Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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«Deus - A Ciência - As Provas – A Alvorada de Uma Revolução» (D. Quixote, 2024) de Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies constitui um documento importante com interrogações que nos permitem compreender que o tempo das conclusões definitivas sobre a ciência, o universo e a vida terminou, dando lugar à abertura de espírito.
UM DESAFIO A PENSAR A obra que acaba de ser publicada em Portugal, dada à estampa em França em 2021, resultou de três anos de labor envolvendo vinte cientistas e especialistas dos temas tratados, correspondendo a um trabalho hercúleo, envolvendo quatro séculos de descobertas científicas, de Copérnico a Freud, passando por Galileu e Darwin. Se as descobertas se acumularam de modo espetacular nesse tempo, a verdade é que, depois do otimismo positivista do início do século XX, sucedeu a oscilação do pêndulo da ciência num sentido da ponderação de novos fatores ditados pela descoberta da teoria da relatividade, da física quântica, da expansão do Universo e da complexidade da vida. Os novos conhecimentos abalaram as certezas consagradas e permitiram considerar a lógica materialista como uma crença como tantas outras, com o risco de se converter num entendimento contrário à razão. Eis por que motivo é importante esta obra, cujos autores apresentam em linguagem acessível e de uma forma aberta e crítica, um panorama rigoroso das provas possíveis da existência de Deus. Longe de uma perspetiva confessional, estamos perante a apresentação de um percurso complexo, que não para e que nos obriga a refletir. O objetivo dos autores é apresentarem os elementos necessários para pensar sobre a questão da existência de um deus criador, que se põe em termos completamente novos. A leitura é de facto apaixonante e pressupõe uma evolução, que se traduz numa “grande inversão” em cinco séculos de descobertas desde o crescimento ao declínio das ideias “materialistas”. Senão vejamos. Há um primeiro ciclo que envolve, desde 1543, o heliocentrismo de Copérnico e Galileu, a gravitação de Newton, a idade da Terra de Buffon, o determinismo de Laplace, a evolução de Lamarck, a seleção natural de Darwin, a dialética de Marx e a psicanálise de Freud. Depois abre-se o segundo ciclo da termodinâmica e da morte térmica do Universo, com Carnot, a mecânica quântica e o princípio da indeterminação de Max Planck, Heisenberg e Bohr, a relatividade, a expansão do Universo e o Big Bang, de Einstein e Friedmann, o teorema da incompletude de Gödel, a descodificação do genoma de Watson e Crick, o descrédito das teorias de Freud e o colapso do bloco soviético, a refutação do Big Crunch e o princípio antrópico do astrofísico Brandon Carter. Como afirma no prefácio Robert W. Wilson, prémio Nobel da Física (1978): “vivemos num desses multiversos que beneficiou de boas constantes para nos engendrar como descreve o princípio antrópico bem conhecido. Na minha opinião, porém, nenhuma destas hipóteses avança uma explicação científica convincente sobre a forma como, afinal, o Universo pode ter começado”. Caminhamos numa via de tentativa e erro, não sabendo o suficiente para ser intolerantes, como nos ensinou Karl Popper. Daí a importância de se explorar a ideia de um espírito ou de um Deus criador, que encontramos nas numerosas religiões.
DOIS GÉNIOS Albert Einstein ajuda-nos a perceber esta obra, afirmando: “Não sou ateu e não creio que possa dizer-me panteísta (…). O que me separa da maioria daqueles a que se chama ateus é o sentimento de uma humildade total perante os segredos inacessíveis da harmonia do cosmos. (…) Os ateus fanáticos são como escravos que continuam a sentir o peso das suas grilhetas que rejeitaram após uma luta encarniçada. São criaturas que, no seu rancor contra a religião tradicional concebida como ‘ópio do povo’, já não conseguem ouvir a música das esferas celestes”. E afirma ainda: “Sentir que, por detrás de tudo o que a experiência consegue apreender se encontra alguma coisa que o nosso espírito não consegue assimilar e cuja beleza e sublime só nos tocam indiretamente sob a forma de um ténue reflexo, isto é a religião. E neste sentido sou religioso”. Por isso, defendia que a religiosidade cósmica seria a mola mais forte e mais nobre da investigação científica. É notável o testemunho de Kurt Gödel, um dos nomes mais importantes no pensamento contemporâneo. Da sua amizade com Einstein em Princeton colhemos este testemunho. “Regresso a casa com Einstein quase todos os dias, e falamos de filosofia, de política e dos Estados Unidos. A religião dele é bem mais abstrata, tal como a de Espinosa ou a da filosofia indiana. A minha é mais próxima da religião da Igreja. O Deus de Espinosa é menos do que uma pessoa, o meu é mais do que uma pessoa, porque Deus não pode ser menos do que uma pessoa. Pode desempenhar o papel de uma pessoa”. Se as religiões estavam cheias de impurezas, haveria que preservar o essencial do fenómeno religioso. E pode dizer-se que Gödel definia assim o seu pensamento: “O mundo não é caótico e arbitrário, mas como mostra a ciência, a maior regularidade e a maior ordem reinam em toda a parte. A ordem é uma forma de racionalidade. A ciência moderna mostra que o nosso tempo, com todas as suas estrelas e planetas, teve um começo e terá provavelmente um fim. Porque haveria, então, de haver este mundo único aqui? Visto que um dia aparecemos neste mundo sem sabermos como, nem de onde, o mesmo pode acontecer de novo num outro mundo da mesma maneira. Se o mundo está organizado de forma racional e tem um significado, então deve haver uma outra vida. Para que serviria produzir uma essência (o ser humano) com tão grande número de possibilidades de desenvolvimentos individuais e de evoluções nas suas relações, mas a quem nunca poderia ser permitido realizar mais do que um milésimo delas? Seria como construir os alicerces de uma casa com grandes dificuldades, e depois deixar tudo ruir”. E assim espírito e matéria são distintos – e esta é a base do teorema da incompletude. “O meu teorema mostra somente que a mecanização das matemáticas, ou seja, a eliminação do espírito e das entidades abstratas, é impossível”. Se há uma conclusão fundamental é a de que, como pretendeu Pascal, qualquer simplificação unilateral é perigosa. Se fossemos testemunhas silenciosas dos diálogos entre Einstein e Gödel em Princeton perceberíamos que a atitude correta é a que nos leva a recusar as opções sem saída. Somos demasiadamente imperfeitos para poder ficar pelas simplificações redutoras. A complexidade reserva-nos inúmeras surpresas e diz-nos que não há uma só motivação para um mesmo acontecimento e que as aparências são profundamente ilusórias.
Vi Roma a arder, e neros vários bronzeados à luz da califórnia guardar em naftalina nos armários timidamente, a lira babilónia; as capitais da terra, uma a uma, desfeitas em nuvem e negra espuma, atingidas de noite no seu centro; mas nunca vi paris contigo dentro. E falta-me esta imagem para ter inteiro o álbum que me coube em sorte como um cinema onde passava «a morte»; solene imperador, abrindo o manto onde ocultei a cólera e o pranto, falta-me ver paris contigo dentro.
I saw Rome burning
I saw Rome burning, and several neros tanned by the californian light timidly stashing away in closets mothballs and babylonian lyres; the world’s capitals, one by one, darkened into froth and cloud, crushed in their core at night; but i never saw paris with you inside. And this is the missing image in my fate-allotted photo album like a cinema showing certain ‘death’; solemn emperor, opening the shroud in which I hid my anger and my plight, I’ve yet to see paris with you inside.
Escuto a "Rusalka" do Dvorak, e penso em ti, ó Princesa das cartas que te escrevo! Serás essa mulher, serás visão, anseio, aparição, sonho místico mais do que amor real? Ao longo deste convívio epistolar, nasceu naturalissimamente, entre nós, uma intimidade antiga, por paradoxal que seja uma antiguidade nascer agora... Sei hoje que este convívio contigo é essencial ao meu equilíbrio interior, à minha alegria. Porque é renúncia a outros momentos e carinhos, tem-me feito perceber que, afinal, posso bem com saudades de coisas boas: a grande saudade de ti é ontológica, não se cura nem engana, faz parte de mim. Vivo continuamente com este sentimento de um encontro único, tão profundo e intenso, de ternura. Ternura inesperada, imerecida e simples, graça que dói por ser impossível alegria. Assim trago, dentro de mim, o inalcançável. Rusalka é o nome eslavo da ondina, ninfa da água ou sereia... Filha de Vodnik, o senhor das águas, a infeliz quer libertar-se das ondas suas irmãs que, todos os dias e noites, a enredam em nenúfares. Quer a liberdade do dia, a glória aparente da luz que, pálida, a desperta nas profundezas do lago. Daí também surge o espírito dos afogados, que procura agarrar e levar ao fundo as ninfas do bosque, que lhe fogem e se riem dele. Rusalka conseguiu trepar por um salgueiro chorão e assiste à frustração de quem, como ela, habita as águas e não é ser humano com pernas para correr à superfície da terra... A seu pai confessa a tristeza de não ser e o anseio de ser humana. Vodnik pergunta-lhe se quer ser infeliz e mortal, e prenuncia-lhe um destino desgraçado se fugir à sua condição de ser aquático. Como era o mundo, penso eu, antes de existir, quando o espírito de Deus pairava sobre as águas. Ou como cada um de nós, de olhos fechados, nas águas do ventre materno. Mas a paixão da ondina é mais forte, é já humana: não resistiu ao encanto de um príncipe que se vem banhar nas águas misteriosas do lago dela, onde ela é só a vaga que o abraça e ele não vê, onde só ela ama e não se sente amada. Por amares humanamente infeliz serás, prediz o pai. Mas infeliz, tão infeliz sou eu agora, pensa ela, pois que o meu amado não conhece o meu amor! E à lua que de tão cheia inunda o ar todo, a floresta inteira, o próprio lago, Rusalka (na mais linda ária da ópera) reza e suplica: Ó lua, que do alto desse céu de veludo rompes a noite e te passeias pela extensão da terra, e vês longe, e com teu olhar afagas os lares dos homens...pára, espera por mim! Diz-me onde está o meu amor! E diz-lhe, a ele, ó lua de prata, que é o meu abraço de água que o encerra, para que de mim se lembre nos seus sonhos! Não me abandones, ó lua, não te vás embora, sem o ires buscar e lhe alumiares o caminho até mim... Diz-lhe que aqui estou, aqui o espero. E se for eu o sonho dessa alma humana, desperta-a para mim! A feiticeira que a libertará e lhe dará pernas, adverte-a: "se não encontrares o amor na terra, viverás repudiada, de novo condenada às profundezas. Se perderes esse amor, que tanto desejas, a maldição dos senhores das águas, no fundo delas outa vez te afogará. E mesmo que encontres esse amor, terás de sofrer, pois nenhum ouvido humano poderá escutar-te... Queres tu ser muda para quem amas? A resposta da ondina é trágica: - "Se for para conhecer o seu amor, podes crer, que com prazer aceitarei ser muda!" Mas poderá, mesmo tão generoso e puro, se for já humano, um amor vencer tantos sortilégios? A ópera de Antonin Dvorak, seguindo o libreto de Joraslav Kvapil, diz que não. Nenhum amor humano vence a sua condição. Pela alvorada, o príncipe vai correndo o seu ginete em perseguição de uma gazela branca e maravilha-se com a descoberta de Rusalka, muda e branca, branca, fria e bela... Arrebata-a para o seu palácio. Anunciam-se as bodas do príncipe com a senhora do seu encantamento. Mas a ondina permanece muda e fria... Em desespero do seu anseio, o noivo cai na trama de uma princesa estrangeira que o cobiça. O ciúme de Rusalka frustra-a ainda mais de uma redenção possível do anseio amoroso. Só se liberta da mudez que a torna incomunicável chamando pelo pai, Vodnik,o senhor das águas, que finalmente a arrasta para as profundas do lago. De onde a ondina, lembra-lhe a feiticeira só poderá libertar-se apunhalando o príncipe, fazendo correr o sangue humano, vermelho e quente que ela em si não tem. Rusalka nega-se, mas, fogo fátuo, aparecerá ao amado que a procura no bosque, e pela derradeira vez o abraçará, pela primeira o beijará. Sabendo ambos que esse beijo o matará. Mas nós não sabemos se esse príncipe que por amor morre irá, nos braços feiticeiros, poderosos e impotentes, da onda Rusalka, perder-se com ela na eternidade das águas iniciais. O dueto final é, mais ou menos, assim: Príncipe - "Quero tudo, e tudo dar-te! Beija-me, beija-me mil vezes! Não quero regressar, prefiro morrer! Beija-me, dá-me a paz!" Rusalka - "O meu amor arrefece qualquer sentimento: devo destruir-te, devo acolher-te no meu abraço de gelo... Pelo teu amor, pela tua beleza, pela tua paixão tão humana e tão inconstante, por tudo o que causou a maldição do meu fado, por todo esse tanto, alma humana, Deus te guarde!" A sereia inefável, silenciosa, e tão pálida que é invisível transparência, é a forma enigmática desse anseio que connosco nasce, que nenhum desejo realizado satisfaz, nem ilusória posse iludirá. Ser humano é querer sempre mais, é o desejo de chegar ao impossível. Mas só a verdade nos libertará. E a verdade em que acredito é uma promessa: a de que, no fim deste percurso, veremos o invisível, poderemos o impossível, e encontraremos, lá no fundo das águas que nos engolem, a luz que ainda não temos bem a certeza de ver acesa dentro de nós. Talvez por ela, todavia, haja sorrisos e olhares que trocamos, uma mão estendida e dada, uma palavra, um apoio, uma entrega, que dão à generosidade dos homens a dimensão da misericórdia de Deus". Não sei em que registo o marquês de Sarolea escutou a "Rusalka". Ao ler e traduzir esta carta, pus a tocar, para mim, a versão de Sir Charles Mackerras, com a Orquestra Filarmónica Checa e a comovente Renée Fleming. Camilo Maria preferiu a canção à lua. Eu quase chorei ao ouvir o lamento da ondina, a abrir o acto III: "Força insensível da água, outra vez me arrastaste para o fundo... Porque não poderei, então, desaparecer, desaparecer finalmente?... ...Onde estás tu, ó magia das noites de Verão, sob os cálices dos nenúfares? Porque não poderei eu, no desamparo deste frio, perecer, perecer finalmente? "Mas a fluidez musical do drama tem uma beleza contínua e secreta, como se a sensualidade da própria vida antes perguntasse: Porque não poderei eu viver, viver finalmente? Como no fim da "Traviata" - que é também um rio de música - a morte surge como passo para o realizável. Para o encontro.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 01.10.13 neste blogue.
190. A GEOMETRIA VARIÁVEL NA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Se a liberdade de expressão implica a liberdade do outro se poder exprimir, exige ter de ouvir o que não gostamos, aceitar a controvérsia e a discussão, dado que, quando não é assim, não somos incomodados, questionados ou perseguidos, limitando-nos a aceitar o que é a norma e o usual, não havendo liberdade.
Sendo um direito de geometria variável, é difícil definir até onde pode ir, tendo de ser avaliada caso a caso e no seu contexto, havendo vários graus de avaliação e de aplicação.
Se aceitamos ser redundante o questionamento sobre gostos e que é supérfluo levá-lo a tribunal, desde que não seja um crime ou uma ilegalidade, também o é se uma pessoa razoável, naquele contexto e caso concreto, não acreditar que o que ouviu, foi dito, escrito ou publicado não corresponde à verdade, uma vez estarmos perante uma paródia humorística, literária, sarcástica ou satírica, de mau gosto, escárnio e maldizer, caricaturando, criticando e ridicularizando em tom cáustico e mordaz, ou provocando o riso.
O mesmo releva se levarmos a sério o direito à asneira quanto a uma ancestral e longa plêiade de anedotas, clichês, estereótipos, preconceitos, vulgaridades, dizeres e lugares-comuns, transversal a todos os países, que não têm potencial ofensivo, difamatório ou injurioso, em termos criminais ou de mera ilegalidade.
São de proibir, porque atentatórios e ofensivas da liberdade de expressão, anedotas, fábulas, histórias, adágios, provérbios, ditados populares, preconceituosos e sem qualquer validade científica, sobre alentejanos, algarvios, minhotos, portuenses, lisboetas alfacinhas, queques da linha, portugas em geral, judeus, monhés, chineses, pretos, branquelas?
Trata-se de expressões ou situações vulgares e preconceituosas, com as quais podemos não concordar, mas sem potencial ofensivo, não discriminando negativamente e de modo essencial os visados, não os humilhando de tal modo que seja posta em causa, de forma grave, a sua dignidade e segurança, sob pena de amputarmos e proibirmos a liberdade de expressão, só porque uma apreciação pessoal ou generalizada nos incomoda, mesmo reconhecendo que se trata de uma opinião/vulgarização ignorante e injusta.
O melhor meio de superar esses chavões e preconceitos é exercer a liberdade de expressão com sentido crítico, escrutinando e reduzindo ao ridículo a asnice, o disparate, o preconceito e a tolice, cada um por si e ouvindo os outros, sem necessidade de arautos do politicamente correto e de uma presumível superioridade ética, intelectual e moral.
Há um medo severo de não se sentir que se pertence e que se é amado e respeitado pelo que se é ou pelo que se foi.
Também há um medo de que a nossa história possa ser apenas uma complicação desinteressada e desatendida por não sermos a pessoa que queríamos que os outros em nós reconhecessem.
Muitos tipos de medos de domínio ou predação desencadeiam em nós vontades inequívocas de que se instale uma distância dos outros que não nos perigue.
Na verdade, continuamos deficitários nas várias formas de comunicarmos a própria legibilidade dos estados emocionais, e temos a noção de que a transparência gera vulnerabilidades irrecuperáveis.
O medo que envolve o olhar do outro sobre nós, o olhar cheio de truques que nos sonda e irá aferir, alerta-nos para o não tonificar as relações todas do mesmo modo.
De resto, até dentro de um elevador os olhares evitam-se já que não queremos acrescentar nada mais à intimidade física imposta.
O mesmo acontece noutras situações relacionais que variam de pessoa para pessoa e de acordo com a sensibilidade de cada um.
Também o medo que muitos sentem por se sentirem em desconforto face ao abrandamento de várias relações, leva-os a exigir explicações numa ansiedade que lhes facilite o entendimento e os acomode apenas no seu raciocinar-sentir.
Ora o que se vê e se ouve e o que não se vê e se sente fazem parte de uma capacidade de desempenho interpretativo que não pode violar a esfera da legibilidade que se oferece.
É natural que surja mesmo uma menor motivação de conversarmos com outros, interpretando ela, um medo-alerta de que a diversidade pode não se mostrar necessariamente como algo favorável naquele tempo da vida.
Uma sociedade menos excludente do compreender a tempo as perceções, identificaria as emoções que levam ao medo no diagnóstico do que o precede.
Afinal a cada um o seu desconforto, ou mesmo o medo de que a máscara não assuma que o fundo comum é de todos, e que a diferença é complexa e pasmosa de singularidades, e que juntas, poem em perigo a aventura humana antes mesmo do privilégio do ponto de viragem.
A atribuição do Prémio da Feira Internacional do Livro de Guadalajara a Mia Couto corresponde ao reconhecimento da importância da língua portuguesa como realidade multipolar, enquanto língua universal de várias culturas. Elogiando o fecundo ensaísta que foi o Embaixador Alberto da Costa e Silva, o escritor moçambicano agora laureado salientou a grande capacidade do académico brasileiro para compreender memória de África e um persistente trabalho de resgate baseado na relação complexa assente na diversidade. Mia Couto é hoje um intérprete imaginativo da língua viva que partilhamos, capaz de ouvir e de compreender o que dizemos por forma a usar a plasticidade do idioma para aprender melhor a realidade que construímos e que nos cerca. Ao lado de João Guimarães Rosa, a recriação vocabular de Mia Couto permite-nos entrar no “falar errado do povo, língua certa do povo”, que Manuel Bandeira sempre procurou. E as palavras ecoam e progridem: pensatempos, estórias abensonhadas, recusa do queixandar. O reino inesgotável da imaginação.
Mia Couto é o quinto autor de língua portuguesa a receber este prémio, depois de Nelida Piñon (1995), Rubem Fonseca (2003), António Lobo Antunes (2008) e Lídia Jorge (2020). A sua obra é a ilustração do que um dia afirmou: “As culturas sobrevivem enquanto se mantiverem produtivas, enquanto forem sujeito de mudança e elas próprias dialogarem e se miscigenarem com outras culturas”. E qual a responsabilidade do escritor? “Para com a democracia e com os direitos humanos, é toda”. Porque o compromisso maior do escritor é com a verdade e com a liberdade. “Para combater pela verdade, o escritor usa uma inverdade: a da literatura. Mas essa é uma mentira que não mente”. E disse-nos ainda: “O único conselho que dou é este: devemos escutar. Tornarmo-nos atentos a vozes que fomos encorajados a deixar de ouvir. Tornemos essas vozes visíveis. E mantenhamos viva essa capacidade que já tivemos na nossa infância de nos deslumbrarmos. Por coisas simples, que se localizam na margem dos grandes feitos (…). O que importa do ponto de vista do escritor é a capacidade que essa personagem tem de suscitar história e de nos revelar facetas da nossa própria humanidade”. Leia-se uma obra riquíssima, como há poucas: Terra Sonâmbula, Mar me Quer, O Último Voo do Flamingo, Um rio Chamado Tempo e uma Casa chamada Terra, ou a trilogia Mulheres de Cinzas, A Espada e a Azagaia, O Bebedor de Horizontes. A história antiga deve ser recordada. É tão vital errarmos como acertarmos. Mergulharmos nas origens permite-nos ver melhor o caminho a percorrer. E O Mapeador de Ausências trouxe-nos de volta um tempo de memórias duras e trágicas a que devemos sempre regressar para que se não repitam. Mais do que ressentimento, importa a lembrança das palavras que é uma sementeira de vida e de esperança. E voltamos a ouvir as personagens fundamentais de Grande Sertão – Veredas de Guimarães Rosa – Riobaldo e Diadorim – “Porque sertão é dentro da gente” ou “Deus existe mesmo quando não há e o demónio não precisa de existir para haver”. Aguardamos por estes dias o novo romance de Mia Couto A Cegueira do Rio e ouvimo-lo: “Assusta-me este medo que existe hoje da complexidade; que andemos à procura de milagres messiânicos para salvar o mundo”… Eis um ponto fundamental que temos de ter bem presente no tempo incerto que vivemos.
A primeira foi a cosmológica. O homem pensava ocupar o centro do universo. O sol girava à volta da terra. Copérnico, porém, veio mostrar que afinal é a terra que gira à volta do sol. E hoje sabemos que o sol é apenas uma estrela de entre trezentos ou quatrocentos mil milhões da nossa galáxia e como a nossa galáxia há centenas de milhares de milhões...
A segunda humilhação foi a biológica e vem fundamentalmente de Darwin. O Homem não foi directamente criado por Deus como coroa e senhor da criação, pois apareceu por evolução, em que também jogam forças do acaso... De qualquer forma, mergulhamos as nossas raízes na animalidade.
Desde Karl Marx que sabemos mais explicitamente -- e é a humilhação sociológica -- que nenhum de nós fala a partir de um lugar neutro: nas nossas concepções de sociedade, de justiça, de religião, de direito..., somos condicionados pela sociedade e pelo lugar que nela ocupamos.
O próprio Freud contribuiu decisivamente para a humilhação psicológica: o poder da autoconsciência límpida e a arrogância do eu soberano foram abalados, já que há em nós as forças subterrâneas e nocturnas do inconsciente, que não controlamos: a razão não é plena e adequadamente transparente e não somos exactamente o que julgamos ser, pois há em nós também o que é e nos impulsiona sem nós: o “isso” em nós sem nós...
Mais recentemente, fomos confrontados com as humilhações estruturalista e informática. E, presentemente, está aí a revolução gigantesca da Inteligência Artificial, que leva alguns a perguntar se não iremos ser substituídos por máquinas...
Agora, quando se reflecte sobre o Homem, é pelo menos necessário perguntar, como escreveu Javier San Martín, até que ponto a subjectividade humana é um"sujeito-de " para lá de um "sujeito-a"...
Claro que a subjectividade é ineliminável. Mas aquele sujeito cartesiano autoconstituído pela reflexão e de modo soberano ficou abalado. Tomámos consciência de que a alteridade nos constitui. Para virmos a nós mesmos e à nossa identidade, temos de passar pelo outro -- e este outro é o outro humano (por princípio, o primeiro outro que encontrámos foi a mãe), o outro que é a linguagem e a cultura, o outro que é cada um de nós para si mesmo enquanto um outro: as nossas obras, as nossas possibilidades, a nossa escuridão, as nossas esperanças...
De qualquer modo, a humanidade sempre teve consciência de si, sabendo que mergulhava em abismos, onde mora o recôndito, o tenebroso e o incontrolável. A alma humana também é habitada por complexos, medos, conflitos, paradoxos, antagonismos, ambivalências, angústias, que, no fundo mais fundo, têm a sua génese na consciência da mortalidade.
Afinal, não é totalmente verdade o que dizemos: "querer é poder" -- de facto, nem sempre queremos o que podemos e nem sempre podemos o que queremos --, e há aquele "isso" em nós, impenetrável, que nos impede a transparência total de nós mesmos. Quando faltavam categorias filosóficas, científicas ou psicológicas, exprimiu-se essa outra dimensão temerosa de nós sem nós, utilizando, por exemplo, o imaginário dos monstros, com demónios, com híbridos, com figuras de seres humanos zoomorfos e de animais antropomorfos... Mesmo o Evangelho, quando se está atento, é também combate do tenebroso, demoníaco e diabólico, e promessa de reconciliação e de luz.
De qualquer modo, continuará o enigma humano de um corpo que diz eu. E, quando cada um o diz, fá-lo de modo único e intransferível. Pela sua própria natureza, ao mesmo tempo que é abertura à totalidade, cada eu é irredutível, em polaridade com tudo quanto existe. Como se não cansava de repetir o filósofo Julián Marías, "o filho que diz eu é irredutível ao seu pai, à sua mãe, a Deus e a toda a realidade, seja ela qual for."
Assim, não é a mesma coisa perguntar: o que é o Homem? e: quem é o Homem? De facto, o Homem não é um quê, uma coisa, pois é realidade essencialmente aberta, em processo de fazer-se, projectando-se a si próprio em permanência, de tal modo que se vive como paradoxo vivo de em-si-fora-de-si-para- lá-de-si e centro ex-cêntrico, u-tópico, em processo de transcendimento...
Porque nunca é dado, o Homem como pessoa não cabe na definição famosa de Boécio: "substância ou coisa individual de natureza racional". O Homem é um quem, alguém. Evidentemente, vai-se fazendo, e, na medida em que se faz, faz-se algo, mas, precisamente porque é alguém, nega e transcende sempre todos os algos e quês, recusando e superando toda a coisificação. O Homem é sempre mais do que consegue objectivar de si.
No meio de todas as humilhações, ao ser humano reflexivo impor-se-á sempre a subjectividade própria, pois a ciência objectiva só existe para e a partir do sujeito. O sujeito humano — sublinhe-se —, por mais que objective de si, deparará sempre com o inobjectivável, já que a condição de possibilidade de objectivar é ele mesmo enquanto sujeito irredutível. O Homem enquanto sujeito transcenderá, portanto, continuamente a explicação das ciências objectivantes.
Deste modo, como escreveu o filósofo José Gómez Caffarena, mantendo "a nossa condição irrenunciável de sujeitos -- não só de conhecimento, mas também de acção, de decisão, de valoração moral, estética... --, renascerá sempre para nós, nessa perspectiva, a pergunta pelo sentido global da existência".
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 21 de setembro de 2024
Gonçalo Ribeiro Telles disse um dia que desejaria que Portugal no futuro fosse uma espécie de Gulbenkian. Lembrámo-lo na inauguração da extensão do Jardim do Parque de Santa Gertrudes e do novo Centro de Arte Moderna (CAM).
Numa das últimas conversas que tive com Gonçalo Ribeiro Telles, encontrei-o satisfeito com a extensão do Parque da Gulbenkian até ao limite natural da Rua Marquês de Fronteira e com o projeto de Kengo Kuma e Vladimir Djurovic para o Centro de Arte Moderna. As objeções antigas tinham desaparecido, uma vez que o edifício renovado passaria a ligar a natureza e a construção, deixando de haver um muro cego, privilegiando-se a leveza e a transparência, salvaguardando-se a qualidade da paisagem. O Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian que reúne a mais significativa coleção de arte moderna e contemporânea portuguesa, em diálogo com o panorama internacional, reabre ao público depois de quatro anos de profunda remodelação. O CAM, da autoria original de Leslie Martin, inaugurado em 1983, graças à iniciativa do Doutor Azeredo Perdigão, foi agora completamente redesenhado pelo arquiteto japonês Kengo Kuma, em colaboração com o arquiteto paisagista Vladimir Djurovic num projeto que visou estabelecer uma mais efetiva ligação entre a natureza envolvente e o edifício, que está imerso na paisagem, em sintonia com a ideia original de Gonçalo Ribeiro Telles e de António Viana Barreto. E o simbolismo da cobertura do engawa, o telhado do novo edifício da CAM, permite a ligação entre a imagem das placas de cerâmica branca inspiradas nos azulejos portugueses e o desenho das grandes embarcações que se aventuraram nos mares.
Abrangendo múltiplas iniciativas, a reabertura do CAM, inicia-se com Leonor Antunes, numa investigação e apresentação de obras e percursos de artistas mulheres, agora revelados à luz do dia, como elementos determinantes no movimento moderno, numa história antes marcada pelas desigualdades. O ponto de partida de Leonor Antunes é um diálogo rico e inesperado com Ana Hatherly, centrado no contraste entre as linhas do negro da tinta da china e o fundo branco num entrançado em que a aparência caligráfica representa a destreza e a fluidez, numa lógica de sobreposição, capaz de contrariar a “desigualdade constante” que o tempo foi aceitando por inércia e que a liberdade artística procura contrariar – abrindo espaço e tempo para quem antes ficava na penumbra… “Da desigualdade constante dos dias de Leonor” procura, assim, um sinal de coerência no sentido da igualdade e da superação de uma história de subalternidade e de exclusão, relativamente às artistas-mulheres. O CAM, ao reabrir as suas portas, dá um sinal emancipador sobre a importância da mulher, fiel ao espírito de Madalena Azeredo Perdigão e ao ar fresco do ACARTE de boa memória, com o lema “Vamos correr ricos”. E Ana Hatherly vai às raízes e representa variações a partir do vilancete de Camões “Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura / vai formosa e não segura”. Um tema emancipador, vindo de tempos remotos, que abre campo à modernidade. Com uma rara capacidade de pôr em ação o confronto integrador de espaços, volumes e intervenções, Leonor Antunes articula e reconstrói diferentes experiências e tempos históricos, numa circularidade fecunda que realça a transparência do novo CAM, entre Arte e Natureza, numa rica hospitalidade para acolher um mundo múltiplo e diverso, disponível para encontrar os novos e os de sempre e capaz de entender a moderna contemporaneidade.
UMA LINHA DE MARÉ «Linha de Maré» é uma mostra que parte de 25 de Abril de 1974 para chegar aos nossos dias, com curadoria de Ana Vasconcelos, Helena de Freitas e Leonor Nazaré refletindo sobre as mudanças em curso, sobretudo relacionadas com o planeta, questionando a relação do homem com o mundo natural. São obras de pintura, desenho, vídeo, fotografia e escultura não antes mostradas, com Mónica de Miranda, Filipa César, Graça Pereira Coutinho, Kiluanji Kea Henda, Rui Chafes e Paulo Nosolino. Gabriel Abrantes assina uma instalação vídeo, Bardo Loop, encomenda original do CAM para a circunstância, que corresponde a uma reflexão muito séria e tocante sobre a dignidade humana.
Em «O Calígrafo Ocidental», Fernando Lemos surge como o autor surpreendente e inesquecível, com uma obra muito rica e multifacetada que se exprime de um modo especial através de um diálogo peculiar com o Japão, que os portugueses foram os primeiros europeus a encetar, e que aqui se reinventa. Trata-se do testemunho vivo sobre o período passado pelo artista no Japão no ano de 1963, para estudar a caligrafia e a arte japonesas durante seis meses, graças à bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, que lhe permitiu um “encantamento” com que “encheu os olhos e a alma”. E costumava dizer: “Quanto mais desejo, mais invento o que vejo”. Eis o que pode dizer-se sobre o que significa a extraordinária originalidade do artista. E Fernando Lemos permite-nos compreender que a procura de uma sombra é sempre busca da eternidade, como ensinam os calígrafos japoneses, ajudados por uma sabedoria milenar, na qual o artista português procurou as raízes essenciais da dignidade humana. Afinal, “Letra é um desenho mudo que começa numa ponta e acaba noutra, produzindo sempre que caminha um som diferente”. É o que encontramos na fantástica exposição do CAM, concretizada por Rosely Nkagawa e Leonor Nazaré e enriquecida pela profunda reflexão de Ryuta Imafuku.
O CANTO DOS CRISTÃOS ESCONDIDOS A Sala de Som recebe The Voice of Inconstant Savage, com uma instalação sonora de Yasuhiro Morinaga que sobrepõe uma oração inspirada no relato de um missionário português do século XVI, um canto dos cristãos escondidos, além de referências tradicionais de Nagasaki, da Amazónia e do canto gregoriano ocidental. Ainda no âmbito da Temporada de Arte Contemporânea Japonesa, o artista Go Watanabe apresenta uma intervenção, em que a sensibilidade criativa procura o encontro das diferenças. Já Didier Faustino concebeu uma sala de vídeo itinerante, H-Box, apresentada no Centro Pompidou em 2007, numa encomenda da Fundação Hermès, que agora permite a apresentação de 12 vídeos, com curadoria de Benjamin Weil.
Contíguo à Galeria da Coleção encontra-se o acervo do CAM que terá parte das suas reservas acessíveis ao público, numa iniciativa original, que permite alargar a capacidade para mostrar a coleção. Pretende-se assim garantir que não haja um lado esquecido de uma coleção tão rica, dando aos visitantes a possibilidade de se reencontrarem com obras referenciais de várias décadas da ação da Fundação Gulbenkian na promoção da formação e do desenvolvimento da criação artística entre nós e no contexto internacional.
porque existe este ritmo de luzes no barco que atravessa as margens do poema as palavras procuram lugares secretos para nomear o mundo destruído pela falta de sentido no sentido o poema é um barco no rio para lugar algum relembras por entre barcos os ritmos e a primeira viagem de regresso para o território neutro da cidade insensível ao poema como geografia lunar é tempo no poema de voltar.
in Um Barco no Rio, 2002
Because there is this rhythm of lights…
because there is this rhythm of lights on the boat crossing between the poem’s margins the words search for secret places to name the world destroyed by the lack of meaning in meaning the poem is a boat on the river to nowhere amongst boats you remember the rhythms and the first return voyage to the neutral territory of the city as unresponsive to the poem as a lunar landscape it’s time in the poem to go back
ATORES, ENCENADORES (XIV) MARIA VITÓRIA, NOME DE TEATRO por Duarte Ivo Cruz
No texto que dedicamos aos teatros do Parque Mayer referimos como sala “inaugural” desta concentração urbana de edifícios e atividades de cultura e lazer, o Teatro Maria Vitória. Foi efetivamente o primeiro a ser construído, na fase inicial de urbanização do recinto, datada, no que respeita ao teatro, de 1922. Mas ressalte-se agora que esse primeiro Maria Vitória era pouco mais do que um recinto provisório.
Diz-nos Jorge Trigo e Luciano Reis que «este Teatro tem o nome da grande fadista e atriz Maria Vitória, morta aos 24 anos» em 1915. E acrescentam os dois autores que “o teatro era no seu início uma simples construção de madeira e sarapilheira quando abriu as suas portas ao publico a 1 de julho de 1922 (…) O seu primeiro espetáculo foi a revista “Lua Nova”, em dois atos e onze quadros, da autoria de Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes, João Bastos e Henrique Roldão, os três primeiros formando a chamada Parceria, com música de Alves Coelho” (in “Parque Mayer” vol. 1- 2004 pag.37).
O Teatro Maria Vitória beneficiou de obras e deixou a curto prazo de ser o barracão inicial. Mas em 10 de maio de 1986 foi semi-destruído por um incêndio – e pode recordar-se que dois anos antes o Teatro Nacional de Dona Maria II sofreu o mesmo desastre… O teatro foi entretanto recuperado e reconstruído, tendo reaberto em 1 de março de 1990 com a revista intitulada “Vitória! Vitória!”, texto de Henrique Santana, Francisco Nicholson, Augusto Fraga e Nuno Nazareth Fernandes, música de João Vasconcelos, Fernando Correia Martins, Nuno Nazareth Fernandes e Fernando Ribeiro, encenação de Henrique Santana. Eram na altura empresários do teatro Helder Freire Costa e Vasco Morgado Junior.
O projeto de recuperação é da autoria do arquiteto Barros Gomes. E o teatro reflete, desde logo ao nível da fachada, com elementos arquitetónicos claramente diferenciadores. Um acréscimo discutível, dessa ou de outra época de reconstrução, prejudicou a fachada original.
Conservaram-se no interior algumas fotografias e placas evocativas, com destaque para Giuseppe Bastos e para o próprio Henrique Santana. Mas o teatro manteve, em boa hora, o nome o nome e a estrutura original da sala, em muito boas condições de restauro e funcionamento.
Vale a pena agora recordar quem foi Maria Vitória, inclusive pela insólita carreira que, em pouco anos, desenvolveu.
Desde logo, trata-se de uma fadista nascida em Espanha (1888) filha de pais espanhóis. Vem para Portugal quase recém-nascida. Surgirá integrada num dos elencos que, durante 10 anos, o que é extraordinário, manteve em cena a revista “O 31”, de Luis Galhardo, Pereira Coelho e Alberto Barbosa, com música de Tomás Del Negro e Alves Coelho, estreada em 1917. Luis Francisco Rebello cita críticas da época, que referem «a voz cavada e triste de Maria Vitória, ao entoar o célebre “Fado do 31 (…): “À porta da Brasileira/ dois bicos encontram dois./Ficam os quatro. E depois/lá começa a chinfrineira”»…
E em 1944, Estêvão Amarante lembrava os tempos «em que a princesa do fado não era a Amália Rodrigues. Era a Maria Vitória»! (cfr. Luis Francisco Rebello “História do Teatro de Revista em Portugal” - 1985)
Maria Vitória morre aos 27 anos (1915). Ficou o nome do teatro. E neste momento, é o único que funciona no Parque Mayer.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 11.03.15 neste blogue.