Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA TERRA COM SEU USO

folhetim XX _ a parodia.jpg

 

XX.  O fim do século XIX e a crise – o Portugal saudosista e decadentista

 

O PNB per capita era em Portugal no ano 1860 de 86% da média dos países desenvolvidos e passa para 45% no início do século XX. Isto aconteceu apesar de uma política de melhoramentos, tantas vezes à custa da dívida pública. Tal desfasamento em relação à Europa deveu-se ao facto de a sociedade industrial ter favorecido um crescimento muito mais rápido nos países desenvolvidos, graças às economias de escala. Pesou o diferente potencial de crescimento entre os países industrializados e as economias menos dinâmicas como a portuguesa, presa à ruralidade e ao atraso. Apesar das importantes mudanças estruturais operadas pela Regeneração, como nos casos dos transportes, da modernização das instituições, bem como do alargamento e aperfeiçoamento dos mercados dos fatores de produção, a verdade é que o potencial de crescimento viu-se reduzido. Alguns números merecem especial atenção. Se pensarmos nos citados melhoramentos, a rede rodoviária portuguesa era de apenas 476 quilómetros construídos em 1860, contra 11 754 em 1900, e a rede ferroviária tinha 69 quilómetros contra 2867 nas mesmas datas. Olhando as Finanças Públicas, temos uma progressão moderada das receitas públicas depois de 1850, com um crescimento muito lento do produto interno, o que conduziria à crise financeira dos anos noventa. As despesas efetivas do Estado correspondiam a 4,3% do PIB na década de 1850 e a 5,6% na década de 1890. No entanto, segundo Maria Eugénia Mata, apenas 38% das receitas da dívida pública foi aplicado em despesas de investimento reprodutivo, sendo o restante absorvido por gastos correntes – com forte penalização das novas gerações. Para Magda Pinheiro, o investimento em despesas reprodutivas foi mais lento do que o desejável. Nestes termos, a eficiência dos melhoramentos ficou aquém do que se pretendia, no sentido de criar recursos para amortizar o endividamento. Os encargos com a dívida pública passaram de 20,5% na década de 50, para 40,2 na década de 90. Veja-se, pois, que o modelo não se revelou sustentável. Se a Regeneração atraiu investidores para as obras públicas, outro tanto não aconteceu no fim do século, em face da ineficiência do modelo económico e da incapacidade reformista dos governos, incapazes de aproveitar condições excecionais de estabilidade institucional. Tudo se agravou em virtude da crise internacional do fim do século.

 

Os anos 1890 foram de recessão económica: o PIB a preços correntes cresceu apenas 1,6% ao ano na década de 1889 a 1899, enquanto na década anterior tinha registado um crescimento de 3,3% ao ano. O certo é que os investimentos públicos, nomeadamente em infraestruturas, praticamente pararam na década de 90, pelos constrangimentos financeiros internacionais (bancarrota da Argentina, quebra da banca britânica, abandono do padrão-ouro e suspensão do pagamento de parte da dívida externa, que culminaria no Convénio de 1902). Das crises que atingiram a economia portuguesa na segunda metade do século (1853-58; 1867-70; 1889-92) a última foi a que mais afetou as condições de vida dos cidadãos, desencadeando subida de impostos, aumento do desemprego, baixa de salários reais, redução do horário de trabalho e migrações internas (para o sul e para as cidades) e externas (para Espanha e Brasil). Jaime Reis interroga-se sobre o porquê da persistência do atraso português na segunda metade do século XIX, em especial no tocante à expansão do sistema educativo, sobretudo quando «estava definitivamente redistribuída a propriedade da Coroa e da Igreja, tinham sido abolidas as principais instituições do Antigo Regime e estavam efetivamente reconciliadas as grandes famílias políticas que se tinham guerreado com ardor durante as primeiras décadas de Oitocentos. Os motins ocasionais que ainda se registaram em reação a questões fiscais ou de propriedade, ou simplesmente, por manipulação de políticos desencantados e descontentes, estavam longe das convulsões populares de 1808-1809 ou da cruel violência das guerras civis dos anos 1830 e 1840». Surge, assim, a dúvida sobre a razão por que uma sociedade com relativa estabilidade não foi capaz de reorganizar a instrução pública e de combater o analfabetismo. E, perante o contraste com outras sociedades europeias com fortes conflitualidades, surge a hipótese explicativa de que «num quadro de maiores tensões, mais forte teria sido a vontade de educar». Temos, pois, que a sociedade e a economia se revelaram incapazes de corresponder aos desafios das reformas e dos investimentos. O impulso republicano procurou criar condições para um sobressalto económico e social, mas as fragilidades da representação política não alcançaram os desígnios propostos.

Agostinho de Morais

 

 

» Cada Terra com seu Uso no Facebook

 

 

O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (2)

max-scheler_legendado.jpg

 

2. O que sou? Quem sou?

 

O que é o Homem? 

Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa lista quase interminável, as tentativas de resposta: animal que fala, animal político (Aristóteles); animal racional (os estóicos e a Escolástica); realidade sagrada (Séneca); um ser que pensa (Descartes); uma cana pensante (Pascal); um ser que trabalha (Marx); um animal capaz de prometer (Nietzsche); um ser que cria (Bergson); um animal que ri, um animal que chora, um animal que sepulta os mortos... Saído da gigantesca aventura cósmica com uns 14.000 milhões de anos, o Homem tem, segundo Edgar Morin, “a singularidade de ser cerebralmente sapiens-demens” (sapiente-demente), ter, portanto, com ele “ao mesmo tempo a racionalidade, o delírio, a hybris (a desmesura), a destrutividade”.

Também o filósofo André Comte-Sponville apresentou a sua “definição”, que julga suficiente: “É um ser humano qualquer ser nascido de dois seres humanos.” Mas será mesmo suficiente? O que dizer em relação aos primeiros seres humanos que, na história da evolução, não nasceram de outros humanos? Esta é uma questão assombrosa: sim, quem foram os primeiros e como é que foram tomando consciência de si? Nunca se saberá quem foi o primeiro que disse “eu”. E se amanhã se der a clonagem e a partenogénese?

Os grandes espíritos - Diderot, por exemplo - deram-se conta de que o que somos não pode ser encerrado numa definição. O Homem é o ser que leva consigo a questão do ser e do seu ser e que originária e constitutivamente pergunta: o que é o Homem? O que, antes de mais, une a Humanidade toda é precisamente esta pergunta: o que é o Homem, o que é ser ser humano?

Se o chimpanzé, por exemplo, também sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e inventa, o que é que nos distingue? Parece estender-se cada vez mais a tentação de pensar que o Homem é um animal entre outros. Se diferença houvesse, não seria essencial e qualitativa, mas apenas de grau. Mas quem anda atento reconhecerá com certeza que a diferença entre o Homem e os outros animais não é apenas de grau, mas essencial e qualitativa. Pelo menos, é preciso manter a pergunta.

Também o Homem é corpo, mas um corpo que fala e que diz eu. Ora, um corpo que produz sons duplamente articulados, portanto, transportando sentido, é um corpo que transcende a animalidade.

O Homem é capaz de renunciar à satisfação imediata dos seus impulsos: é “o asceta da vida”, escreveu Max Scheler. Por isso, é capaz de jejuar e ergueu, por exemplo, um edifício jurídico-penal, para evitar a vingança cega, dirimir diferendos, não fazer justiça pelas próprias mãos.

Quando vemos um animal sentado, de olhos fechados, com a cabeça entre as mãos, estamos em presença de um Homem que pensa e medita. Está ensimesmado, entrou dentro de si próprio, desceu à sua intimidade, submerso na sua subjectividade pessoal.

Afinal, há muito de idêntico em nós e no chimpanzé, “no mono e no Papa”, disse ironicamente o filósofo confessadamente ateu Michel Onfray. O professor de filosofia e o chimpanzé têm necessidades naturais comuns: comer, beber, dormir. A etologia mostra que há comportamentos naturais comuns aos animais e aos humanos. Veja-se, por exemplo, as relações de violência e de agressão e compare-se inclusivamente os rituais de cortejamento sexual. Mas é interessante constatar que já na resposta às necessidades naturais há uma diferença: os homens inventaram a cozinha e a gastronomia e também o erotismo.

M. Onfray acrescenta: “O Homem e o animal separam-se radicalmente quando se trata de necessidades espirituais, as únicas que são próprias dos homens e das quais não se encontra nenhum vestígio – mínimo que seja – nos animais.” Há nos humanos uma série de actividades especificamente intelectuais, que os distinguem radicalmente dos monos: nestes, não encontramos filosofia nem religião nem arte...

A tentativa de compreendê-lo no quadro de um materialismo mecanicista ou do biologismo não dá conta do Homem. De facto, o animal é conduzido, em última análise, pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à fêmea no período do cio, não resistirá. O Homem, pelo contrário, é capaz de transcender a dinâmica biológica. Por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir, dizer não. Foi neste sentido que, repito, Max Scheler, um dos fundadores da Antropologia Filosófica, escreveu que o Homem é “o asceta da vida”, o único animal capaz de dizer não aos impulsos instintivos.

Esta é a base biológica da conduta moral, uma característica essencialmente específica humana. Uma vez que o Homem é capaz de ponderar, renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral.

O Homem é corpo, mas um corpo que fala. Porque fala, é capaz de debater questões como a da diferença com os outros animais, defender pontos de vista, distinguir o bem e o mal, tomar posições sobre valores morais, políticos, religiosos, estéticos, filosóficos.

Então, o enigma é este: provimos da natureza, mas contrapomo-nos a ela, somos simultaneamente da natureza, na natureza e fora dela. Monos e humanos têm a mesma origem, mas os humanos têm originalidades únicas e irredutíveis.

O Homem é o ser da pergunta e a pergunta por si mesmo caracteriza-o:
O que é o Homem? O que sou? Quem sou?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 de agosto de 2024