A VIDA DOS LIVROS
De 16 a 22 de setembro de 2024
Regressamos hoje a Carolina Michaelis de Vasconcelos (Berlim, 1851, Porto, 1925), a primeira mulher catedrática em Portugal e a mais inteligente e arguta estudiosa da língua portuguesa.
DIVAGAÇÕES FILOLÓGICAS
Quando escreveu “A Saudade Portuguesa” esclareceu com muita clareza a originalidade do conceito e a ligação do mesmo a uma perspetiva de humanismo universalista. A obra compõe-se do que a autora designa como divagações filológicas, designadamente em torno de Inês de Castro e do Cantar Velho «Saudade Minha - Quando te veria?», cabendo a segunda edição, revista e acrescentada, à Renascença Portuguesa, no Porto, à Seara Nova, em Lisboa, e ao Anuário do Brasil do Rio de Janeiro. 1922. E nota-se a intervenção de António Sérgio no sentido da abertura e da riqueza do conceito. Os especialistas consideram o estudo de grande brilhantismo e profundidade, sendo dividido em nove capítulos, com um post scriptum e um vasto conjunto de anotações. Os capítulos têm os seguintes títulos: Inês de Castro: história e lenda - O drama inesiano ‘Reinar despues de morir’; A referida canção ‘Saudade minha - Quando vos veria?’; D. Sancho I e Maria Paes, a Ribeirinha; Saudosistas autênticos e apócrifos; O que é a Saudade, linguisticamente; O que é a saudade, psicologicamente; Soledades; Cantares velhos; Motes e Voltas. Com recurso a uma segura hermenêutica, a autora analisa um grande número de textos da literatura popular e da literatura palaciana em que é usada a palavra Saudade, desfazendo atribuições e datações erradas e iluminando, de forma inovadora, a história de Inês de Castro. Trata-se de uma obra imprescindível para o estudo deste tema central da filologia, literatura e cultura portuguesas. Na rua da Cedofeita, no Porto, a casa de Carolina e Joaquim de Vasconcelos era um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, a começar na chamada Geração de 70, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases do progresso baseado na cultura e na liberdade. O conhecimento sobre a realidade portuguesa por parte de Carolina Michaelis enchia de espanto os seus leitores. É impressionante a lista dos trabalhos que publicou sobre história e crítica literárias. Lembremos os estudos sobre o "Cancioneiro da Ajuda" e um glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado.
INESGOTÁVEL CAMPO DE INVESTIGAÇÃO
A literatura portuguesa foi um inesgotável campo para a sua investigação sobre as origens da poesia peninsular. E o certo é que abriu perspetivas inovadoras, que hoje ainda são imprescindíveis. Em 1901, o rei D. Carlos concedeu a Carolina Michaelis de Vasconcelos o grau de oficial da Ordem de Santiago da Espada, como preito de homenagem ao seu extraordinário labor científico. E em 1911, logo após a implantação da República, foi nomeada professora da nova Faculdade de Letras de Lisboa, lugar que não aceitou, por motivos familiares. No entanto, assumiu o encargo na Universidade de Coimbra, onde recebeu, em 1916, o grau de Doutora honoris causa. Em 1923 foi-lhe outorgada idêntica honra na Universidade de Hamburgo. Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor, a sua vida demonstra a importância da ligação entre a opção pessoal e a vocação científica. Considerou a Saudade como um “traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas”, muito mais do que a Sehnsucht, característica da alma germânica. “Refletida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou do imperativo energético da atividade ponderada”, a palavra alemã teria “muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios”. “A saudade e o morrer de amor” são para a estudiosa “as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome”. Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e as obras que estilisticamente derivam dele, como a “Consolação de Israel” de Samuel Usque, as “Saudades da Terra” de Gaspar Frutuoso, as “Rimas” de Camões, os Episódios e as Prosopopeias de “Os Lusíadas”, as “Cartas da Religiosa Portuguesa” e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de “Frei Luís de Sousa”. Não faltam no Cancioneiro do povo; nem na sua fase arcaica, os reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é, nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até Pedro e Inês. E logo no alvorecer da poesia, surgiram naturalmente “lindos lamentos de amor e de ausência, como na singela composição, em que o rei D. Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: cuidado e desejo”.
Vendo a mestra com olhos de hoje, não passa despercebida a intenção claramente emancipadora da mulher que defendia a liberdade e a igualdade, a igualdade e a diferença como faces do mesmo espelho, nunca como realidades antagónicas. Como disse Gerhard Moldenhauer na oração fúnebre: “Quem, para mais conscientemente se orgulhar de ser português, alguma vez se interessou pela nossa herança espiritual, encontrou sempre no excecional espírito de Carolina Michaelis o mais amável dos mestres e o mais seguro dos guias”.
Guilherme d'Oliveira Martins
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