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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA TERRA COM SEU USO


XVII. Garrett e Herculano – Um Novo Portugal


Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877) simbolizam o Portugal moderno de oitocentos, nascido das sequelas da ação do artífice do nosso “século das Luzes”, Sebastião José, o marquês de Pombal, das resistências da “Viradeira”, das repercussões da Revolução francesa, chegadas até nós pelas invasões napoleónicas, do “francesismo”, nascido da reação ao poder inglês, agravado pelo facto de D. João VI estar ausente e de o Rio de Janeiro ter-se tornado o polo político mais influente do Reino Unido. Não esqueçamos o importante papel desempenhado por D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna (Alcipe), e pelo seu salão literário, bem como pela Nova Arcádia, da qual fizeram parte Elmano Sadino (Bocage), Nicolau Tolentino ou Filinto Elísio. Combatendo os excessos do barroco, é o neoclassicismo que se manifesta, mas também a transição para o romantismo. O jovem Herculano, discípulo dos Oratorianos das Necessidades, foi um dos frequentadores do salão de Alcipe. É neste caldo de cultura que germina a Revolução de 1820 e o constitucionalismo português. E se D. João VI regressou a Portugal apressadamente, deixando no Rio a semente da independência, que D. Pedro concretiza nas margens do Ipiranga, o certo é que jamais irá dominar a situação interna, sendo provavelmente envenenado depois de se ter deixado enredar numa complexa teia de um absolutismo em que não acreditava – desde a Vilafrancada até à Abrilada. A história política que se segue é bem conhecida e só terminará no virar da metade do século… O Imperador do Brasil, D. Pedro, outorga a Carta Constitucional portuguesa (1826) e propõe uma solução de compromisso a seu irmão D. Miguel, cabeça da reação tradicionalista. D. Maria da Glória, a filha adolescente de D. Pedro, casar-se-ia com o tio… Mas o ambiente europeu foi mais favorável à aventura radical dita legitimista.


Não houve compromisso e a guerra civil (1828-1834) tornou-se inexorável e os jovens românticos Almeida Garrett e Alexandre Herculano tornaram-se resistentes ativos, ligando o compromisso cívico, o pensamento e a criação literária. A fidelidade às tradições históricas e populares exigia o combate pela liberdade. Garrett procura as raízes nacionais na noite dos tempos. Herculano encontra no romance histórico e na moderna historiografia (assente no rigor crítico e no estudo das fontes coevas) as razões para uma nacionalidade livre, baseada na vontade do povo e não em qualquer ilusão providencialista. Garrett vive a vida, segue a moda, é o jurista brilhante que escreve as leis de Mouzinho da Silveira, o maior orador parlamentar do seu tempo (ao lado de José Estevão), o fundador do moderno teatro português, o poeta e o romancista renovador. Herculano assume a austeridade, torna-se uma figura moral, um exemplo cívico, a sua escrita é irrepreensível, madura, mas não transige com a popularidade. «Almeida Garrett e Herculano ‘refundaram’ Portugal porque, pela primeira vez, e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o País esteve em sérios riscos de perecer» (Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, Gradiva, 1999, p. 27). Só uma atitude de abertura e cosmopolitismo nos permitiria contrariar o fatalismo. A nação queria-se liberal e constitucional para salvar a independência.


«As Viagens na Minha Terra» retratam um País dividido e desiludido, depois da vitória liberal em Évora Monte (1834). Os ideais modernizadores, só no início da década de 30 contaram com um ambiente europeu favorável, mas depararam internamente com uma forte resistência dos interesses instalados, das invejas, da mediocridade. Em setembro de 1836 ganhou a corrente mais avançada, simbolizada por Passos Manuel. Mas em 1842 venceu a linha oposta, representada por António Bernardo Costa Cabral. E reabriu-se o clima de guerra civil, que só terminou em 1851, sob a inspiração do próprio Alexandre Herculano.


O que se deveria fazer? Enterrar o machado de guerra e construir uma nova ordem constitucional, na qual a velha Carta fosse enxertada com a lógica democrática de 1822 e de 1838. E assim aconteceu. A Regeneração e os melhoramentos materiais poderiam permitir ao País sair do atraso e da mediocridade. Iniciou-se então um longo período de paz civil, baseada na rotação entre as duas principais forças políticas – regeneradores e históricos. Mas, com o tempo, a rotina gerou a descrença. Aliás, a solução, uma vez concretizada, não viria a satisfazer Herculano. Mas com Fontes Pereira de Melo (o «António Maria», de Rafael Bordalo Pinheiro) ao leme houve um tempo de estabilidade e de progresso. É o tempo que Cesário Verde descreve com contornos novos: «Batem os carros de aluguer, ao fundo,/ Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!/ Ocorrem-me em revista exposições, países:/ Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!» («Sentimento dum Ocidental»). É a modernidade e a tentativa do cosmopolitismo. Mas que sociedade está por baixo desta visão moderna? O Portugal profundo, descrito por Camilo Castelo Branco, ele mesmo figura contraditória, cruzamento da tradição e do inconformismo. Silvestre Silva (de “Coração, Cabeça e Estômago”), Calisto Elói de «A Queda de um Anjo» ou os heróis de “Amor de Perdição”, Teresa e Simão, complementam a placidez (não destituída de tensão) de «A Morgadinha dos Canaviais», de Júlio Diniz, com a figura tutelar e atualíssima do Conselheiro Manuel Bernardo, pai de Madalena, sem esquecer o retrato do caciquismo eleitoral de Joãozinho das Perdizes… E se falamos de Júlio Dinis, o romancista português mais influenciado pelo romantismo britânico, temos de citar “Uma Família Inglesa”, o melhor retrato do contrato económico do tratado de Methuen, bem como “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, representação de uma sociedade que se esgotava nas raízes tradicionais e que precisava de sangue novo para corresponder aos desafios da modernização na economia e nas mentalidades, bem evidenciada no papel de Berta e de Tomé da Póvoa.


Recorde-se ainda o escrito de Almeida Garrett “Portugal na Balança da Europa – Do que tem sido e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do Mundo Civilizado”. Trata-se da reflexão de um homem atento ao seu tempo sobre a evolução europeia, a emergência dos Estados Unidos da América na cena mundial e o lugar de Portugal na ordem mundial. E vemos como um ativista liberal olha a realidade nacional e internacional, procurando antever como os portugueses poderiam responder às novas circunstâncias. A obra foi escrita entre 1826 e 1829 e publicada em 1830. Acompanha a atribulada evolução nacional nesse período – desde a morte de D. João VI até ao início da guerra civil que opôs D. Pedro e D. Miguel. Depois de viver em França, como correspondente da Casa Laffitte, Garrett regressa a Portugal, a seguir à outorga da Carta Constitucional (“moldada pelas mais avisadas e prudentes da Europa”), para se dedicar ao jornalismo. Funda e dirige o jornal “Portugal” e passa três meses no Limoeiro por delito de opinião… D. Miguel regressa a Portugal e Garrett é obrigado a iniciar o seu segundo exílio – em Inglaterra, em França, na Ilha Terceira, onde colabora ativamente com Mouzinho da Silveira, regressando com Herculano como soldado do Batalhão Académico, como um dos bravos do Mindelo, no desembarque da praia do Pampelido.


No dizer de Ramalho Ortigão, encontramos em Garrett “um mensageiro do novo espírito europeu”, que se interroga sobre o que Portugal deveria ser na nova balança da Europa. Havia circunstâncias novas: a emancipação da América, a revolução de França e o engrandecimento da Rússia. Na balança antiga, Portugal era contrapeso necessário ao equilíbrio das três potências do Oeste: França. Inglaterra e Espanha. A mais interessada nesse equilíbrio havia sido a Inglaterra. Por isso, sustentou e garantiu a independência portuguesa.


Mas essa independência não era real. E Garrett parte do século XV, do tempo em que os papas e os imperadores haviam dado cabo da liberdade em Itália; em que, na Alemanha, a república federativa das pequenas potências que a compunham sucumbia perante a Casa de Áustria, antiga, inveterada e constante inimiga de toda a independência e liberdade; em que na Espanha os foros de Aragão e de Castela ou eram afogados em sangue ou caíam em desuso e em que em Portugal diminuía o poder dos nobres e aumentava o do rei e o do clero, espaçando-se a convocação de Cortes.


A descoberta da América veio alterar a balança da Europa. A influência do Mundo Novo tornou-se vantajosa. A agonia dos déspotas despontava, ainda que na Europa as tendências fossem inquietantes – ameaçando perseguir na América a liberdade foragida, através da “remessa periódica de parasitas”. Mas a América reage contra o despotismo europeu. Garrett elogia as virtudes americanas, de uma “confederação geral dos oprimidos contra os opressores”. E encontra o princípio sacrossanto segundo o qual “a liberdade é a única e sólida base de toda a felicidade das nações”. E diz-nos que a pureza do cristianismo é um dos melhores e mais evidentes fatores de consolidação do sistema da liberdade americana, ao lado da descentralização e do equilíbrio de poderes – autêntica “pedra filosofal das repúblicas”. Alexis de Tocqueville vem à nossa memória. E são as Américas e o seu apego concreto à liberdade que induzem a revolução francesa e as suas consequências. Depois houve as invasões. Bonaparte foi o artífice. E “a Europa já escrava ainda duvidava da sua servidão”. Napoleão encarnou a ambiguidade entre os princípios da revolução e uma prática de liberticida. Resistiu a Inglaterra de Pitt? É certo. Mas a causa da “quietação da Inglaterra no meio do bulício e da efervescência geral” deveu-se apenas ao facto de a nação já ser livre… E Garrett não poupa críticas à indiferença e à conciliação da Albion com a política mais retrógrada da Europa… Mas, a liberdade e a civilização triunfaram, e “o apóstata da sua causa foi debelado e punido”.


Garrett elogia a revolução de 1820. Portugal sem rei, sem comércio, sem indústria, sem administração, “descera ao mais vilipendioso estado”. As revoluções peninsulares (1812 e 1820) foram complementares – ambas “moderadas e pacíficas” e ambas conciliadoras com os tiranos, pois cederam para que cedessem. O erro capital de 1820 foi ter a revolução deixado as coisas como achou sem mudar senão os homens. “Como havia o povo de pugnar por um sistema que nem conhecia, nem sentia?”. A revolução foi militarmente construída e militarmente destruída. Assim se pode entender a contra-revolução de 1823 e a Abrilada de 24. A Santa Aliança imperava e a Europa sucumbiu na causa da liberdade, ao contrário da América. Ganharam o despotismo e a oligarquia. O estado do mundo civilizado em 1829 era, assim, perturbador: Luís XVIII reinava em França, onde a causa da humanidade podia ser ganha ou perdida (estava-se em vésperas da revolução de Julho de 1830); nos Países Baixos vivia-se um prodígio de conciliação de duas realidades diferentes e contraditórias (em 1830 nasceria a Bélgica); a Inglaterra estava estacionária enquanto outros andavam; a boa administração e o povo ilustrado da Prússia precisavam de mais liberdade; a Dinamarca era o único reino legitimamente absoluto da Europa; a Suécia, “tranquila e feliz”, era o “país natural das revoluções”; o governo russo (morto czar Alexandre) tinha medo à civilização e o governo austríaco tinha-lhe ódio; a Itália era toda escrava; o futuro da Grécia determinaria o destino de três impérios, o austríaco, o russo e o turco; em Madrid fazia-se o que apenas se desejava em Paris e em Portugal havia ilegitimidade, incerteza e confusão. A América do Norte olhava as misérias do velho mundo do alto do monte. Na América latina, a liberdade tardava porque não se passava facilmente de servo a cidadão e no Brasil havia uma estranha república sob forma de império (com que Garrett pouco se preocupa).


Portugal tem um único fim – ser livre. Daí restar-lhe optar entre uma independência verdadeira, uma independência com liberdade, e uma união com a Espanha. As instituições que conviriam ao País deveriam ser democráticas, baseadas no maior número, temperadas com o elemento aristocrático. Garrett defende a monarquia representativa e o constitucionalismo, em lugar do absolutismo e do radicalismo democrático. Insiste, por isso: na coerência constitucional da velha lei fundamental imemorial do Antigo Regime, que pecava pela forma, faltando-lhe regularidade, nexo e harmonia; na restauração dos antigos princípios da Constituição Portuguesa concretizada em 1822, apesar de haver uma democracia sem elemento aristocrático; e na moderação e equilíbrio da Carta Constitucional de 1826. No entanto, o escritor encontra defeitos e omissões na Carta - que o levarão em 1836 e depois de 1842 a pugnar pela verdadeira Regeneração, que chegará em 1851. Faltava o direito da coroa de dissolver a Câmara de deputados, não havia uma autêntica Câmara hereditária, confundiam-se funções administrativas e judiciais do poder local e minguavam garantias da Constituição: liberdade de imprensa, instrução pública, melhoramentos nas colónias, proteção do comércio e emancipação da indústria. Esse constitucionalismo deveria impedir que a liberdade e a independência fossem sacrificadas por uma oligarquia parasitária… E assim se poderia evitar a união com a Espanha, que Garrett considera um recurso extremo e desesperado…


Agostinho de Morai
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ANTOLOGIA


ATORES, ENCENADORES (XIII)
OS 60 ANOS DO TEATRO DE ARTE DE LISBOA
por Duarte Ivo Cruz


O Teatro de Arte de Lisboa (TdAL), foi uma companhia que, em diversas temporadas, com irregularidade desde 1955-56 até ao início dos anos 70, levou ao Teatro da Trindade um repertório inovador e um elenco de primeira qualidade para o nosso meio artístico, sobretudo na época.  Mas mais: desenvolveu uma ação coerente e relevante de atualização e reflexão da cultura teatral.


O TdAL foi fundado e dirigido por dois escritores e investigadores, Orlando Vitorino (1922-2003) e Azinhal Abelho (1911-1979), cada um deles com carreiras de investigação e reflexão estética válida e diversificada para lá da atividade teatral. Ambos se integram num movimento que globalmente pode ser identificado num quadro de estudos e criação filosófica de ponderação e análise de raiz portuguesa. Estiveram também ligados à realização cinematográfica. Azinhal além de uma obra poética assinalável, desenvolveu um notável trabalho de pesquisa e recuperação de peças e textos tradicionais nos 6 volumes de “Teatro Popular Português”.


Mas devemos recordar que Orlando Vitorino é autor de ensaios integrados no movimento chamado da filosofia portuguesa que a partir do final dos anos 70 estudou e afirmou um pensamento de raiz nacional, na linha de António Quadros, António Braz Teixeira, Afonso Botelho, Álvaro Ribeiro, José Marinho, e outros mais.       


Mas voltemos ao TdAL. É desde logo de realçar a contemporaneidade do repertório, com esporádicas exceções, mas sempre de dramaturgos relevantes.


Vejamos, nesse aspeto alguns espetáculos. Desde logo, o primeiro, “A Casa dos Vivos” de Graham Green: e podemos confirmar que, na época (e de certo modo ainda hoje) o autor é bem pouco conhecido como dramaturgo, e até não só entre nós. O TdAL estreou depois peças de Garcia Lorca (“Yerma”), Kesselring (“Arsénico e Rendas Velhas”), Priestley (“Já Aqui Estive”), Ugo Betti (“Os Fantasmas”), Brien Fiel (“Amantes de Triunfantes”), JacK Richardesosn (“O Carrasco, o Enforcado e a Forca”), Tankred Dorste (“A Curva”), entre outros, incluindo “Quando a Verdade Mente” de Costa Ferreira.


E também as duas peças fulcrais de Orlando Vitorino, “Nem Amantes nem Amigos” (1962) e “Tongatabu” (1965), ambas marcadas pela reflexão filosófica que é comum a toda a sua criação.   Na primeira, o personagem-ator Rafael declama passagens da “Alegoria da Caverna”. E na segunda, reforça-se uma perspetiva existencial da vida no confronto e na alternância de aventura e rotina.


Mas importa agora evocar os elencos sucessivos desta companhia: e diga-se desde logo que o conjunto de atores e atrizes constituiu o que de melhor havia nessa altura na cena nacional, ao nível também do Teatro Nacional de D. Maria II. Logo no espetáculo de estreia assim foi: Maria Lalande, Alves da Costa, Josefina Silva, Brunilde Júdice, Samuel Dinis – à época Diretor da Secção de Teatro do Conservatório Nacional – Constança Navarro, Adelina Campos. E ao longo da temporada, vamos encontrando, a partir desde núcleo central, uma multiplicação de elencos adequado á exigência de cada peça. Basta lembrar que o segundo espetáculo, como vimos a “Yerma” de Lorca – o que só por si é uma afirmação de qualidade - exigia em cena algo como 20 personagens: e encontramos então, neste e em espetáculos sucessivos, nomes como Augusto Figueiredo, Maria Lalande, Mariana Vilar, Lígia Teles, Cecília Guimarães e Francis Graça.


Os espetáculos eram dirigidos ou por elementos do elenco ou pelos próprios diretores da companhia, com destaque para Orlando Vitorino.


Na reposição de 1960-61 e nos espetáculos dessa temporada  surge no TdAL como que uma renovação também de  grande qualidade: alem de muitos dos citados, temos então no Trindade Carlos José Teixeira, Carlos Wallenstein, Fernando Gusmão e o brasileiro Lusi Tito, numa das primeiras “integrações” de elenco que depois seriam habituais. E mais para o final, outra geração: Ivone de Moura, Carlos Duarte e outros.


Orlando Vitorino
Imagem do blog http://liceu-aristotelico.blogspot.pt


Duarte Ivo Cruz

 

Obs: Reposição de texto publicado em 04.03.15 neste blogue.