Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Na encíclica “Pacem in terris”, de 1963, há quase sessenta anos, o papa João XXIII dizia que a afirmação da mulher era um dos sinais dos tempos. Podemos reconhecer que essa novidade epocal é também uma semente do Evangelho. Esta afirmação da mulher e este caminho de afirmação eclesial e social da mulher é algo que foi também consequência do Evangelho.Vemos, na literatura bíblica, que a teologia da Criação não separa o homem da mulher. E nas primeiras comunidades [
cristãs] as mulheres têm um papel muito significativo. Basta ler, nas Cartas de Paulo, as mulheres que aparecem como protagonistas para percebermos como o que está escrito aos Gálatas é bem verdade: não há macho nem fémea, somos um só em Cristo. Isto não significa anulação da sexualidade, mas pelo contrário: neste corpo místico de Cristo que é a Igreja não estão apenas os homens – estão os homens e as mulheres. Desde o princípio.
O papa Francisco percebeu que esta é uma questão central do nosso tempo. Uma das primeiras vezes foi em 2013, em julho, ao regressar da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, dentro do avião; questionado, respondeu que a Igreja tinha de abrir um processo de reflexão, um estaleiro, um laboratório de pensamento.
Não basta pensar uma ecologia integral; precisamos também de uma eclesiologia integral. Não podemos deixar a maioria da humanidade a não se sentir protagonista da vida da Igreja.
A presença da mulher é fundamental. O papa Francisco está a abrir caminhos e a pedir a todos nós que reflitamos, os teólogos possam investigar, que se possa tornar às origens da Igreja, perceber como era no princípio, analisar.
Os passos que o papa Francisco tem dado são de grande encorajamento para que possa acontecer isto: a responsabilidade na Igreja e a responsabilidade pelo Evangelho não seja apenas questão de homens, mas de homens e mulheres, nas diferentes dimensões, diferentes ministérios, numa complementaridade certamente, segundo a tradição da Igreja seguramente, mas que a Igreja é chamada a fazer um caminho e que o papa Francisco introduz essa tensão para darmos passos, fazermos reflexão nesta matéria é para todos muito claro.
Card. José Tolentino Mendonça Fonte: Jesuítas Brasil Edição: Rui Jorge Martins
Luís Filipe Castro Mendes cita Manuel António Pina no início de Tentação da Prosa (Exclamação, 2024) - “Poesia, saudade da prosa”, e assim se compreende o ofício da escrita. E Francisco Seixas da Costa diz, na nota inicial: “conhecia-lhe já a prosa, a sua limpidez, a riqueza vocabular, o fluir fácil e elegante no estilo, saído de alguém para quem a produção de textos constitui um óbvio ato de prazer”. E estas crónicas “espelham alguém (…), já sem algumas das ilusões geracionais, mas com notas permanentes de esperança e de otimismo”. E assim há “uma imensa e invejável felicidade” na busca dos acontecimentos e das leituras… “É das coisas miúdas que se fazem os grandes encontros”. A tentação da prosa é assim um exercício de gozo íntimo. Quando lemos: “gostava tanto de ver Samarcanda”, é esse deslumbramento das cidades desejadas, mesmo que apenas na imaginação, que nos enche de curiosidade e que o escritor, que nunca deixa a sua veia poética, vai recordando. E embrenhamo-nos em Atlas escolares, nas rotas míticas, no caminho de Marco Polo, nas cidades de família – Trebizonda, Tombuctu, Mompracém…. Sim, é a pura literatura. Depois, o cronista confessa que ainda é de Paris, que a francofilia lhe entra nos poros, que ouriços e raposas partilham a humanidade e que não esquece “o sino da minha aldeia”, aqui no largo de S. Carlos, de onde Pessoa nunca saiu verdadeiramente. “Gosto de palavras!” e a consequência torna-se clara.
As recordações sucedem-se. “Viena é uma cidade maravilhosa, capital de um império que deixou de existir logo que atingiu o seu apogeu, criando uma pomposa arquitetura cenográfica para perdidos fastos imperiais. Sem dúvida, a reação modernista da Viena de 1900, que deixou os fundamentos da cultura da suspeita de si própria que foi a nossa no século XX e da ligeireza de viver frivolamente por dentro da mais funda angústia, que parece ser o espírito do nosso século XXI, projetou-se bem para além do seu momento histórico. Que seria a modernidade sem Freud, Wittgenstein, Musil, Mahler, Schoenberg?” Aí nos encontrámos, na meditação diante de uma livraria. E vem a defesa dos jornais. “Fazem-nos falta”. E é a procura da verdade que está em causa, mais do que oração do homem moderno em Hegel. No confronto entre o Apocalipse e a promessa, o otimismo da vontade o pessimismo da inteligência, os direitos sociais e a diferenciação positiva. E o diplomata confessa-se, perante um poema de Kavafis: “Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram / E umas pessoas que chegaram da fronteira / dizem que não há sinal de Bárbaros”… Mas a conclusão é desesperada: “E agora que vai ser de nós sem os Bárbaros? / Essa gente que era uma espécie de solução”.
Os livros e os autores aconchegam as angústias: Eduardo Lourenço, como ausente de si mesmo, Eça de Queirós em desencontro com Ramalho, a casa de Unamuno, Teixeira de Pascoais, poeta forte, redescoberto, o olhar impiedoso de Vasco Pulido Valente, e ainda Helder Macedo, Eugénio de Andrade, Fernando Echevarria. E fica sentidamente a memória daqueles que perdemos: Jorge Sampaio, José Manuel Galvão Teles, Leonor Xavier, Jorge Silva Melo, Ana Luísa Amaral e Nuno Júdice. “Escrever é procurar uma cumplicidade com quem nos lê e se não a encontramos, falhamos”. Sentimos esse mistério, devendo perceber porque estamos zangados e porque recusamos a indiferença.
José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos assinam o prefácio à Antologia de Adélia Prado Tudo o que existe louvará (Assírio e Alvim, 2016) de leitura indispensável.
Alberto da Costa e Silva disse de João Guimarães Rosa que escreveu um romance, novelas e contos como se fizesse poesia, preferindo ser “expressivo, perscrutador e lúdico”. Lembrei esta afirmação perante a atribuição do prémio Camões a Adélia Prado, em simultâneo com o anúncio do prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Notamos, de facto, na personalidade literária desta mineira inconfundível semelhantes características que Alberto exprimiu. Também Adélia, ressalvadas as distâncias, tem as qualidades únicas desse extraordinário cultor da língua comum como ninguém mais fez. E lembramos aquele começo da “partida do audaz navegante” (nas Primeiras Estórias) – “Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha aberta, de alpendre, atrás da pequena casa”. E se Guimarães Rosa assim escreveu, Adélia Prado encanta-nos no mesmo tom: “Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras. / As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha / de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas / fora do seu tempo desejadas”.
José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos afirmam no prefácio à Antologia de Adélia Prado Tudo o que existe louvará (Assírio e Alvim, 2016) que «o religioso sem corpo é triste, incompreensível e anímico, porque é com o corpo que se ama a Deus. O corpo é que nos abre, como janela, para a transcendência: Deus só é experimentável a partir do corpo e na relação com o corpo». E somos levados à leitura da poeta galardoada com o Prémio Camões deste ano: «Tudo o que existe louvará. /Quem tocar vai louvar, /quem cantar vai louvar, /o que pegar a ponta de sua saia /e fizer uma pirueta, vai louvar. /Os meninos, os cachorros, / os gatos desesquivados, / os ressuscitados, /o que sob o céu mover e andar». E não esquecemos o que disse Leonor Xavier, que se estivesse connosco estaria feliz pela justiça deste reconhecimento: “Em verso e prosa, Adélia descobriu a mistura entre as pequenas tarefas de casa, as pessoas que a rodeiam, as coisas e os bichos, o sentir e o pensar, o silêncio da dúvida, a presença de Deus imediata e consciente, na inteireza da sua história de mulher”. E não esquecemos a premonitória opinião de Carlos Drummond de Andrade sobre alguém não conhecido, cujo valor se tornaria indiscutível: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. De facto, a originalidade é uma marca que a torna um especial exemplo de quem usa as palavras, melhor que ninguém para exprimir o que sente e como vive o mundo contemporâneo. E, como disse Pedro Mexia, «os seus textos, que evocam com frequência um meio provinciano e pobre, têm (…) algumas afinidades com o Sul profundo da ficção de Flannery O’Connor, mas enquanto a americana era violenta e sofrida, a brasileira é vitalista e sensual. Poeta de Deus e do corpo, Adélia é também poeta do corpo divinizado e do Deus encarnado». Pessoalmente, é desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, mas seríssima no entendimento das coisas essenciais e por isso na sua escrita o comum e o banal encontram-se, reclamando a transcendência.
UM CASO MUITO ESPECIAL Nascida em Divinópolis (Minas Gerais) em 1935, onde vive, foi professora do ensino básico e formou-se em filosofia. Em 1976, publicou Bagagem, obra que teve uma excelente reação dos leitores e da crítica e que lançou a poeta no mundo da melhor literatura. Em 1978 lançou O coração disparado, também muito bem recebido e galardoado com o Prémio Jabuti. E o sucesso literário permitiu a afirmação de um conjunto de obras, todas elas marcantes, que manifestam o testemunho de uma mulher, profundamente solidária com a importância do reconhecimento da liberdade de pensamento, da igualdade de género e da valorização do quotidiano e da convivialidade. São exemplos desse entusiasmo criador: Soltem os cachorros (1979), Cacos para um vitral (1980), Terra de Santa Cruz (1981) e o romance Os componentes da banda (1984), além de O Pelicano (1987) e A faca no peito (1988). Em 1994, após alguns anos de silêncio poético, ressurge com o livro de prosa O homem da mão seca, sendo lançados no ano de 1999 o romance Manuscritos de Filipa, e o livro de poemas Oráculos de maio. Em 2010 publicou A Duração do Dia e recebeu os Prémios Literário da Fundação Biblioteca Nacional e da Associação Paulista dos Críticos de Arte, publicando em 2013 Miserere. Agora, a atribuição do Prémio Camões reforçou o cânon feminino das literaturas da língua portuguesa, uma vez que a escrita de Adélia Prado é marcadamente ligada ao reconhecimento da importância da mulher na literatura e na vida. Por isso disse: “Fiquei mais corajosa, / igual a mulheres que julgava levianas / e eram só mais humildes” ou “Tenho labirintite. Amei Aristóteles com fervor. / E por longo tempo deixei-o por Platão. /Enfadei-me, saudosa de carne e ossos, / acidez de sangue e suor, / O que deveras existe nos poupa perturbações, / sou uma vestal sem mágoas. / Terei o que desejo, carregando a minha cruz / e morrendo nela”. E Mia Couto confessa o encantamento que sentiu ao ler Adélia Prado, que encontraria pessoalmente na representação de “O último voo do flamingo” em Belo Horizonte, considerando tal encontro como mágico.
Há, de facto, sempre um lado de magia na escrita de Adélia, cultivando permanentemente a esperança de uma alegria inesperada, como diz em “O Homem Humano” de Terra de Santa Cruz: “Se não fosse a esperança de que me aguardas com a mesa posta / o que seria de mim eu não sei. / Sem o Teu Nome / a claridade do mundo não me hospeda, / é crua luz crestante sobre ais”. E, na relação com as palavras, compreendemos que é a vida e o que ela tem, que sobretudo importa: “O que existe são coisas, / Não palavras. Por isso / te ouvirei sem cansaço recitar em búlgaro / como olharei montanhas durante horas, / ou nuvens. / Sinais valem palavras, palavras valem coisas, / coisas não valem nada. / Entender é um rapto, / É o mesmo que desentender…”. E os citados prefaciadores da Antologia que seguimos recordam que a poeta provoca escândalo, porque sobre ela recai “a acusação de ser demasiado religiosa e demasiado provinciana”. Mas, como Drummond bem viu, mais do que tudo, criou “uma obra poética vital que a coloca, com inteira justiça, entre as grandes vozes do nosso tempo: instigadora na proposta, destemida, na invenção antilírica até ao osso e contudo ardente, sem pingo de condescendência, mas magnificamente sensorial, dinamitando as zonas de conforto onde a poesia moderna se instalou, mostrando que a ortodoxia é uma forma radical de heterodoxia e a mais ínfima reverência deve ser mais temida do que a maior blasfémia”…
uma sebe de hidrângeas em que o azul explode faz a moldura deste verão para o teu retrato e contra o verde largo das folhas, sob o vento, ondula o véu, ondula o véu de leves dobras a envolver-te a cintura,
e a tua pele recolhe a luminosa serenidade da manhã como um tratamento de beleza, um bálsamo benfazejo que não seja para mais ninguém. e penso: como eu andava ao deus-dará e tu estavas aqui, nesta casa das nuvens, a respirar no seu recato
modulado. fosse o destino, o fado, o acaso, a sina, tu estavas aqui, desde ontem, ao lusco-fusco, entre as surdinas de sombra que cresciam pelo vale e a música severa de que se engendram as palavras. ah, se eu morresse
agora, só diria, em-mim-mesmado, como adriano, ó alminha, brandinha, vagabunda, suspende a clepsidra e deixa-te ficar um pouco mais comigo, só para eu poder contemplá-la e depois acabar serenamente,
entre a resignação do estóico, um estremecimento de ternura, um fulgor grave do seu olhar, a faiança azul das hidrângeas e um cheiro de alecrim, ao findar agosto de dois mil e nove, quando o vento se torna mais bravio.
in O Caderno da Casa das Nuvens, 2010
wild is the wind
a hedge of hydrangeas bursts in blue setting this summer’s frame for your portrait and against the wide green of the leaves, in the wind, is the waving of the veil, the waving of the veil folding lightly around your waist,
and your skin takes in the luminous serenity of the morning like a beauty treatment, a beneficial balm destined for no one else. and i think: the ways i’ve wandered and you were here, in this house in the clouds, breathing inside its modulated
shelter. be it by destiny, fate, chance, fortune, you have been here, since yesterday, in the dusk, between the softness of shadows that spread through the valley and the severe music out of which words are begotten. ah, were i to die
now, i would just say, self-entranced, like Hadrian, o, gentle, meek, vagrant soul, suspend the hourglass and stay a moment longer, that i may contemplate her and end at peace,
amid the stoic’s resignation, a tremor of tenderness, the grave shine of her gaze, the blue china of the hydrangeas and the smell of rosemary, in the ides of august of two thousand and nine, when the wind becomes wilder.
ATORES, ENCENADORES (XII) DESCENTRALIZAÇÃO TEATRAL - O ÚLTIMO ESPETÁCULO DE AMÉLIA REY COLAÇO por Duarte Ivo Cruz
Há uma certa simbologia, perdoe-se o eventual exagero da expressão, na despedida de cena de Amélia Rey Colaço. Pensemos da sua vasta e exemplar carreira, e particularmente, nas dezenas de anos em que dirigiu a companhia do Teatro Nacional no D. Maria II, no Avenida, e episodicamente noutras salas, além de tournées que incluíram o Brasil. A sua obra e a sua ação em termos de renovação da cena nacional é indiscutível, para lá de oscilações e opiniões, que também não faltaram. E a sua versatilidade como atriz não confirma uma crítica na época habitual – a de que fazia papeis de alta sociedade… lembro ao calhar, para o desmentir, a formidável ama no “Romeu e Julieta” de Shakespeare.
Mas aqui, quero evocar a insólita despedida de cena de Amélia Rey Colaço.
Foi em 1985, tinha 87 anos. E foi num teatro “marginal”, hoje desativado para não dizer desaparecido para a atividade teatral – e aproveitamos também para o evocar – que pela ultima vez Amélia subiu à cena: no Teatro Portalegrense, no papel da Rainha D. Catarina em “El Rei Sebastião” de José Régio.
Este Teatro Portalegrense, projeto do arquiteto José de Sousa Larcher datado de 1856, manteve-se em atividade durante mais de um século, com significativos momentos de expressão literária e artística. Lembre-se que em Portalegre vivia e lecionava José Régio. Lá se estreou em 1935 o “Sonho de uma Véspera de Exame”, de Régio em récita de finalistas do ensino liceal – e um desses alunos era o futuro ator Artur Semedo. E lá voltaria Régio, o Dr. José Maria dos Reis Pereira professor do Liceu de Portalegre, a ser episodicamente representado.
O Portalegrense deixou de funcionar com regularidade como teatro. Mas ficou o edifico, sucessivamente “aproveitado” em atividades insólitas para um teatro do seculo XIX: templo religioso e até ringue de patinagem!
Evoquemos então atores e atrizes nascidos e relacionados em termos pessoais e profissionais com Portalegre.
Sousa Bastos, na sua prosa peculiar, cita em particular Beatriz Rente: “nasceu em Portalegre em 1859 esta rapariga de olhos grandes que todos achavam bonita (…) Aos 15 anos de idade estreou-se no Teatro D. Maria “e depois passou para o Ginásio “fazendo sempre primeiros papéis com bastante agrado”. O pior é que “saindo deste teatro começou a sua decadência no Teatro da Rua dos Condes; apesar do que foi classificada em primeira classe para o teatro de D. Maria até que a morte a roubou em 1906” assim mesmo, numa prosa “teatral” muito típica do “Diccionário do Theatro Português”…
O outro ator de Portalegre, que acima referi, é Artur Semedo (1925-2001). Grande Prémio do Conservatório Nacional e Prémio de Revelação da Crítica, estreou-se no Teatro Ginásio em 1949 num dramalhão de Cristiano Lima, “O Preço da Honestidade”. Estudou em Itália e prosseguiu uma vastíssima carreira no teatro e sobretudo no cinema, como ator e realizador em Portugal, Espanha e Brasil.
Mas tudo isto veio a propósito do último espetáculo de Amélia Rey Colaço, ocorrido como vimos em Portalegre: homenagem ao portalegrense por opção que foi José Régio, mas também homenagem a uma sala oitocentista de teatro que há muito deixou de o ser.
E referência a uma política de património e de descentralização teatral e cultural que é essencial manter e desenvolver.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 25.02.15 neste blogue.
São especialistas em tudo, dão palpites e pitaco sobre tudo, são “sabichões” que aparecem na tv, rádio, imprensa escrita, redes sociais, nos media em geral.
Diz-se que são formados em “generalidades”, falam, entretêm, escrevem e comentam tudo. Há quem os apelide de “comentadores”, “palpitólogos”, “achistas”, porque “comentam”, “palpitam” e “acham” isto e aquilo.
Formatam o pensamento e são uma “elite” que ninguém elegeu.
São um sinal da liberdade de expressão e um custo a pagar pelo imperativo de os canais televisivos, radiofónicos e imprensa em geral, terem de preencher o seu tempo 24 horas por dia.
Podem ser muito bons, bons, medianos, medíocres, maus ou muito maus, consoante o contexto, a perspetiva e a subjetividade de quem os avalia e a recetividade dos seus destinatários.
O seu conceito pressupõe um presumível conhecimento universal, independentemente de se ter ou não qualquer fundamentação, mesmo que uma mera especulação.
Maioritariamente peremptórios, taxativos, assertivos e arautos de juízos categóricos, aparentam ser bem-fadados por iluminadas e inabaláveis certezas, favorecidos pelo dom do conhecimento instantâneo.
Num mundo de inquietações e interrogações, onde há a convicção de que a verdade está para lá daquela que convencionámos ter como norma para vivermos em sociedade, em que quanto mais se aprende, mais se tem dúvidas, não faz sentido falar em tudológos (por mais sonante que seja soletrá-lo). Ou de tudologia, uma não ciência. Em França chamam-lhes editocratas: editorializam a realidade, colocando-a na agenda mediática.
Perante a dúvida, a incerteza, o questionamento, a interrogação e o mistério da vida, falar em tudólogos, em especial do pensamento, é um contra-senso, é ser especialista, ao mesmo tempo, em tudo e em nada, num permanente confronto e contraditório entre ação, contestação, réplica e tréplica, em que a “sentença” é a verdade possível de uma opção em que temos de ser nós a decidir uma verdade que temos como real.
Antes “comentadores”, “especialistas”, “analistas”, que a babel dos “tudólogos”, sem desprimor para a flexibilidade e riqueza vocabular da língua portuguesa.
“Aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens.” Heine
Tragicamente, existem muitos processos de queimar livros, de espremer vidas lentamente confundindo-as, levando-as à destrutibilidade, fazendo-as crer que nunca saberão nada nas suas limitações, na questão das origens, na questão do amor, na questão dos deuses, na questão da liberdade.
Porém, acreditamos que as pessoas que compreendem os perigos, conhecem a jugular da condição humana, as lentes que podem dobrar a luz.
Então, há que não esquecer o quanto a história cultural esclarece os fascínios, as repulsas, os medos, todos espécie de convidados de nós próprios, nós, os anfitriões de famílias e outras instituições-celebrações, e parte integrante do permitir e do julgar, impiedosos e vulneráveis, confinados e confinando num sistema que uma vez dentro, parece não haver saída, mas há! E, a propósito, a partir dessa saída não se serve nenhum guru.
Em várias instâncias internacionais, cresce a inquietação com a escalada do da guerra na Ucrânia, a perspetiva de eternização do conflito, e a catástrofe humanitária que poderá aumentar significativamente. O Papa Francisco deixou a mensagem veemente: “O meu apelo dirige-se, em primeiro lugar, ao presidente da Federação Russa, pedindo-lhe que pare, também por amor ao seu povo, essa espiral de violência e morte. Por outro lado, entristecido pelo imenso sofrimento do povo ucraniano na sequência da agressão sofrida, dirijo um apelo igualmente confiante ao presidente da Ucrânia para que esteja aberto a propostas sérias de paz”. E acrescentou: “A todos os protagonistas da vida internacional e aos responsáveis políticos das nações, exorto a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para pôr fim à guerra em curso, sem se deixarem arrastar para escaladas perigosas, e a promover e apoiar iniciativas de diálogo. Por favor, deixemos que as gerações mais jovens respirem o ar saudável da paz, não o ar poluído da guerra, que é uma loucura!”.
Andrea Riccardi, o fundador da Comunidade de Santo Egídio, lamentava que ninguém dê ouvidos à voz do Papa. “Não vi em lado nenhum o desejo de encontrar um caminho de paz. E estou muito preocupado porque, no mundo pós-globalizado, as guerras têm uma caraterística particular: eternizam-se”, afirmou.
Riccardi recusa a ideia de que falar de paz é ser pró-Putin. “Falo de paz – sublinha – porque a paz deve ser um objetivo que nos propomos com energia, para que a palavra paz não seja removida do vocabulário”. Esclarece, por outro lado: “Quando falo de paz, penso sobretudo no povo ucraniano bombardeado. Penso nos 7 milhões de ucranianos, a maioria mulheres e crianças, que deixaram o país e se tornaram refugiados no mundo; penso nessa nação que corre o risco de ser destruída”. O envio de armas para a Ucrânia “é correto porque ajuda Kiev a defender-se, mas isso apenas cria equilíbrio no conflito”, enquanto “é preciso algo mais: é necessária a diplomacia da paz”.
Mario Giro, ex-vice-ministro dos negócios estrangeiros de Itália e também membro da Comunidade de Santo Egídio, procura explicar o que não funcionou para que a guerra na Ucrânia fosse desencadeada por Putin, procurando igualmente olhar para o futuro. Para ele, o Ocidente, que respondeu prontamente ao pedido de ajuda do governo ucraniano, vê-se agora perante a urgência de equacionar perguntas como estas: “Como pôr fim a esta guerra? O que haverá depois de ela acabar?”
Recordando que houve já outros conflitos em que foi possível pensar na paz, antes de a guerra acabar, Mario Giro defende que “é preciso pensar em construir um amanhã enquanto ainda se está a combater”, respondendo a uma pergunta-chave: “como reconstruir na Europa a convivência com a Rússia, no futuro?”.
Este ponto é justificado deste modo: “Certamente, não podemos ignorar este grande país, o maior do mundo, rico em recursos naturais e culturais, cheio de problemas dentro e fora de suas fronteiras. (…)
A questão das fronteiras deste país é um tema enorme, não apenas em relação à Ucrânia. Não podemos ignorá-lo. O Ocidente europeu não poderá permitir-se uma guerra permanente com a Rússia, sob todos os pontos de vista: económico e de segurança. Os Estados Unidos veem a Rússia de uma forma inevitavelmente diferente da Europa. Basta olhar para o mapa: entre os dois grandes países, existe um oceano a meio”.
Mario Giro reconhece, no entanto, que, no estado atual das coisas, nenhuma das partes diretamente envolvidas na guerra se quer sentar à mesa das negociações, já que isso pressuporia disposição para fazer cedências. Mas esse facto não deveria impedir que as instâncias internacionais inscrevessem a busca da paz na agenda dos encontros.
Voltando a Andrea Riccardi, é preciso “É preciso uma imaginação criativa para sair deste conflito. Parece impossível agora, mas a paz nunca é impossível. Devemos alcançar o inatingível. Perante a ameaça atómica, é necessária uma política de paz”. “A paz é urgente e necessária”, reconhece o Presidente da República italiano, Sergio Mattarella. Mas passa, a seu ver, por “um restabelecimento da verdade, do direito internacional, da liberdade do povo ucraniano”.
(Elementos da Comunidade de Santo Egídio, que agradecemos)
Foi longo o meu conhecimento de Joana Marques Vidal e sempre tivemos uma cooperação muito profícua. Em tudo o que se envolveu, foi uma cidadã e uma profissional sempre empenhada na realização da justiça como concretização dos direitos humanos e da dignidade pessoal de todos. Com inteligência, considerava que mais importante do que as declarações bombásticas sobre qualquer tema, importava sobretudo ponderar as consequências sociais e humanas de qualquer fenómeno. Nenhum acontecimento poderia ser encarado apenas na sua aparência. A complexidade obriga à ponderação de razões em presença e a imperfeição humana tem de estar presente em qualquer interpretação e nas suas consequências. Não é a sociedade perfeita que visamos, mas a capacidade de podermos ser amanhã melhores do que hoje.
Desde que nos conhecemos, encontrei em Joana Marques Vidal uma atitude de grande humanidade e de consciência firme da justiça como séria ponderação ética – compreendendo, prevenindo, combatendo a mentira e a ilusão. Por isso, desde sempre foi uma defensora da especificidade das difíceis questões ligadas à família e aos menores, como salientou Pedro Strecht na última homenagem que lhe prestou. Ainda antes de trabalharmos juntos, foi no âmbito do apoio às vítimas na APAV que primeiro nos encontrámos. Perante tão complexo tema, deparei-me com a preocupação permanente da cidadã e da magistrada em estudar as situações mais difíceis, em antecipar os riscos, garantindo a denúncia atempada das situações e a proteção das pessoas atingidas ou em perigo de morte.
Todos nascem e devem viver livres e iguais em dignidade e direitos, eis o que permanentemente estava presente na sua ação. Depois, como Procuradora Geral Adjunta no Tribunal de Contas nos Açores, testemunhei diretamente a entrega plena ao serviço público, que reforçou os laços de amizade e admiração, que se prolongaram, quando assumiu a função de Procuradora-Geral da República, numa cooperação muito forte no reforço da jurisdição e das contas e no apoio ao Conselho de Prevenção da Corrupção, em especial com a criação dos planos de prevenção de riscos. Conversámos longamente em especial sobre a preocupação de recusar uma conceção demagógica do fenómeno da corrupção, como se a sociedade não fosse toda vulnerável a algo que começa num favor e acaba num crime. Daí a exigência da prevenção e de uma atenção especial a todos os indícios, privilegiando as decisões colegiais, combatendo os conflitos de interesses e apostando na boa e exigente prestação de contas. Do mesmo modo, concordámos na necessidade de restringir a figura do enriquecimento ilícito ao dinheiro público, para impedir a inconstitucionalidade sobre o ónus da prova, privilegiando a figura do responsável público como fiel depositário… Com grande serenidade, Joana Marques Vidal sabia bem que eficiência e justiça são inimigas da espetacularidade. E tive o gosto de trabalhar com ela até ao fim, na Universidade do Minho, nas presidências do Conselho Geral e do Conselho de Curadores. Mantivemos a convergência de preocupações e de métodos. E foi com grande desgosto que tomei conhecimento da doença e do seu tremendo desenlace. É, pois, uma saudade profundamente sentida que aqui exprimo, lembrando trinta anos de conhecimento, com experiências comuns que jamais esquecerei, pelos ensinamentos recebidos e pelo exemplo inesquecível.
«Pessoa Revisitado» de Eduardo Lourenço constitui uma obra referencial do grande ensaísta, que acaba de ser reeditada pela Gradiva e constitui uma sugestão essencial de leitura para este Verão.
PEÇA-CHAVE O reconhecimento da genialidade de Pessoa é uma marca indelével que encontramos na obra que aqui se apresenta. Pessoa Revisitado – Leitura Estruturante do Drama em Gente constitui uma peça-chave na obra de Eduardo Lourenço, da qual resulta a ideia inovadora e original de que os heterónimos pessoanos não são fragmentos de um puzzle, cuja coerência o leitor poderia reconstituir com referência a alguma instância exterior à obra, mas sim à fragmentação de uma totalidade identificada na poesia do próprio Fernando Pessoa, ainda antes do nascimento de Caeiro, Campos e Reis, como tem salientado Pedro Sepúlveda (in Obras Completas, IX, Pessoa Revisitado – Crítica Pessoana – I (1949-1982)- Fundação Calouste Gulbenkian, Introdução, pp. 13 e ss.).
Nesse sentido, a famosa questão da génese dos heterónimos passa a ser colocada no plano textual, com uma perspetiva orgânica, partindo de uma ideia não só de rutura, mas também de continuidade, no tocante a motivos e temas, ligando os textos heteronímicos entre si e a uma fase anterior. E o percurso desenhado por Richard Zenith na sua biografia de Pessoa ilustra bem esta ligação. É assim que se compreende que Eduardo Lourenço tenha a preocupação de tornar claro que se demarca de uma visão psicologista na interpretação da personalidade poética de Pessoa. Para si a psicanálise é mítica, centrada no texto e não no sujeito criador dele. E Robert Bréchon afirma que Pessoa Revisitado devolve à poesia pessoana o seu poder de subversão. Há, deste modo em Eduardo Lourenço, uma redescoberta de Pessoa, que o Livro do Desassossego irá confirmar, numa coerência e num sentido de conjunto, que Eduardo Lourenço intuiu de forma pioneira magistralmente.
Aproximando-se de Adolfo Casais Monteiro ou de Maria Aliete Galhoz, o ensaísta considera que na obra policêntrica estamos perante um sistema de múltiplos sentidos, que corresponde a um todo. De facto, a aparente multiplicidade e o seu carácter supostamente contraditório da obra plural correspondem a uma impressão de totalidade. E neste ponto a referência Walt Whitman merece especial atenção. Tradicionalmente apontado como influenciador do mestre Alberto Caeiro, verifica-se que essa prevalência é muito superior ao que se possa supor, sendo transversal a toda a criação, transformando-se em imaginário refúgio contra o sentimento de irrealidade. Aliás, a descoberta do volume Poems by Walt Whitman na Biblioteca particular de Pessoa, profusamente anotada, com a assinatura de Alexander Search, numa fase pré-heteronímica, demonstra o acerto da intuição lourenciana.
LIVRO POLÉMICO E DE URGÊNCIA Pessoa Revisitado é, sem dúvida, para o seu autor um “livro polémico, veemente, livro de urgência” e até de paixão. E Pedro Sepúlveda tem razão ao considerar Pessoa Revisitado como, “até hoje o mais importante ensaio escrito sobre a obra de Fernando Pessoa”, pela originalidade e pela atenção inovadora. Afinal, como o mesmo considera, invocando o testemunho do próprio Lourenço: «Tal como em Caeiro, a forma de poesia de Campos teria como referência primordial Whitman, mediada pela influência do mestre, apresentando-se como “transfigurado eco da visão que Walt Whitman tem das coisas, não do concreto hino com que as canta”» (Op. Cit., p. 31). E o poeta norte-americano constitui uma chave reveladora do que se torna próprio e irrepetível na genial criatividade de Fernando Pessoa, ele mesmo.
Como o ensaísta reconhece, estamos diante de “um livro de paixão, um romance de romancista imaginário por conta de Pessoa, antes que autênticos romancistas o convertessem na ponte das suas criações” (Vinte Anos Depois). Eis o que nos obriga a esta leitura apaixonante.
UMA PREMONIÇÃO Como disse Eduardo Lourenço: “o canto pessoano é o do terror instalado no centro do amor, fazendo sobre-humanos esforços para não sucumbir ao seu negro sortilégio. A relação da humanidade com o seu desejo não é, nem pode ser natural. Porque foi e é através das formas que assumiu e assume que ela se liberta sem cessar da Natureza e se instala na sobrenaturalidade, onde não acabará jamais de se instalar”. Carlos de Oliveira viu bem quando afirmou que este foi o grande romance que Eduardo Lourenço, afinal, escreveu. E assim o leitor insaciável, o estudioso permanente, o cultor da linguagem poética reveladora do sentido profundo dos mitos surge aqui como revelador do sentido da criação cultural de Pessoa. Não mais poderemos compreender o alcance de «Orpheu» sem lermos esta obra. E o certo, porém é que o próprio autor talvez não se tenha apercebido, quando fechou o seu ensaio, que a descoberta do Livro do Desassossego viria a dar plena razão à coerência complexa e à genialidade do autor plural que demonstrou na modernidade uma coerência única entre a personalidade multímoda e a sua obra portentosa, assente no surpreendente diálogo entre a diversidade de ortónimos e heterónimos…