CADA TERRA COM SEU USO
XVIII. Geração de Setenta – os últimos românticos
O sobressalto vindo da Europa, originado na revolta social e na Primavera dos Povos, de 1848, projeta-se em Portugal. Seria impossível, perante a abertura de fronteiras e a emergência do mundanismo, deixar de ter entre nós a repercussão do que ocorria na Europa. A revolta dos estudantes de Coimbra dos anos sessenta, a questão ideológica do Bom Senso e do Bom Gosto. O Romantismo dava lugar ao Naturalismo, apesar da forte reminiscência do idealismo da primeira geração liberal. Os jovens de Coimbra admiram Garrett e Herculano, mas recusam o ultra-romanismo e o elogio mútuo da escola de António Feliciano de Castilho. Antero de Quental era o centro carismático da revolta. E no dia em que Eça o encontrou na Sé Nova de Coimbra («numa noite macia de Abril ou Maio», sob um «Céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores», e «Aonde o bom Deus se mete,/ Sem fazer caso dos santos/ A conversar com Garrett.») não mais deixou de o admirar, ficando para sempre sentado a seus pés, «num enlevo, como um discípulo».
Depois, os jovens vieram para Lisboa, organizaram as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense e tornaram-se a Geração mais marcante intelectualmente dos dois últimos séculos. E que mensagem nos deixaram? Antero, mestre de Unamuno, chave para a compreensão do «sentimento trágico da vida», disse-nos, com muita clareza e determinação, ao lado dos seus amigos: é preciso europeizar Portugal, único meio de o arrancar à sua passividade e ao influxo do passado. Mas, como disse Eduardo Lourenço, «o paradoxo da Geração de 70, que se dera como missão europeizar Portugal, libertá-lo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi o de retratar um país, como ninguém o fizera antes, em função de um modelo de civilização que tinha em Paris, Londres ou Berlim a sua vitrina» (op. cit., p. 46). Mas esse paradoxo é, porventura, a expressão perene do grupo, como referência à abertura de espírito, à modernidade e à recusa de um messianismo secular. E aí os jovens de setenta seguiram Garrett e Herculano. E Eça de Queirós faz em «Os Maias» (1888) o retrato romanesco do «Portugal Contemporâneo». Carlos da Maia e João da Ega simbolizam as contradições do seu tempo, cientes de que faltava modernizar o País e superar a distância da civilização, responsável pelo atraso. Jacinto, Zé Fernandes e Carlos Fradique Mendes simbolizam a divisão entre o progresso e a natureza. E não se diga que os jovens revolucionários de 1870 se acomodaram, como parece acontecer com Gonçalo Mendes Ramires em «A Ilustre Casa». Poderemos dizer, antes, que se manifesta o dilema entre o «transporte» e a «fixação», já evidente na Carta de Bruges do Infante D. Pedro e nos textos dos economistas do século XVII, de que falámos. Como fixar a riqueza? Como criar condições políticas e sociais para o efeito? É sobre o que Oliveira Martins reflete em «Política e Economia Nacional» ou em «Os Filhos de D. João I» – pondo a tónica num projeto nacional que teria de cuidar da justiça distributiva.
Em maio de 1871, iniciaram-se as Conferências do Casino Lisbonense, no Largo da Abegoaria (ao Chiado). Antero de Quental foi o principal animador do evento. O brado deveu-se à intenção de debater ideias novas, capazes de lançar o país numa via de evolução, e progresso. E percebe-se que a partir dessa vontade tenham surgido desconfianças e resistências. Os jovens animadores da iniciativa eram republicanos sociais, iconoclastas e democráticos que queriam romper com o liberalismo formal. “Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve também ser o assunto das nossas constantes meditações”. As Conferências pretenderam, assim, “abrir uma tribuna”, onde tivessem “voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século”, segundo a preocupação com “a transformação social e política dos povos”. Daí os objetivos de “ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada”; de “procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa”; de agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna” e de “estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa”. Tratava-se de preocupar a opinião com o estudo das ideias que deveriam “presidir a uma revolução”, preparando e iluminando a consciência pública. Procurava-se uma base para uma “constituição futura”, mas também uma “sólida garantia à ordem”. E o grupo que lançava o repto democrático – Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Saragga e Teófilo Braga – pedia o “concurso de todos”, partidos, escolas, pessoas, que, mesmo sem partilhar as opiniões dos subscritores do apelo de 16 de maio de 1871, não recusassem a sua atenção “aos que pretendem ter uma ação – embora mínima – nos destinos do seu país, expondo publica mas serenamente as suas convicções e os resultados dos seus estudos e trabalhos”. À distância do tempo, podemos perceber pelo menos duas coisas: por um lado, estavam nesse grupo os intelectuais que maior influência teriam na sociedade do seu tempo e no século seguinte; por outro, agitavam as ideias fundamentais que marcariam a sociedade, a economia, a política e a cultura daí em diante. E se a proibição de uma das Conferências e a indignação, a começar no patriarca liberal Alexandre Herculano, tornaram ainda mais célebre a iniciativa, projetando-a em termos que não estaria nas previsões dos seus promotores, a verdade é que a palestra de Antero “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” tornar-se-ia um ensaio obrigatório para compreender a ascensão e a queda da influência de Portugal e Espanha. “Façamos nós (…) diante do espírito de verdade, o ato de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar”. “Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa-fé e na tolerância recíproca!” As causas da decadência eram de três ordens – moral, política e económica: as transformações religiosas do Concílio de Trento, o fim das liberdades locais por força do Absolutismo e o efeito funesto das riquezas provenientes das conquistas, por contraponto à liberdade moral, à emergência de uma classe média burguesa e à afirmação da indústria… E contra um quadro de “abatimento e insignificância”, haveria que contrapor o “espírito de independência local” e a “originalidade do génio inventivo”. Eis a atitude de Antero, como representante da geração nova.
A célebre fotografia que se reproduz foi tirada no Palácio de Cristal na Cidade do Porto e reúne cinco amigos da geração de 1870: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. A imagem está ligada a um mítico almoço de 1885 e à compra de um leque para oferecer a D. Emília, noiva de Eça, autografado com uma pena de cozinha, entre a pera e o queijo: “quem muito ladra, pouco aprende” (Antero), “escritor que ladra não dorme” (Oliveira Martins); “dentada de crítico, cura-se como pelo do mesmo crítico” (Ramalho), “cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso” (Eça), “cão de letras, cachorro!” (Junqueiro). E a matilha escreveu um “envoi”: “São cinco cães sentinelas / De bronze e papel almaço; / De bronze para as canelas, / De papel para o regaço”… Esta é uma das últimas expressões felizes do tempo em que Antero pôde ser feliz na costa de Vila do Conde.
Agostinho de Morais
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