A VIDA DOS LIVROS
De 22 a 28 de julho de 2024
«Pessoa Revisitado» de Eduardo Lourenço constitui uma obra referencial do grande ensaísta, que acaba de ser reeditada pela Gradiva e constitui uma sugestão essencial de leitura para este Verão.
PEÇA-CHAVE
O reconhecimento da genialidade de Pessoa é uma marca indelével que encontramos na obra que aqui se apresenta. Pessoa Revisitado – Leitura Estruturante do Drama em Gente constitui uma peça-chave na obra de Eduardo Lourenço, da qual resulta a ideia inovadora e original de que os heterónimos pessoanos não são fragmentos de um puzzle, cuja coerência o leitor poderia reconstituir com referência a alguma instância exterior à obra, mas sim à fragmentação de uma totalidade identificada na poesia do próprio Fernando Pessoa, ainda antes do nascimento de Caeiro, Campos e Reis, como tem salientado Pedro Sepúlveda (in Obras Completas, IX, Pessoa Revisitado – Crítica Pessoana – I (1949-1982)- Fundação Calouste Gulbenkian, Introdução, pp. 13 e ss.).
Nesse sentido, a famosa questão da génese dos heterónimos passa a ser colocada no plano textual, com uma perspetiva orgânica, partindo de uma ideia não só de rutura, mas também de continuidade, no tocante a motivos e temas, ligando os textos heteronímicos entre si e a uma fase anterior. E o percurso desenhado por Richard Zenith na sua biografia de Pessoa ilustra bem esta ligação. É assim que se compreende que Eduardo Lourenço tenha a preocupação de tornar claro que se demarca de uma visão psicologista na interpretação da personalidade poética de Pessoa. Para si a psicanálise é mítica, centrada no texto e não no sujeito criador dele. E Robert Bréchon afirma que Pessoa Revisitado devolve à poesia pessoana o seu poder de subversão. Há, deste modo em Eduardo Lourenço, uma redescoberta de Pessoa, que o Livro do Desassossego irá confirmar, numa coerência e num sentido de conjunto, que Eduardo Lourenço intuiu de forma pioneira magistralmente.
Aproximando-se de Adolfo Casais Monteiro ou de Maria Aliete Galhoz, o ensaísta considera que na obra policêntrica estamos perante um sistema de múltiplos sentidos, que corresponde a um todo. De facto, a aparente multiplicidade e o seu carácter supostamente contraditório da obra plural correspondem a uma impressão de totalidade. E neste ponto a referência Walt Whitman merece especial atenção. Tradicionalmente apontado como influenciador do mestre Alberto Caeiro, verifica-se que essa prevalência é muito superior ao que se possa supor, sendo transversal a toda a criação, transformando-se em imaginário refúgio contra o sentimento de irrealidade. Aliás, a descoberta do volume Poems by Walt Whitman na Biblioteca particular de Pessoa, profusamente anotada, com a assinatura de Alexander Search, numa fase pré-heteronímica, demonstra o acerto da intuição lourenciana.
LIVRO POLÉMICO E DE URGÊNCIA
Pessoa Revisitado é, sem dúvida, para o seu autor um “livro polémico, veemente, livro de urgência” e até de paixão. E Pedro Sepúlveda tem razão ao considerar Pessoa Revisitado como, “até hoje o mais importante ensaio escrito sobre a obra de Fernando Pessoa”, pela originalidade e pela atenção inovadora. Afinal, como o mesmo considera, invocando o testemunho do próprio Lourenço: «Tal como em Caeiro, a forma de poesia de Campos teria como referência primordial Whitman, mediada pela influência do mestre, apresentando-se como “transfigurado eco da visão que Walt Whitman tem das coisas, não do concreto hino com que as canta”» (Op. Cit., p. 31). E o poeta norte-americano constitui uma chave reveladora do que se torna próprio e irrepetível na genial criatividade de Fernando Pessoa, ele mesmo.
Como o ensaísta reconhece, estamos diante de “um livro de paixão, um romance de romancista imaginário por conta de Pessoa, antes que autênticos romancistas o convertessem na ponte das suas criações” (Vinte Anos Depois). Eis o que nos obriga a esta leitura apaixonante.
UMA PREMONIÇÃO
Como disse Eduardo Lourenço: “o canto pessoano é o do terror instalado no centro do amor, fazendo sobre-humanos esforços para não sucumbir ao seu negro sortilégio. A relação da humanidade com o seu desejo não é, nem pode ser natural. Porque foi e é através das formas que assumiu e assume que ela se liberta sem cessar da Natureza e se instala na sobrenaturalidade, onde não acabará jamais de se instalar”. Carlos de Oliveira viu bem quando afirmou que este foi o grande romance que Eduardo Lourenço, afinal, escreveu. E assim o leitor insaciável, o estudioso permanente, o cultor da linguagem poética reveladora do sentido profundo dos mitos surge aqui como revelador do sentido da criação cultural de Pessoa. Não mais poderemos compreender o alcance de «Orpheu» sem lermos esta obra. E o certo, porém é que o próprio autor talvez não se tenha apercebido, quando fechou o seu ensaio, que a descoberta do Livro do Desassossego viria a dar plena razão à coerência complexa e à genialidade do autor plural que demonstrou na modernidade uma coerência única entre a personalidade multímoda e a sua obra portentosa, assente no surpreendente diálogo entre a diversidade de ortónimos e heterónimos…
Guilherme d'Oliveira Martins
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