmar ter crescido a acreditar que a poesia tinha existência própria, depois de um primeiro contacto com as palavras de Antero de Quental e de Camões que o avô Tomás de Mello Breyner lhe ensinava. E que a pequena Sophia não compreendia ainda, mas reconhecia”. E o avô não lhe poupava elogios: “Admirável na maneira como recita”. “Um assombro”. E acrescentava: “Quando há dias estive no Porto via-a decorar um soneto de Antero de Quental depois de ouvir apenas três vezes. Que encanto de pequena!”. “Com apenas 10 anos, Sophia passeava-se com uma edição dos Lusíadas na algibeira e já fazia furor perante as visitas que ficavam de boca aberta quando a ouviam recitar”. Mais do que o natural orgulho do avô, que conhecera a geração excecional do próprio Antero e que se formara na valorização das raízes do Romanceiro de Garrett, a verdade é que sentimos desde cedo em Sophia a importância da vivência poética, cujo ritmo sentia intimamente, a ponto de afirmar que os três pontos cruciais numa escola deveriam ser: poesia, música e a consciência do corpo, pela ginástica e pela dansa, palavra que escrevia sempre com um s, para que não se perdesse o sentido do movimento. As artes constituíam, assim, o começo de qualquer aprendizagem. “todo o mundo é poético quando visto em verdade. Todas as coisas são maravilhosas quando as compreendemos. E a poesia limita-se afinal a iluminar a verdade, a beleza secreta que há em tudo aquilo que existe” – como afirmava Francisco Sousa Tavares, ao considerar Sophia como alguém “que se adivinha, adivinhando o mundo, para além das aparências e atinge o ritmo secreto, verdadeiro e universal da vida”…
DEPURADA PERSONALIDADE DE POETA Convergindo com a sabedoria inconformista do Padre Manuel Antunes, mestre da cultura clássica, Sophia encontra nele o elogio da unidade, da concentração e da intensidade de uma “poesia intemporal que revela uma forte e depurada personalidade de poeta”. E a própria esclarece: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é a arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência, nem uma estética, nem uma teoria. Pede-me apenas a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna (…). Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa, compacta” (Arte Poética II). De facto, há um evidente contacto entre o crítico da Brotéria e a artista: “A palavra é dada ao homem para traduzir, interpretar, dizer a realidade que está aí, na sua imediatez, bruta e elementar, diversa e una”. É a busca da coerência da vida que está em causa, tal como encontramos nos Contos Exemplares, quer na figura de Mónica, que em nome do sucesso não renuncia à poesia, ao amor e à santidade; quer em “O Jantar do Bispo” onde o padre (Varzim) diz: “Da nossa própria fome podemos dizer que é um problema material e prático. A fome dos outros é um problema moral”. A atenção e o cuidado eram marcas da coerência de Sophia, bem sentida na casa da Travessa das Mónicas.
UMA BUSCA APAIXONADA “Nuno Júdice recorda a busca por livros que não faziam parte do programa. Nos intervalos, no Liceu Camões, em Lisboa cambiavam-se conquistas literárias. Ora Guterres chegava dizendo, orgulhoso, que tinha acabado de comprar um exemplar de Sophia, Geografia, ora Cintra trazia o Livro Sexto de presente a Nuno Júdice, aniversariante no mesmo dia do amigo encenador. Procurávamos tudo o que fosse contra a ditadura. Livro Sexto que é importantíssimo, tem muitos textos com forte componente política. Sophia marcou toda aquela geração”. O Centro Nacional de Cultura, depois do encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, aquando da atribuição do prémio a Luandino Vieira, tornou-se um lugar de desassossego e de jovens poetas que seguiam o exemplo de Sophia e Francisco de Sousa Tavares. E ele mesmo tem a ideia de pedir a sua mulher que assuma a presidência do Centro, uma vez que havia que mobilizar uma nova geração de poetas e escritores, perante a afronta do regime contra a liberdade de criação e a cultura. E havia ainda que cuidar clandestinamente do apoio aos presos políticos, e Sophia era a melhor pessoa para poder assumir-se como necessário polo agregador. É um tempo decisivo que vai preparar a democracia que se anunciava. Numa dedicatória dirá exemplarmente: “Para o Francisco, que me ensinou a coragem, e a alegria do combate desigual”. E como ensinaram os teólogos do Concílio Vaticano II: “Gostar da Terra é gostar da obra de Deus”. E Eduardo Lourenço verifica que a mitologia grega lhe serviu de inscrição para os seus próprios santos, ao culto da beleza e do natural. “Porque é a ética que concilia a imanência e o presente (o instante e a eternidade), as nossas ações compõem o futuro depois da morte. Se não formos capazes de criar o paraíso no dia a dia ele nunca será encontrado”. A cada passo “a paixão helénica” enche o pensamento poético centrado no ser. Já falámos da centralidade da arte na educação, da ética no bem comum, da atenção e do cuidado, do exemplo e da experiência, e sentimo-lo intensamente quando fomos à Escola que tem o seu nome em Carnaxide, tendo Sophia pedido a professores e alunos que representassem de cor A Menina do Mar. E, ao ouvi-los, emocionada, compreendeu quanta esperança há na arte de educar, como modo de fazer da palavra a expressão do ser.
passaram alguns meses depois de ter decorado o teu rosto passaram alguns dias depois de saber o teu nome, passaram algumas horas depois de deixar o teu quarto. do meu quarto ao teu quarto o tempo é um corredor sombrio que flutua na margem das imagens. encontro-me deitada sobre o manto suave da espera, encontro os meandros de um academismo fétido um manto suave ruidoso que me consome a espera, que me arde pela espera, embora não esteja à espera de nada, concretamente, a não ser, talvez, de mais espera. por dentro atravessa -me uma canalização fragilizada pelos anos. a pele do medo faz-me escorrer pelo quarto ou serão estas paredes rachadas pela humidade que me inundam as ideias? na voz sinto o peso dos móveis e o peso de todas as impressões digitais de todos os outros estudantes que como eu os utilizaram. na boca, a memória salgada de ti, ou a memória salgada daquilo que penso que sejas, daquilo que eu gostaria que fosses, daquilo que eu gostaria de ser com aquilo que eu gostaria que fosses. o medo a contrariar a idade, o elogio do pessimismo pousado sobre a cómoda e já passaram alguns minutos depois de te começar a odiar.
in O Sono Extenso, 2011
Rooms
a few months have gone by since I learned your face by heart a few days have passed since I knew your name, a few hours have gone by since i left your room. from my room to yours time is a sombre passageway floating on the edges of images. i find myself lying on the soft robes of expectation, i find the meanderings of a fetid academicism a soft roaring robe that devours my waiting, that burns through my waiting, though i wait for nothing, in particular, except perhaps more waiting. arteries weakened by the years run through me. the skin of fear slides with me across the room or is it my ideas being flooded by the sampness of thesed cracked walls? in my voice i sense the burden of the furniture and the burden of all the fingerprints of all the other students who, like me, have used it. in my mouth, i taste the salty memory of you, or the salty memory of what i think you are, of what i’d like you to be, of wthat i’d like me to be together with what i’d like you to be. fear is stifling age, delight in pessimism is perched on the chest of drawers and some minutes have elapsed since I started hating you.
ATORES, ENCENADORES (X) EVOCAÇÃO DO CINQUENTENÁRIO DO TEATRO MODERNO DE LISBOA por Duarte Ivo Cruz
O Teatro Moderno de Lisboa representou uma inovação da atividade teatral no ponto de vista simultâneo de repertório, de elenco, mas também de organização dos espetáculos, de espaço e de acesso a um público de certo modo específico e menos habitual na época e na cidade. Tratou-se com efeito de uma experiência de espetáculos em horário menos habitual, para não dizer inovador entre nós, num espaço difícil para a produção teatral – nada menos do que o então Cinema Império - a partir de um repertório algo exigente e difícil – mas sobretudo assente num grupo de atores verdadeiramente excecional da época.
A aventura, por que de uma aventura se tratou, durou ainda assim cerca de cinco anos, de 1960 a 1965: e precisamente, foi em 1965, que a companhia cessou atividades, e com uma estreia essa então muito difícil para a época – “O Render dos Heróis” de José Cardoso Pires.
E bem se entende a dificuldade. Em primeiro lugar, no que se refere ao texto em si mesmo. A peça data de 1960 e constitui, de certo modo com o “Felizmente Há Luar” de Luis de Sttau Monteiro, esta de 1961, como que uma espécie de “introdução” do teatro épico-narrativo de raiz e temática histórica na dramaturgia portuguesa. Com talvez maior “exigência” para a peça de Cardoso Pires, pois representa, ainda hoje, uma difícil conciliação da raiz histórica do temário com uma imensa complexidade e modernidade de espetáculo – e tudo isto numa transposição teatralmente muito feliz.
Espetáculo, sublinhe-se agora, extremamente complexo. Trata-se em primeiro lugar de uma “narrativa dramática em três partes, um epílogo e uma apoteose grotesca” das guerras entre absolutistas e liberais, num envolvimento histórico e político necessariamente muito vasto. E essa complexidade conduz direta e necessariamente a uma abordagem espetacularmente difícil. Basta ter presente que o elenco envolve nada menos do que 27 personagens, para além de figurantes que se possa e queira acrescentar.
Tudo isto numa ação extremamente exigente na perspetiva épico-narrativa: as cenas sucedem-se e alternam num encadeado de conflitos, personagens, situações.
E tudo isto num envolvimento de espetáculo e de interpretação ele próprio, repita-se, também muito exigente, sobretudo a partir da complexidade história e psicológica. Nesse aspeto, a técnica épico-narrativa é extremamente feliz e adequada ao fresco histórico mas também ao envolvimento político, esse então claramente moderno – e como tal, repita-se, muito complexo para a época em que o espetáculo foi encenado…
Ora, é interessante perceber, no contexto do espetáculo, a conciliação do sentido teatral com a técnica do romance, nos textos de ligação, nas falas do narrador e no pormenor e qualidade das notas de cena: uma relação muito feliz entre o teatro e o descritivo de situações, que alternam e constituem um dos grandes fatores essenciais do teatro épico-narrativo.
Passados estes 50 anos, o espetáculo tal como o recordamos, não teria perdido atualidade, por o texto obviamente a não perdeu!
Recorde-se finalmente que a encenação foi de Fernando Gusmão e entre o numeroso elenco destacaram-se Rui de Carvalho, Carmen Dolores, Rui Mendes, Morais e Castro, Fernanda Alves, Fernando Gusmão e tantos mais.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 11.02.15 neste blogue.
179. GENERALIZAÇÕES SOBRE O CONSERVACIONISMO AMBIENTAL
Perante o progresso científico, tecnológico e industrial, o conservacionismo ambiental apela à preservação de territórios e espécies naturais, mantendo-os libertos de mão humana.
Daí o apoio e incentivo a áreas protegidas, parques e reservas naturais.
Se assim é, e há necessidade que o seja para bem do nosso planeta, existe uma mutação ideológica no sentido de se insistir na manutenção do adquirido e não na transformação do que já existe.
Esta posição conservacionista em relação à natureza, está a generalizar-se à esfera económica, financeira, política, social, entre outras. Há cada vez mais a perceção, nomeadamente nos países mais desenvolvidos, de que não é possível uma prosperidade permanente, de que não é exequível melhorar o nosso bem-estar significativamente a nível do estado social, segurança e equilíbrios ambientais.
Esta ideologia do futuro que sustenta a defesa do existente, é transversal a todos os quadrantes ideológicos, de direita, do centro ou de esquerda, tendo a sua origem no foro do pensamento ecológico.
Este conservacionismo ambiental, apesar de conservacionista na sua origem, é progressista na sua sobrevivência e luta a ele associada, uma vez que há nele um equilíbrio entre a assimilação e constatação dos factos, por um lado, e a contestação e a necessidade de mudança, por outro.
Assim, esta simbiose também se pode generalizar ao que se convencionou chamar direita e esquerda, dado que ambas são sensíveis e não indiferentes ao conservacionismo ambiental.
A tendência para a conservação do que existe, é premente nos países mais prósperos a nível mundial, não nos subdesenvolvidos ou mais pobres, vivendo estes um momento histórico diferente do nosso, onde aquilo que nós desejaríamos de conservar é aquilo por que eles estão a lutar e querem alcançar.
De todo o modo, mesmo nos países mais evoluídos, este conservacionismo terá de ser repensado à medida que novos estudos forem feitos pelo cosmos, potenciando novas descobertas de uma era espacial que nos levará mais para além do aquém.
Unir vida através de todos os tipos de linguagem é compreender a razão de nós a nós próprios, e de nós, na proposta ao mundo.
É também o cumprimentarmo-nos de igual para igual na imensa diferença.
Todavia, vivem-se tempos em que se questiona pouco, o grau elevado do imperfeitamente livre que a liberdade tem estado a atingir, e que já condicionou, em muitos locais, o ato de narrar pretendendo-o como ato de respiração censurada.
Os próprios escritores, os músicos, os estudiosos, os pintores, os arquitetos, os físicos, entre todas as vozes indispensáveis à lúcida vida, quando hoje se opõem ao fanatismo ou à ortodoxia, são acusados de perturbarem as pessoas cujo desejo é o de serem absolutamente comandadas, tal o seu grau de indigência que não sabe discernir sequer a indignidade que tal comportamento engloba.
Contudo, a realidade da não-vida que se espraia pelo mundo, já vinha dando sinais de sucesso, de há muito.
Não será que se descurou o quanto a bestialidade traz consigo a chegada das armadilhas dos juízos, exímios na cartilha de embolar verdades e mentiras, destinadas à boa digestão de fatias da opinião pública, incapazes, enfim, de viver numa sociedade diferente da que as ordena no fio de uma paz de navalha.
As mentiras deliberadas têm sido mascaradas de que os que as podem desmascarar são os próprios mentirosos, e assim estes continuam a fazer o seu trabalho.
Diríamos que nunca deveria ter tido lugar a desatenção ou a complacência ao ar impuro, mas respirável, ou porque a arte original - a que revoluciona -, nunca é criada em meio seguro e por essa razão, também tanto se tolera.
Acode-nos pensar que a narrativa é do que queremos falar e não do que nos impede de o fazer.
Somos e seremos sempre responsáveis, se um cartão de racionamento passar a ser visto como um tesouro.
Que nos acuda, no mínimo, a lembrança do que o Rei Lear disse a Cordelia,
A derrota de Napoleão na batalha de Trafalgar levou o Imperador francês a abandonar o plano de invasão da Grã-Bretanha e a conceber como alternativa o Bloqueio Continental, visando asfixiar economicamente o inimigo, tão dependente do comércio marítimo. Em novembro de 1806, chegado a Berlim, Bonaparte proclamou o fecho de todos portos do velho continente aos navios britânicos. E em Tilsit, deu conta ao Imperador russo do seu objetivo de depor as casas reais da Península Ibérica, resistentes ao bloqueio. Conhecemos a História, as breves hesitações do governo de Lisboa, a sobrevivência do Reino, a posição britânica, o bombardeamento de Copenhaga, em setembro de 1807, para que a frota dinamarquesa não caísse em poder da aliança franco-russa e a decisão portuguesa de partir.
Estamos no coração da obra de António Alves-Caetano A Emergência do Liberalismo em Portugal no Ocaso do Antigo Regime (1796-1822), que merece uma leitura atenta, uma vez que aí se desenham o destino trágico de Napoleão, a reconfiguração da Europa oitocentista e futuro de Portugal com a independência do Brasil e o nascimento do constitucionalismo liberal. Há dúvidas e contradições, mas a convenção secreta anglo-portuguesa de 22 de outubro de 1807 operou um golpe de teatro, ou seja, a retirada da Corte portuguesa para o Brasil. É verdade que houve uma espera, mas tudo se passou de modo que a chegada de Junot tenha ocorrido felizmente a destempo, quando os navios importantes, militares e mercantes, já tinham partido rumo ao Atlântico Sul. É certo que as ordens deixadas pelo Príncipe D. João eram para que os invasores fossem acolhidos com benignidade, como Domingos António de Sequeira interpretou à letra, mas a verdade é que a águia imperial, que chegava muito fragilizada, sem o saber estava ferida de morte. Abria-se o caminho da independência do Brasil e terminava o pacto colonial, com todas as consequências económicas e políticas.
É assim importante o estudo sobre a forma como o bloqueio de Napoleão afetou o movimento de entradas e saídas dos navios mercantes no porto de Lisboa, demonstrando os efeitos negativos não só da abertura dos portos do Brasil à Inglaterra, mas também os condicionalismos impostos pela guerra europeia na quebra das produções agrícolas e industriais do Reino. Porém, as importações inglesas e americanas invadiam-nos, ainda que muitas fossem destinadas ao consumo das tropas britânicas. E deve recordar-se o outro importante estudo do autor sobre “Os Socorros Pecuniários britânicos destinados ao Exército Português”, muito esclarecedor sobre o tema. Contudo, mesmo depois da vitória definitiva sobre os franceses (1811), a Marinha portuguesa, outrora dominante, veio a perder influência, também por ausência das reformas necessárias. Já a foz do Douro continuou com um movimento significativo relacionado essencialmente com o trato do vinho do Porto.
O livro de António Alves-Caetano contém uma análise rigorosa dos momentos fundamentais da Guerra Peninsular, desde a chegada de Junot até à revolução de 1820, com o despontar do movimento liberal, apresentando a conjugação da resistência nacional contra o invasor com a formação de uma consciência de soberania constitucional. O livro apresenta ainda a análise das ingerências britânicas em Macau na era napoleónica, do papel desempenhado por Miguel de Arriaga como Ouvidor em Macau ou da vitória naval na batalha do Boca do Tigre (1809-10), esclarecendo o autor o papel do Conde de Farrobo no apoio decisivo à causa liberal de D. Pedro, contra injustas difamações. E assinale-se a justíssima referência a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, figura central na organização das Finanças Públicas portuguesas, aquando da fundação do Ministério da Fazenda. No fundo, a emergência constitucional significava a busca da liberdade pátria e a resposta aos ingentes desafios perante as profundas mudanças europeias.