MIA COUTO
A atribuição do Prémio da Feira Internacional do Livro de Guadalajara a Mia Couto corresponde ao reconhecimento da importância da língua portuguesa como realidade multipolar, enquanto língua universal de várias culturas. Elogiando o fecundo ensaísta que foi o Embaixador Alberto da Costa e Silva, o escritor moçambicano agora laureado salientou a grande capacidade do académico brasileiro para compreender memória de África e um persistente trabalho de resgate baseado na relação complexa assente na diversidade. Mia Couto é hoje um intérprete imaginativo da língua viva que partilhamos, capaz de ouvir e de compreender o que dizemos por forma a usar a plasticidade do idioma para aprender melhor a realidade que construímos e que nos cerca. Ao lado de João Guimarães Rosa, a recriação vocabular de Mia Couto permite-nos entrar no “falar errado do povo, língua certa do povo”, que Manuel Bandeira sempre procurou. E as palavras ecoam e progridem: pensatempos, estórias abensonhadas, recusa do queixandar. O reino inesgotável da imaginação.
Mia Couto é o quinto autor de língua portuguesa a receber este prémio, depois de Nelida Piñon (1995), Rubem Fonseca (2003), António Lobo Antunes (2008) e Lídia Jorge (2020). A sua obra é a ilustração do que um dia afirmou: “As culturas sobrevivem enquanto se mantiverem produtivas, enquanto forem sujeito de mudança e elas próprias dialogarem e se miscigenarem com outras culturas”. E qual a responsabilidade do escritor? “Para com a democracia e com os direitos humanos, é toda”. Porque o compromisso maior do escritor é com a verdade e com a liberdade. “Para combater pela verdade, o escritor usa uma inverdade: a da literatura. Mas essa é uma mentira que não mente”. E disse-nos ainda: “O único conselho que dou é este: devemos escutar. Tornarmo-nos atentos a vozes que fomos encorajados a deixar de ouvir. Tornemos essas vozes visíveis. E mantenhamos viva essa capacidade que já tivemos na nossa infância de nos deslumbrarmos. Por coisas simples, que se localizam na margem dos grandes feitos (…). O que importa do ponto de vista do escritor é a capacidade que essa personagem tem de suscitar história e de nos revelar facetas da nossa própria humanidade”. Leia-se uma obra riquíssima, como há poucas: Terra Sonâmbula, Mar me Quer, O Último Voo do Flamingo, Um rio Chamado Tempo e uma Casa chamada Terra, ou a trilogia Mulheres de Cinzas, A Espada e a Azagaia, O Bebedor de Horizontes. A história antiga deve ser recordada. É tão vital errarmos como acertarmos. Mergulharmos nas origens permite-nos ver melhor o caminho a percorrer. E O Mapeador de Ausências trouxe-nos de volta um tempo de memórias duras e trágicas a que devemos sempre regressar para que se não repitam. Mais do que ressentimento, importa a lembrança das palavras que é uma sementeira de vida e de esperança. E voltamos a ouvir as personagens fundamentais de Grande Sertão – Veredas de Guimarães Rosa – Riobaldo e Diadorim – “Porque sertão é dentro da gente” ou “Deus existe mesmo quando não há e o demónio não precisa de existir para haver”. Aguardamos por estes dias o novo romance de Mia Couto A Cegueira do Rio e ouvimo-lo: “Assusta-me este medo que existe hoje da complexidade; que andemos à procura de milagres messiânicos para salvar o mundo”… Eis um ponto fundamental que temos de ter bem presente no tempo incerto que vivemos.
GOM