O ENTUSIASMO DE ADÉLIA PRADO
Acaba de ser atribuído o Prémio Camões, neste ano emblemático de 2024, a Adélia Prado, poeta brasileira, natural de Minas Gerais, como Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa, formada em filosofia, professora, mãe de família, como uma obra notável. E, com inteira justiça, Adélia também receberá por estes dias o Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Na Antologia Tudo o que existe louvará, prefaciada por José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos (Assírio e Alvim, 2016), diz-se, sintomaticamente: «O religioso sem corpo é triste, incompreensível e anímico, porque é com o corpo que se ama a Deus. O corpo é que nos abre, como janela, para a transcendência: Deus só é experimentável a partir do corpo e na relação com o corpo». Ouvimo-la, com entusiasmo: «Tudo o que existe louvará. /Quem tocar vai louvar, /quem cantar vai louvar, /o que pegar a ponta de sua saia /e fizer uma pirueta, vai louvar. /Os meninos, os cachorros, / os gatos desesquivados, / os ressuscitados, /o que sob o céu mover e andar». Aqui se demonstra plenamente o que um dia disse a nossa Leonor Xavier: “Em verso e prosa, Adélia descobriu a mistura entre as pequenas tarefas de casa, as pessoas que a rodeiam, as coisas e os bichos, o sentir e o pensar, o silêncio da dúvida, a presença de Deus imediata e consciente, na inteireza da sua história de mulher”. Para Drummond: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Quem a conhece considera-a desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, seríssima no entendimento das coisas essenciais. Nela o comum e o banal encontram-se, a cada passo, com o transcendente. Como disse Pedro Mexia, «os seus textos, que evocam com frequência um meio provinciano e pobre, têm (…) algumas afinidades com o Sul profundo da ficção de Flannery O’Connor, mas enquanto a americana era violenta e sofrida, a brasileira é vitalista e sensual. Poeta de Deus e do corpo, Adélia é também poeta do corpo divinizado e do Deus encarnado».
Esta atitude aberta e generosa permite-me lembrar que nestes últimos dias celebrámos em Lisboa o 12º “Disquiet” com escritores e intelectuais norte-americanos, promovido pela editora independente Dzanc Books e o Centro Nacional de Cultura, em memória do poeta Alberto Lacerda. Disquiet, evoca o “Desassossego” de Bernardo Soares / Fernando Pessoa. Se associo o novo Prémio Camões a este encontro é porque a abertura de espírito de Adélia Prado tem tudo a ver com esta iniciativa. Jeff Parker e Scott Laughlin, com Teresa Tamen, são a alma do projeto e fazem do diálogo entre literaturas uma festa do espírito. E este ano Katherine Vaz, habitual presença no certame, lançou o romance Linha do Sal, passado na Madeira na década de 1840, sobre a separação e o encontro de duas famílias imigrantes nos Estados Unidos, entre atribulações religiosas, mas em que se sente a “alegre melancolia que é a fonte de calor da alma portuguesa”.
GOM