A VIDA DOS LIVROS
De 2 a 8 de setembro de 2024
"A Misteriosa Chama da Rainha Loana" de Umberto Eco (Difel, 2005) é um romance inesperado que aborda o tema da memória literária e juvenil. Mais do que da nostalgia, do que se trata é de uma séria interrogação sobre a cultura, que é, na definição clássica, o que fica quando tudo se esquece…
UMA QUESTÃO DE MEMÓRIA
Apesar de se tratar de um romance profusamente ilustrado, o autor fez questão de lembrar que se trata de uma obra envolta em nevoeiro, de que Yambo se vê rodeado depois de ter um AVC, que o faz perder a memória. Mas não se trata da perda de toda a memória. Yambo lembra-se da chamada memória semântica – de tudo que aprendeu, desde os pormenores da História romana aos poemas que decorou ao longo da vida. O problema está no esquecimento da memória autobiográfica, desde o seu nome até ao não reconhecimento da mulher e das filhas. O protagonista de nada se lembra sobre o seu passado pessoal e sobre a sua infância. Urgia, pois, realizar uma lenta recuperação de si próprio, por isso a mulher convenceu-o a regressar à casa de campo, onde estavam os livros de infância, as histórias de quadradinhos que leu em criança, os cadernos escolares, os livros de leitura, os discos, o que tinha a ver com a existência comum. Importa lembrar que estamos em Itália, com um passado que muitos não desejam lembrar, contudo perante uma situação de emergência havia que recordar os claros e os escuros que podiam fazer luz sobre o que importaria lembrar. Ouvem-se as canções fascistas e as recordações populares. A sombra de Mussolini mistura-se com Emílio Salgari e Flash Gordon, e encontram-se as memórias do pequeno balilla, os arremedos patrióticos e uma ideia imperial anacrónica. «Era difícil dizer se estava a descobrir alguma coisa ou se estava simplesmente a ativar a minha memória de papel, pois fala-se muito ainda hoje de Salgari, e críticos sofisticados dedicam-lhe artigos cheios de nostalgia”. Yañez de Gomera (o português, com nome estranho, inventado por Salgari, designado na tradução portuguesa, com maior verosimilhança, como Gastão de Sequeira) aventura-se com Sandokan nas terras de Mompracem, que nos faz lembrar as andanças de Fernão de Magalhães… Sucedem-se as referências míticas, desde Mandrake, o Mágico, com o seu servo e amigo negro, Lotar, que derrotava os maus com golpes de magia, até à Rainha Loana, de um reino misterioso, onde se guarda uma misteriosíssima chama que proporciona vida longa ou até mesmo a imortalidade, no reino de uma tribo selvagem com dois mil anos.
O MUNDO VAI-SE RECONSTRUINDO
De súbito, o sonho da banda desenhada desvanece-se e encontramos a leitura mais adulta e apimentada do Conde de Monte Cristo e dos Três Mosqueteiros. Metaforicamente, vem à baila a recordação do fim da grande guerra, a queda de Mussolini e o fim de muitos sonhos impossíveis. E ouvimos Yambo: “Agora estou aqui, no escritório do avô, a tocar no meu tesouro com as mãos a tremer. Depois de tantas rajadas de bruma, entrei no Hotel das Três Rosas. Não é a foto de Lila, mas um convite para voltar para Milão, para o presente. Se aqui está o retrato de Shakespeare, lá há de estar o retrato de Lila. O Bardo há de guiar-me até à minha Dark Lady. Com este in-folio estou a viver um romance bastante mais empolgante do que todos os mistérios do castelo vividos por entre as paredes de Solara, durante quase três meses de tensão alta. A emoção está a confundir-me as ideias, sobem-me ao rosto da de calor. É seguramente o grande golpe da minha vida”. Depois, vem um outro momento, precipitam-se as coisas e muda o contexto. “Lá fora, Paola, as minhas filhas, todos os que gostam de mim (e Gratarolo a dar socos na cabeça por me ter dado alta, quando porventura devia manter-me sob vigilância apertada durante pelo menos seis meses) consideram-me em coma profundo. As suas máquinas dizem que o meu cérebro não dá sinais de vida, e desesperam-se, perguntando-se se devem desligar a máquina ou esperar, talvez anos”.
E fica um epílogo. A Rainha Loana suscita muitas perguntas sobre a memória e a leitura, sobre a iniciação e a formação de um jovem. E aqui está a metáfora da memória. O livro em papel sobreviverá ao digital? A aprendizagem de hoje comprometerá os métodos tradicionais da leitura e da escrita? Num mundo complexo, teremos de saber lidar com a diversidade, mas nunca poderemos perder a relação de diálogo entre pessoas e saberes. Se falamos de cultura e de artes, temos de compreender que o saber e o saber fazer obrigam sempre à comunicação e à memória. O caminho longo que fizemos desde os aedos, que transmitiram de memória a “Ilíada” ou a “Odisseia”, até aos tipos móveis de Gutenberg ou às novas tecnologias de informação e comunicação obriga a compreender que um audiolivro, um e-book, um livro em papel, ajudam-se mutuamente, porque o que está em causa é a ligação entre ler e pensar, entre saber e dialogar, entre representar e refletir. O modo de ler altera-se ao longo do tempo. Daí a importância da procura de quem somos através da memória. Há uma evolução que corresponde à necessidade de compreender melhor o mundo e os outros. A liberdade e a autonomia individual alcançam-se e evoluem mercê do acesso ao conhecimento. Daí a importância da educação, com um efeito multiplicador extraordinário, desde a cultura à saúde, da defesa do bem comum à coesão social. Umberto Eco leva-nos às memórias da formação e ao modo como marcam a identidade. Com um pano de fundo dramático, do que se trata é de recorrer ao imaginário juvenil para procurar descobrir como a cultura nos vai construindo, também com a ajuda da Rainha Loana.
Guilherme d'Oliveira Martins