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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA TERRA COM SEU USO

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XXVI.  Portugal hoje - que relacionamento com a Europa e o Mundo?

 

A cultura europeia é pluralista, dinâmica e renovadora. Longe de uma identidade harmonizadora ou de uma lógica de uniformidade, o “património comum” leva-nos, na lógica da herança e da tradição, ao bem comum europeu, como ação inovadora como fator de coesão, de harmonia e de emancipação. A identidade europeia é construída por várias identidades, é plural, é complexa, é multifacetada. Não há, pois, uma “comunidade de destino”, mas uma comunidade plural de destinos e valores. Falar de identidade europeia é, assim, referirmo-nos à complexidade, a uma realidade não confundível com um bloco monolítico, diferente das nações e dos povos que a constituem. Daí que a legitimidade europeia seja de Estados e povos, e que a realidade “constitucional” da Europa não seja um sucedâneo ou um substituto das “constituições nacionais”. Continua a ser tempo de seguir uma via de “euro-realismo”, já que andar para trás “seria regressar a formas de centralismo, autoritarismo e subdesenvolvimento paroquial”. No fundo, sem uma sábia ligação entre as legitimidades dos Estados e dos cidadãos, arriscar-nos-emos a criar uma realidade efémera, artificial e reversível sem ligação efetiva ao mundo da vida. Só uma forte vontade comum ajudará a superarmos o fosso entre as instituições europeias e as pessoas.

 

Continente de contrastes unido pelo conteúdo, acessível, recortado, temperado, em que a variedade é a regra, a Europa não é uma Babel nem uma terra de ninguém. Terra de conflitos e de contradições, de guerras civis, de competição e de combate, alberga uma constante procura de equilíbrio e de síntese através de várias influências, etapas e polos. “É o dualismo entre fé e lei que, desde o início, torna possível o crescimento da liberdade e das liberdades – porventura o maior anelo e fator de dinamismo da história europeia no seu conjunto. Braudel considera que ‘liberdade’ – não apenas a individual mas também a das cidades, dos grupos e das nações – é mesmo a palavra-chave dessa história” – como lembra Francisco Lucas Pires. Assim, é possível ler “uma história através de várias histórias”, desde as raízes greco-romanas, das invasões bárbaras e da conversão cristã da Europa, para chegar à “coroação poética” da “Divina Comédia” e a uma “cultura comum europeia”, segundo a expressão feliz de T.S. Eliot, continuando essa rota na crise da República Cristã e na vida da Europa dos tempos modernos. Seguindo Paul Valéry, é fundamental reter a emergência de uma grande síntese na identidade originária da Europa enquanto “legado greco-romano mais cristianismo”. A história moderna abre, assim, campo às diferenças e a uma conflitualidade decorrente da competição gerada no Renascimento e continuada no iluminismo, no liberalismo, na revolução social do industrialismo e na mundialização.

 

À tentativa de criar condições para a emancipação nacional com equilíbrio e tolerância entre os Estados, sucede a autarcia e o fechamento. E em 1914, depois de a “Primavera dos Povos” (1848) ter-se inclinado para os nacionalismos protecionistas, a Europa como possibilidade de ação em comum deixou de existir pelas suas contradições nacionais. E foi a devastação da guerra e a necessidade de reconstrução que fez regressar à ordem dia um programa europeu, no contexto de uma paz ameaçada e segundo o modelo de Jean Monnet de “integração funcional”. Tratava-se de garantir a partilha de soberanias e a salvaguarda de um projeto assente nos valores comuns da liberdade (cidadania europeia), da democracia (codecisão e esboço de democracia parlamentar nas relações entre a Comissão e o Parlamento), do desenvolvimento (moeda única e coesão), e da segurança (política externa e de segurança comum e cooperação policial e judicial), fatores de efetiva complementaridade. Eis a base do método comunitário e da subsidiariedade e a necessidade de seguir um caminho de construção gradual das instituições supranacionais e de respeito escrupuloso pela iniciativa cívica e pelo que está mais próximo dos cidadãos, que prevaleça sobre o que está mais distante das pessoas (os Estados e a democracia supranacional). A ideia de “Europa connosco” não corresponde nem a uma subalternização, nem a um fechamento, mas à abertura de horizontes, a uma geometria variável e à participação numa globalização baseada na paz e na cooperação.

Agostinho de Morais

 

 

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 26 de agosto a 1 setembro de 2024

 

Ao lermos o “Diário Incontínuo” de Mário Cláudio (D. Quixote, 2024) apercebemo-nos da vida heterogénea do escritor.

 

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No Diário Incontínuo de Mário Cláudio (D. Quixote) encontramos fragmentos, confidências e inconfidências. “As personagens da chamada ‘vida real’, e ao contrário das da ficção, acabam inexoravelmente por transcender o destino que se lhes previu. Daí que não seja necessário averbar-lhes com minudência as andanças, não vá instalar-se no texto a incoerência, isto porque o itinerário que desenham escapa a todas as tabelas”. O diário é um modo de acompanhar a vida real, por isso permite antever destinos e imaginar enredos. Não se trata neste caso de um percurso exaustivo, mas de apontamentos significativos. Não temos, por exemplo, os fastos do serviço militar, os períodos que bordejam a Revolução de Abril ou o tempo da escrita dos primeiros romances, bem como a permanência no Reino Unido ou parte da estada em Veneza… Mas nesses pontos, os leitores do romancista são levados a lembrar os testemunhos ilustrativos do inconfundível Tiago Veiga e de Astronomia. Eis como nos deparamos com as personagens da “vida real”, que constituem, no fundo, a matéria-prima da ficção, a começar no prolífero autor, que é o que mais importa quando nos embrenhamos nos mistérios da narrativa.

 

COMPRA AUSPICIOSA

Quando testemunhamos em Salisbury a compra auspiciosa do primeiro volume de Modern Painters de Ruskin, numa convergência natural com o mundo das artes, também recordamos William Beckford, regressado de Portugal, com memórias inesquecíveis. É, porventura, a melhor crónica de um viajante estrangeiro sobre este país à beira-mar plantado. E inesperadamente deparamo-nos com a paixão do autor pelas adoráveis histórias de Beatrix Potter. O rol de lembranças vai-se sucedendo: a morte de Carlos de Oliveira, a presença de Graça Lobo no esteio de António Nobre, e a recorrente leitura de Eugénio de Andrade e de Vasco Graça Moura e do seu mundo. E Veneza surge como a cidade de todo o mistério e magia. “É claro que a maior dificuldade nesta cidade, consiste em descobrir alguns momentos – o Giovanni Bellini, de San Zaccaria; o Giambattista Tiepolo, na Scuola del Carmine; o Cima da Coneglieano, na Chiesa del Carmine – contra uma horda de turistas que só pretende conquistar os grandes lugares”. E a virtude da viagem é sempre acompanhada pelo desejo do regresso. As recordações misturam-se nostalgicamente entre a lembrança da partida e da chegada. E estamos sempre gostosamente a regressar a Venade, à Casa da Ramada. “Eis-me nos campos de Venade, por entre uma nuvem enorme, de insetos rumorejantes, que muito agradaria ao ouvido de Bartók, e que surgiu, pelo cair da tarde de hoje, logo após uma curta trovoada e um aguaceiro brevíssimo”… “A Casa da Ramada, as estrelas por cima do telhado, as folhas largas da videira, tudo me pertence, afinal”.

 

UM ALBUM FOTOGRÁFICO

O livro é um extraordinário álbum fotográfico, com relatos familiares, com a presença de amigos, com animais de estimação, visitas diversas, exposições, leituras de livros e recordações de viagens e com a beleza dos pequenos instantes. Desfilam Manoel de Oliveira, José Rodrigues, Carlos Avilez, António Lobo Antunes e Gonçalo M. Tavares demonstrando que a cultura pressupõe sempre a conversa e o saber ouvir. Uma afirmação de Chateaubriand no segundo volume das Memoires d’Outre-Tombe atrai especialmente o escritor: “Felizes aqueles em quem a idade tem o efeito do vinho, e que perdem a memória quando estão saciados de dias”. Esta a chave das lembranças e das narrativas. A memória apenas se perde quando se consumam os projetos, mas a lembrança não pode sucumbir enquanto a esperança persistir. Numa visita a Agustina, os temas de conversa são múltiplos: o Brasil, a Europa, os judeus e os arianos, “os poderes secretos, num espírito larguíssimo de conciliação e fervor. Cita-me de Paracelso, que lê agora duas frases. ‘A fé é o oculto’, a primeira; ‘Não sou da raça das violetas’, a segunda, que diz gostaria de vir a usar numa autobiografia que escrevesse. Oferece-me um exemplar da tiragem especial de Sebastião José, com uma belíssima dedicatória. Acontece isto exatamente no dia em que concluo a leitura da edição normal, e me pergunto como resistir à grandeza desta prosa inarticulada, tanto mais saborosa como descosida, de modo igual àquilo que faz de um pudim deformado iguaria maior do que, tantas vezes, o pudim escorreito”. A genialidade de Agustina está exatamente nesse culto da aparente imperfeição. É o culto do paradoxo que permite ir além do lugar-comum. Em cada afirmação inusitada está a razão de ser de uma explicação, que permite entender o que no íntimo caracteriza uma personalidade e explica uma atitude. E em Sebastião José encontramos a síntese de uma personagem que pôde lançar pistas novas no sentido de uma sociedade reformada, pelo encontro da razão e da desrazão. E Agustina encontra-se num terreno de eleição, desenhando uma figura plena de determinação e perversidade.

 

A VIZINHA GALIZA

Em plena Galiza, em Ferrol, Mário Cláudio apercebe-se de que os ventos da história, em geral são bem menos frescos do que uma brisa poderosa carregada de maresia que varre a retilínea Rua de Dolores. Do ditador Franco já não se fala, antes permanece uma placa de bronze que refere José Saramago e Gonzalo Torrente Ballester, outro amigo, este sentado à direita de Cervantes, para glória das letras ibéricas. Mas, este Diário Inconcluso faz confluir a realidade e a ficção, e em 27 de abril de 2010 lemos a anotação cronológica, rigorosa e fantasmática, como se de realidade efetiva se tratasse (e quem o duvida?): “suicida-se Tiago Veiga na sua Casa dos Anjos em Venade, Paredes de Coura, isto é, aos 7 de Agosto de 1988. Revendo as provas tipográficas de Do Espelho de Vénus, de Tiago Veiga, dou-me conta de como pode a poesia consolar-nos quando a prosa apenas nos satisfaz”. Talvez possamos dizer que nesta anotação se encontra a razão de ser da incontinuidade deste diário, cuja leitura e compreensão nos obriga a encontrarmo-nos com o romancista que faz da escrita a companhia permanente da vida. E não esqueço o encontro que tivemos em Paredes de Coura com o escritor a recordar-me raízes comuns da minha própria ancestralidade. Por isso, encerro esta recensão, citando Etty Hillesum, morta num campo de concentração: “Há a cólera da revolta perante uma injustiça, e a cólera de a termos causado. Eu vou ajudar-te, meu Deus, a não te extinguires em mim. Desde que a totalidade esteja perdida, tudo se torna arbitrário. Há sofrimento dos dois lados de todas as fronteiras, e é preciso rezar por todos”.

Guilherme d'Oliveira Martins