A VIDA DOS LIVROS
De 29 de julho a 4 de agosto de 2024
José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos assinam o prefácio à Antologia de Adélia Prado Tudo o que existe louvará (Assírio e Alvim, 2016) de leitura indispensável.
Alberto da Costa e Silva disse de João Guimarães Rosa que escreveu um romance, novelas e contos como se fizesse poesia, preferindo ser “expressivo, perscrutador e lúdico”. Lembrei esta afirmação perante a atribuição do prémio Camões a Adélia Prado, em simultâneo com o anúncio do prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Notamos, de facto, na personalidade literária desta mineira inconfundível semelhantes características que Alberto exprimiu. Também Adélia, ressalvadas as distâncias, tem as qualidades únicas desse extraordinário cultor da língua comum como ninguém mais fez. E lembramos aquele começo da “partida do audaz navegante” (nas Primeiras Estórias) – “Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha aberta, de alpendre, atrás da pequena casa”. E se Guimarães Rosa assim escreveu, Adélia Prado encanta-nos no mesmo tom: “Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras. / As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha / de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas / fora do seu tempo desejadas”.
José Tolentino Mendonça e Miguel Cabedo e Vasconcelos afirmam no prefácio à Antologia de Adélia Prado Tudo o que existe louvará (Assírio e Alvim, 2016) que «o religioso sem corpo é triste, incompreensível e anímico, porque é com o corpo que se ama a Deus. O corpo é que nos abre, como janela, para a transcendência: Deus só é experimentável a partir do corpo e na relação com o corpo». E somos levados à leitura da poeta galardoada com o Prémio Camões deste ano: «Tudo o que existe louvará. /Quem tocar vai louvar, /quem cantar vai louvar, /o que pegar a ponta de sua saia /e fizer uma pirueta, vai louvar. /Os meninos, os cachorros, / os gatos desesquivados, / os ressuscitados, /o que sob o céu mover e andar». E não esquecemos o que disse Leonor Xavier, que se estivesse connosco estaria feliz pela justiça deste reconhecimento: “Em verso e prosa, Adélia descobriu a mistura entre as pequenas tarefas de casa, as pessoas que a rodeiam, as coisas e os bichos, o sentir e o pensar, o silêncio da dúvida, a presença de Deus imediata e consciente, na inteireza da sua história de mulher”. E não esquecemos a premonitória opinião de Carlos Drummond de Andrade sobre alguém não conhecido, cujo valor se tornaria indiscutível: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. De facto, a originalidade é uma marca que a torna um especial exemplo de quem usa as palavras, melhor que ninguém para exprimir o que sente e como vive o mundo contemporâneo. E, como disse Pedro Mexia, «os seus textos, que evocam com frequência um meio provinciano e pobre, têm (…) algumas afinidades com o Sul profundo da ficção de Flannery O’Connor, mas enquanto a americana era violenta e sofrida, a brasileira é vitalista e sensual. Poeta de Deus e do corpo, Adélia é também poeta do corpo divinizado e do Deus encarnado». Pessoalmente, é desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, mas seríssima no entendimento das coisas essenciais e por isso na sua escrita o comum e o banal encontram-se, reclamando a transcendência.
UM CASO MUITO ESPECIAL
Nascida em Divinópolis (Minas Gerais) em 1935, onde vive, foi professora do ensino básico e formou-se em filosofia. Em 1976, publicou Bagagem, obra que teve uma excelente reação dos leitores e da crítica e que lançou a poeta no mundo da melhor literatura. Em 1978 lançou O coração disparado, também muito bem recebido e galardoado com o Prémio Jabuti. E o sucesso literário permitiu a afirmação de um conjunto de obras, todas elas marcantes, que manifestam o testemunho de uma mulher, profundamente solidária com a importância do reconhecimento da liberdade de pensamento, da igualdade de género e da valorização do quotidiano e da convivialidade. São exemplos desse entusiasmo criador: Soltem os cachorros (1979), Cacos para um vitral (1980), Terra de Santa Cruz (1981) e o romance Os componentes da banda (1984), além de O Pelicano (1987) e A faca no peito (1988). Em 1994, após alguns anos de silêncio poético, ressurge com o livro de prosa O homem da mão seca, sendo lançados no ano de 1999 o romance Manuscritos de Filipa, e o livro de poemas Oráculos de maio. Em 2010 publicou A Duração do Dia e recebeu os Prémios Literário da Fundação Biblioteca Nacional e da Associação Paulista dos Críticos de Arte, publicando em 2013 Miserere. Agora, a atribuição do Prémio Camões reforçou o cânon feminino das literaturas da língua portuguesa, uma vez que a escrita de Adélia Prado é marcadamente ligada ao reconhecimento da importância da mulher na literatura e na vida. Por isso disse: “Fiquei mais corajosa, / igual a mulheres que julgava levianas / e eram só mais humildes” ou “Tenho labirintite. Amei Aristóteles com fervor. / E por longo tempo deixei-o por Platão. /Enfadei-me, saudosa de carne e ossos, / acidez de sangue e suor, / O que deveras existe nos poupa perturbações, / sou uma vestal sem mágoas. / Terei o que desejo, carregando a minha cruz / e morrendo nela”. E Mia Couto confessa o encantamento que sentiu ao ler Adélia Prado, que encontraria pessoalmente na representação de “O último voo do flamingo” em Belo Horizonte, considerando tal encontro como mágico.
Há, de facto, sempre um lado de magia na escrita de Adélia, cultivando permanentemente a esperança de uma alegria inesperada, como diz em “O Homem Humano” de Terra de Santa Cruz: “Se não fosse a esperança de que me aguardas com a mesa posta / o que seria de mim eu não sei. / Sem o Teu Nome / a claridade do mundo não me hospeda, / é crua luz crestante sobre ais”. E, na relação com as palavras, compreendemos que é a vida e o que ela tem, que sobretudo importa: “O que existe são coisas, / Não palavras. Por isso / te ouvirei sem cansaço recitar em búlgaro / como olharei montanhas durante horas, / ou nuvens. / Sinais valem palavras, palavras valem coisas, / coisas não valem nada. / Entender é um rapto, / É o mesmo que desentender…”. E os citados prefaciadores da Antologia que seguimos recordam que a poeta provoca escândalo, porque sobre ela recai “a acusação de ser demasiado religiosa e demasiado provinciana”. Mas, como Drummond bem viu, mais do que tudo, criou “uma obra poética vital que a coloca, com inteira justiça, entre as grandes vozes do nosso tempo: instigadora na proposta, destemida, na invenção antilírica até ao osso e contudo ardente, sem pingo de condescendência, mas magnificamente sensorial, dinamitando as zonas de conforto onde a poesia moderna se instalou, mostrando que a ortodoxia é uma forma radical de heterodoxia e a mais ínfima reverência deve ser mais temida do que a maior blasfémia”…
Guilherme d'Oliveira Martins