A VIDA DOS LIVROS
De 30 de setembro a 6 de outubro de 2024
«Deus - A Ciência - As Provas – A Alvorada de Uma Revolução» (D. Quixote, 2024) de Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies constitui um documento importante com interrogações que nos permitem compreender que o tempo das conclusões definitivas sobre a ciência, o universo e a vida terminou, dando lugar à abertura de espírito.
UM DESAFIO A PENSAR
A obra que acaba de ser publicada em Portugal, dada à estampa em França em 2021, resultou de três anos de labor envolvendo vinte cientistas e especialistas dos temas tratados, correspondendo a um trabalho hercúleo, envolvendo quatro séculos de descobertas científicas, de Copérnico a Freud, passando por Galileu e Darwin. Se as descobertas se acumularam de modo espetacular nesse tempo, a verdade é que, depois do otimismo positivista do início do século XX, sucedeu a oscilação do pêndulo da ciência num sentido da ponderação de novos fatores ditados pela descoberta da teoria da relatividade, da física quântica, da expansão do Universo e da complexidade da vida. Os novos conhecimentos abalaram as certezas consagradas e permitiram considerar a lógica materialista como uma crença como tantas outras, com o risco de se converter num entendimento contrário à razão. Eis por que motivo é importante esta obra, cujos autores apresentam em linguagem acessível e de uma forma aberta e crítica, um panorama rigoroso das provas possíveis da existência de Deus. Longe de uma perspetiva confessional, estamos perante a apresentação de um percurso complexo, que não para e que nos obriga a refletir. O objetivo dos autores é apresentarem os elementos necessários para pensar sobre a questão da existência de um deus criador, que se põe em termos completamente novos. A leitura é de facto apaixonante e pressupõe uma evolução, que se traduz numa “grande inversão” em cinco séculos de descobertas desde o crescimento ao declínio das ideias “materialistas”. Senão vejamos. Há um primeiro ciclo que envolve, desde 1543, o heliocentrismo de Copérnico e Galileu, a gravitação de Newton, a idade da Terra de Buffon, o determinismo de Laplace, a evolução de Lamarck, a seleção natural de Darwin, a dialética de Marx e a psicanálise de Freud. Depois abre-se o segundo ciclo da termodinâmica e da morte térmica do Universo, com Carnot, a mecânica quântica e o princípio da indeterminação de Max Planck, Heisenberg e Bohr, a relatividade, a expansão do Universo e o Big Bang, de Einstein e Friedmann, o teorema da incompletude de Gödel, a descodificação do genoma de Watson e Crick, o descrédito das teorias de Freud e o colapso do bloco soviético, a refutação do Big Crunch e o princípio antrópico do astrofísico Brandon Carter. Como afirma no prefácio Robert W. Wilson, prémio Nobel da Física (1978): “vivemos num desses multiversos que beneficiou de boas constantes para nos engendrar como descreve o princípio antrópico bem conhecido. Na minha opinião, porém, nenhuma destas hipóteses avança uma explicação científica convincente sobre a forma como, afinal, o Universo pode ter começado”. Caminhamos numa via de tentativa e erro, não sabendo o suficiente para ser intolerantes, como nos ensinou Karl Popper. Daí a importância de se explorar a ideia de um espírito ou de um Deus criador, que encontramos nas numerosas religiões.
DOIS GÉNIOS
Albert Einstein ajuda-nos a perceber esta obra, afirmando: “Não sou ateu e não creio que possa dizer-me panteísta (…). O que me separa da maioria daqueles a que se chama ateus é o sentimento de uma humildade total perante os segredos inacessíveis da harmonia do cosmos. (…) Os ateus fanáticos são como escravos que continuam a sentir o peso das suas grilhetas que rejeitaram após uma luta encarniçada. São criaturas que, no seu rancor contra a religião tradicional concebida como ‘ópio do povo’, já não conseguem ouvir a música das esferas celestes”. E afirma ainda: “Sentir que, por detrás de tudo o que a experiência consegue apreender se encontra alguma coisa que o nosso espírito não consegue assimilar e cuja beleza e sublime só nos tocam indiretamente sob a forma de um ténue reflexo, isto é a religião. E neste sentido sou religioso”. Por isso, defendia que a religiosidade cósmica seria a mola mais forte e mais nobre da investigação científica. É notável o testemunho de Kurt Gödel, um dos nomes mais importantes no pensamento contemporâneo. Da sua amizade com Einstein em Princeton colhemos este testemunho. “Regresso a casa com Einstein quase todos os dias, e falamos de filosofia, de política e dos Estados Unidos. A religião dele é bem mais abstrata, tal como a de Espinosa ou a da filosofia indiana. A minha é mais próxima da religião da Igreja. O Deus de Espinosa é menos do que uma pessoa, o meu é mais do que uma pessoa, porque Deus não pode ser menos do que uma pessoa. Pode desempenhar o papel de uma pessoa”. Se as religiões estavam cheias de impurezas, haveria que preservar o essencial do fenómeno religioso. E pode dizer-se que Gödel definia assim o seu pensamento: “O mundo não é caótico e arbitrário, mas como mostra a ciência, a maior regularidade e a maior ordem reinam em toda a parte. A ordem é uma forma de racionalidade. A ciência moderna mostra que o nosso tempo, com todas as suas estrelas e planetas, teve um começo e terá provavelmente um fim. Porque haveria, então, de haver este mundo único aqui? Visto que um dia aparecemos neste mundo sem sabermos como, nem de onde, o mesmo pode acontecer de novo num outro mundo da mesma maneira. Se o mundo está organizado de forma racional e tem um significado, então deve haver uma outra vida. Para que serviria produzir uma essência (o ser humano) com tão grande número de possibilidades de desenvolvimentos individuais e de evoluções nas suas relações, mas a quem nunca poderia ser permitido realizar mais do que um milésimo delas? Seria como construir os alicerces de uma casa com grandes dificuldades, e depois deixar tudo ruir”. E assim espírito e matéria são distintos – e esta é a base do teorema da incompletude. “O meu teorema mostra somente que a mecanização das matemáticas, ou seja, a eliminação do espírito e das entidades abstratas, é impossível”. Se há uma conclusão fundamental é a de que, como pretendeu Pascal, qualquer simplificação unilateral é perigosa. Se fossemos testemunhas silenciosas dos diálogos entre Einstein e Gödel em Princeton perceberíamos que a atitude correta é a que nos leva a recusar as opções sem saída. Somos demasiadamente imperfeitos para poder ficar pelas simplificações redutoras. A complexidade reserva-nos inúmeras surpresas e diz-nos que não há uma só motivação para um mesmo acontecimento e que as aparências são profundamente ilusórias.
Guilherme d'Oliveira Martins
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