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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA TERRA COM SEU USO


X. A decadência do Império


Quando na segunda Conferência Democrática do Casino Lisbonense (1871), Antero de Quental enumerou as causas da decadência dos povos peninsulares preocupou-se com o fator religioso representado pelo Concílio de Trento, com o fator político pelo absolutismo real e com o sistema económico dos descobrimentos. Se D. João II procurou garantir uma coordenação estratégica, baseada numa articulação com os Reis Católicos, a verdade é que a morte trágica do Príncipe D. Afonso pôs em causa esse entendimento. É certo que D. Manuel I teve em mente essa ideia, mas o planeamento de Afonso de Albuquerque, centrando-se em Ormuz, Goa e Malaca não veio a ter a continuidade e o aprofundamento necessários – passando a administração do Índico a centrar-se numa lógica fragmentária, com prevalência dos mercadores e missionários. Em lugar de uma política de Estado, extremamente difícil, por carência de população e por instabilidade administrativa (como fica bem demonstrado na Crónica de Diogo do Couto, mas também nas descrições de Fernão Mendes Pinto na “Peregrinação”), prevaleceu uma orientação casuística, ditada pelos desafios que localmente foram surgindo. Ao longo do século XVI, a extensão do Império e os constrangimentos circunstanciais, foram-se agravando, o comércio centrado em Goa tornou-se intra-asiático, e gradualmente o Brasil foi ocupando o lugar do comércio do Índico. A monarquia dual, a partir de 1580, atraiu as ambições holandesas relativamente aos territórios sob administração portuguesa, o que fragilizou definitivamente o império do Oriente. Numa palavra, a prevalência do transporte sobre a fixação, determinou o enfraquecimento da posição portuguesa no Oriente. Saído do período de sessenta anos em que viveu em Monarquia Dual com a Espanha, com uma presença na Ásia enfraquecida, quer pelas conquistas dos holandeses, quer pelo desenvolvimento do mercado interasiático e com a perda de Ormuz (1622) e de Malaca (1640) e expulsão do Japão (1637-41), em Portugal a procura da fixação fazia todo o sentido. A descoberta do ouro do Brasil interrompeu, porém, a concretização desse desígnio – o qual viria a ser concretizado algo fugazmente pela política de Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Conde de Oeiras e Marquês de Pombal…


A sombra de D. Sebastião


Por referência a Alcácer Quibir, o mito sebastianista corresponde, segundo Miguel Real, a um delírio, sentimentalmente verdadeiro embora racionalmente falso. Assim, o sebastianismo constitui uma espécie de motor ético dos portugueses, forçando-os “a acreditarem dever ser o futuro melhor do que o presente, mesmo que para tal se sintam obrigados a fugir da medíocre elite portuguesa, que do país se apodera como coutada sua…” (in “Nova Teoria do Sebastianismo”, D. Quixote, 2014). «Origens do Sebastianismo» de António Costa Lobo é um clássico da ensaística portuguesa, com prefácio de Eduardo Lourenço de 1982. Trata-se de uma das melhores análises sobre o sebastianismo da nossa literatura – onde se procede a uma síntese entre uma mitofília e a recusa de qualquer simplificação imaginativa. Costa Lobo (1840-1913) escreveu esta reflexão em 1909. Frequentara a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, tendo desenvolvido atividades como jurista, sob influência do krausismo, e de professor do Curso Superior de Letras. Foi Par do Reino, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Conselheiro de Estado. Este ensaio merece referência pelo conhecimento que revela da evolução histórica portuguesa e pela agudeza crítica com que se demarca de outras análises menos fundamentadas sobre o sebastianismo. Para Costa Lobo, «o povo português não emergiu da reconquista da liberdade em 1640 como havia sido no período anterior ao cativeiro. O domínio castelhano foi um cataclismo, que abalou pelos alicerces a sociedade portuguesa, e não uma calamidade transitória, cujos efeitos cessaram com o seu término, como geralmente se cuida. Os efeitos da servidão não se obliteram logo em alforria. Talvez Portugal não esteja deles ainda inteiramente curado - o presente é condicionado pelo passado e condiciona o futuro. «No organismo de um indivíduo as grandes enfermidades deixam sempre quebrantado o vigor da compleição: numa nação cuja existência se continua na sucessão das gerações, em cada uma destas se propaga, por herança, o germe da enfermidade originária». Eduardo Lourenço, no seu prefácio refere o sentido profundamente crítico de António Sérgio, que tem de ser entendido no contexto em que foi produzido, por demarcação do saudosismo sebastianista, pouco conforme com as suas preocupações de lançar as bases de uma reforma de mentalidades. Sem pôr em causa a qualidade de Pascoaes, do que se tratava era de evitar generalizações perniciosas justificativas de alguma acomodação sentimentalista. E assim Lourenço parte para a leitura de Oliveira Martins, que neste ponto é guia para o ensaísta de “O Labirinto da Saudade” - «do que era um fenómeno extravagante ou uma aberração sem lugar no discurso histórico, Oliveira Martins fez um mito cultural de ressonância incomparável». O que estaria em causa no caso português era uma “decadência inconformada consigo mesma”, assumida após um momento dramático em que um passado glorioso deu lugar a uma humilhação incompreensível nas areias de Marrocos. E assim o sebastianismo torna-se uma «prova póstuma da nacionalidade» - «o epílogo, e a manifestação mais palpável do espírito nacional, é o insano mito do sebastianismo que continuou embebido na imaginação e nele nutrido pelo conhecimento da decadência nacional e pela recordação e saudades de tempos mais felizes». Contudo, é fácil de entender que o sebastianismo não é de compreensão fácil. Pode ser visto como um «avatar delirante», mas mais do que isso é o símbolo de uma história complexa que alterna momentos gloriosos e decadentes, em que a fatalidade e a vontade se entrecruzam e se alimentam mutuamente.


Vem à memória a analogia entre o messianismo judaico e a ideia nacional de um império futuro. E Eduardo Lourenço liga o mito cultural de Alcácer Quibir a uma «estrutura de ausência», vista como corolário do tempo em que substancialmente perdemos a independência, ainda que juridicamente tal nunca se tenha consumado verdadeiramente. A monarquia era dual, e só quando o Conde Duque de Olivares teve a tentação unificadora, a revolta tornou-se inexorável. E é assim que Portugal aparece como «ausente de si mesmo e esperando-se nessa ausência». Interrogando-se sobre os mitos portugueses, Eduardo Lourenço demarca-se das leituras negativistas e fatalistas, uma vez que considera, com Oliveira Martins, que a «estrutura de ausência» não pode confundir-se com a incapacidade de espera. Note-se que é o tema da ausência que Garrett trata em “Frei Luís de Sousa”. E o certo é que o autor de “Portugal Contemporâneo” sempre se dispôs a crer em uma «Vida Nova», capaz de fazer regressar a pátria a um caminho de vontade e prosperidade. Ao contrário do que se exigiria, o sebastianismo, como mito, é uma prova póstuma da nacionalidade, mas também sonho ou vaga esperança messiânica – e neste ponto o ensaísta contemporâneo chega a Fernando Pessoa. O poeta pensa no mito cultural como impulso libertador. No pensamento de Eduardo Lourenço (o nosso filómita por excelência, na linha do que José Marinho considerava ser Oliveira Martins) estamos perante um «mito», mas não uma esperança de índole transcendente ou religiosa. É o «herói simbólico» que se apresenta – na tradição do ciclo bretão, do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda (também ele viria de Avalon numa manhã de nevoeiro). E o tema do herói merece atenção. E, por contraponto a Sebastião, são apontados exemplos de heróis reais: Nun’Álvares, os Filhos de D. João I e o Príncipe Perfeito. E contra o fatalismo, surge ainda a nação como vontade como disse Alexandre Herculano - vontade temperada pela índole coletiva. Sampaio Bruno preferiu procurar uma significação metafísica, Teixeira de Pascoaes ligou o sebastianismo à saudade lusíada (lembrança e desejo, segundo Duarte Nunes do Leão) e Costa Lobo procurou ancorar nas razões históricas as repercussões do cativeiro – desde as Cortes de Tomar (1581) até ao Primeiro de Dezembro de 1640.


Agostinho de Morai
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ANTOLOGIA


GRÃO QUE APODRECE OU FRUTIFICA…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


Domingos de Gusmão gostava de repetir esta sua espantosa (assim a adjetivou Bernanos: "étonnante"!) máxima: "o grão apodrece quando se acumula e frutifica quando se semeia". Justificava assim o fomento da dispersão dos seus frades pregadores por toda a parte, caminhantes anunciadores do evangelho, moradores no meio dos homens, em pequenas comunidades. Divergindo da tradição dos grandes mosteiros, que exigiam posse de terras e dever de residência, os dominicanos - tal como os seus contemporâneos franciscanos, discípulos do poeta de Assis - deveriam viver em aliança com a Santíssima Pobreza...  Na própria regra da Ordem dos Pregadores, Domingos incluiu até a proibição de se deslocarem a cavalo ou de se embaraçarem com dinheiro. A pobreza é mãe da liberdade, e só em liberdade ganham sentido a oração e o estudo. Oração e estudo que são educação e exercício da inteligência para o diálogo com Deus e os outros. Duas faces da mesma cara. Indissociáveis. Ao cumprimento do dever do estudo - que é também contemplação - até a própria oração deverá sacrificar pietismos barrocos e barroquismos litúrgicos. A simplicidade é a dieta do espírito. O "Saint Dominique" de Georges Bernanos, ainda que seguindo a biografia antes escrita pelo padre Petitot, terá talvez mais Bernanos do que história. Na narrativa das últimas horas e palavras do Santo, deitado no chão, em cima de um saco, rodeado de confrades que o escutam, Bernanos sentir-se-ia, ele mesmo, também no meio das suas próprias personagens romanescas (de Mouchette e Donissan, Chantal e o "curé de campagne"), que invoca no prefácio ao seu "Les Grands Cimetières sous la lune", escrito, em janeiro de 1937, em Palma de Maiorca: "Companheiros desconhecidos, velhos irmãos, chegaremos juntos, certo dia, às portas do reino de Deus. Tropa estafada, tropa assediada, branca da poeira dos nossos caminhos, queridos rostos duros cujo suor eu não consegui enxugar, olhares que viram o bem e o mal, e cumpriram a sua tarefa, assumiram a vida e a morte, ó olhares que nunca se renderam! Assim vos encontrarei, velhos irmãos. Tais como vos sonhou a minha infância". E mais adiante: "É certo que a minha vida está já cheia de mortos. Mas o mais morto dos mortos é o rapazito que fui. E todavia, quando chegar a hora, será ele que retomará o seu lugar à cabeça da minha vida, reunirá até ao último os meus pobres anos e, qual jovem chefe, os seus veteranos, congregando a tropa em desordem, sendo o primeiro a entrar na Casa do Pai..." ... "é minha profunda certeza que a parte do mundo ainda suscetível de resgate pertence só às crianças, aos heróis e aos mártires." Eis agora o seu S. Domingos moribundo: "Eis o homem que alguns furiosos quererão tornar num carrasco, e os menos fanáticos numa espécie de ministro da polícia das almas. Se nesta hora ele puder vê-los, com esse olhar que já mergulha no futuro, o monge negro e branco poderá levantar sobre eles a sua grande mão mansa e dissipá-los como fumo! Ele, diante de quem tudo se abre, não compreende o ódio deles, precisamente porque esse ódio é nada. Contra ele invocam a ciência que ele amou mais carinhosamente do que qualquer deles. Ou a luz que ele sente transbordar dele. O seu único escrúpulo, se houvesse lugar para escrúpulos em tão clara alma, teria sido ter amado demais, e demais servido a primeira renascença intelectual, até parecer sacrificar ao estudo mesmo esse ofício coral que esses monges recitarão doravante com uma rapidez alegre, tão diferente da tradição beneditina. O século assustava-se por uma fonte de luz perdida, agora de repente descoberta sob as ruínas do mundo antigo, e ele, de acordo com dois admiráveis papas, reendireitou o seu século, manteve-o fremente no feixe de luz que o seu filho Tomás (S. Tomás de Aquino) voltará decididamente para a Cruz".  "Os frades estão reunidos para recolher, se possível, algo da palavra que vai enfraquecendo. Domingos faz um gesto com a mão, eles aproximam-se. Por um humilde gesto do santo, percebem que tem qualquer confissão pública para fazer; e que muito pesa no seu coração. Aquele que, em sonhos, apareceu ao papa Inocente III, carregando aos ombros a Igreja de Latrão, conselheiro de pontífices, conselheiro de príncipes, árbitro de tantos destinos, mestre e legislador de tantas consciências, irá agora descobrir, neste solene instante, com espanto, o carácter abstrato, quase terrível da sua vocação doutrinal? Que escrúpulo o atormenta? Levanta sobre os frades os seus olhos azuis, de olhar intacto. "Acuso-me, diz o Mestre dos Pregadores, de ter sempre preferido, à das pessoas velhas, a conversação das mulheres jovens". Muito mais tarde, nos seus "Diálogos" Santa Catarina de Siena relata que Jesus lhe disse, de S. Domingos: "Assim é a sua religião toda largueza, toda alegre, toda perfumada; é um jardim de delícias..."


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 29.09.13 neste blogue.