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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  
João Carlos Silva © Carmo Correia /Lusa 2008 


2. DA CIDADE DE SÃO TOMÉ A SÃO JOÃO DOS ANGOLARES


1. Após uma noite sossegada num hotel acolhedor, num quarto suficientemente espaçoso, bem posicionado e com uma vista encantadora, humana e marítima da capital da República Democrática de São Tomé e Príncipe, seguimos para sul, em viagem para São João dos Angolares. 

No percurso houve uma paragem em São Marçal, para ver uma escultura em madeira de jaca, alusiva à “Família”, na presença do autor, por entre ruas sem passeios, repletas de automóveis, motorizadas e pessoas, em movimentos contínuos de ar domingueiro, ouvindo-se música, observando-se homens a lavar viaturas, transeuntes de roupa lavada à mistura com algumas familiaridades africanas que os dias solares e o clima sensualizam.   

Aglomerado de pessoas, fora do comum, em Santana, causado por cerimónias fúnebres, penalizando o tempo da viagem, que tentámos recuperar, tendo-se atravessado, sem demora, Ribeira Afonso, onde magotes de lavadeiras esfregavam a roupa, deixavam-na a secar e, enquanto secava, lavavam a loiça na água corrente de que natureza é pródiga. São às centenas, desde as primeiras horas matinais até meio da tarde. 

Chegados a São João dos Angolares, há a impressão, à primeira vista, de um povoado proporcionalmente grande para o país, com placas toponímicas e de vária sinalética espalhadas pelo núcleo central e seus acessos, com o centro de saúde, o mercado e a escola, bem localizados e próximos. Num curto desvio e paragem, saboreámos a paisagem ao redor do espaço envolvente de um aprazível bar e restaurante, “O Mionga”, que significa “Mar”, no dialeto local.  Era hora do almoço e dirigimo-nos para a roça São João dos Angolares.     

2. Tem sido questionada, entre os historiadores, no contexto do debate sobre a origem dos angolares, a suposição maioritária de que São Tomé (e o Príncipe) era desabitada quando os portugueses lá chegaram. São tidos como um dos três grupos por que é constituída a população local, juntamente com os forros (crioulos nativos) e os tongas (descendentes de trabalhadores contratados). Quanto à sua origem, há três hipóteses que concorrem entre si.  

A mais antiga, acolhida e divulgada, diz que os angolares são descendentes dos sobreviventes de um navio de escravos oriundo de Angola, com rota para o Brasil, que naufragou nos ilhéus das Sete Pedras, na costa sudeste da ilha, no século XVI, posteriormente à chegada dos portugueses.  

A segunda alega que a ilha já era habitada pelos angolares aquando da chegada dos primeiros portugueses, sendo tidos como os habitantes autóctones, indígenas, nativos e originários de São Tomé, tese que foi oficialmente aceite pelos nacionalistas são-tomenses após a independência.     

A terceira e mais recente (das que conhecemos) defende que os antepassados dos angolares eram cimarrones, escravos fugidos nos séculos XVI e XVII, explicação largamente ignorada e recusada no país.  

Todas as hipóteses são contestadas, não reunindo, para os especialistas, factos históricos incontestáveis e incontestados. Quer se entenda prevalecer a tese do naufrágio, do nacionalismo que acarinha a hipótese da primazia africana ou se marginalize a teoria mais recente, é praticamente uníssona a não probabilidade de São Tomé ter sido habitada antes da chegada dos portugueses (a teoria da prioridade africana não é a mais consensual quanto à origem dos angolares).

Sobressai sempre, em qualquer caso, uma aura lendária e misteriosa em redor dos angolares, que permanece. 

3. Destaca-se na roça São João dos Angolares, um restaurante de cozinha de autor, de fusão entre o tradicional e o contemporâneo, que reinventa e inova, de João Carlos Silva, bem conhecido pelos programas televisivos de culinária Na Roça dos Tachos ou Sal na Língua. Um nome consagrado, à frente do criativo restaurante aí existente, que com arte e imaginação sonhou e concretizou, onde somos simpaticamente recebidos, num espaço de madeira onde pontua uma extensa varanda, com vista para a vegetação em redor, aí se singularizando a palmeira-leque. 

A anteceder o menu de degustação, é preciso passar pelo spa de boca. Há que tirar um gomo de cacau e chupar. Um grão de pimenta com um pouco de chocolate e mastigar. Segue-se a pasta de gengibre. E um copito de vinho. O pretendido é limpar o paladar de tudo, lavar o palato, depois comer, inovando com as capacidades medicinais das ervas e acréscimos de peregrinações gastronómicas.

Pode haver uma afrodisíaca omelete de micocó, ovas panadas com batata doce, atum de vinagrete, ceviche de espadarte com erva-mosquito, pimenta e coentros selvagens, feijoada à moda da terra, com choco e atum, preparada com pau-pimenta, micocó, óleo e fura-cueca, salada de papaia verde com erva-príncipe, mel e baunilha, abacate com azeite e gengibre, bolo de cuscus de mandioca, por entre o lavar o palato, provar, saborear, variar e recomeçar, até final.

O segredo não está apenas na frescura e na simplicidade, mas também na inovação e invenção, com um empratamento europeizado, mais acessível a turistas, num belo e apropriado espaço para aniversariantes (e não só), como pudemos testemunhar.   

A que acresce, como despedida, uma foto com o anfitrião, que prontamente se voluntariou, por maioria de razão ao lado de quem então me acompanhava e conhecia há vários anos.   

Pelo que lhe ouvi, em breve conversa, continua a sonhar, querendo realizar novos sonhos, o que não surpreende em alguém com visão, que tenta sempre e já concretizou vários planos, como pude constatar e observar.      

4. Findo o almoço, regresso à Cidade de São Tomé, com paragem na idílica e serena praia das sete ondas, tida como uma das mais bonitas da ilha.   

Nova interrupção na Boca do Inferno, resultado de um fenómeno natural, com uma ravina que as águas percorrem na direção de uma gruta, formando, em crescendo, ondas que com ressonância rebentam na rocha. No cimo, há um quiosque onde bebemos água de coco, com vista para o azul do mar.   

Houve ainda um desvio para a roça Água-Izé, com uma área residencial degradada e casas habitadas, ruas empedradas, armazéns, carris desativados, edifícios abandonados, entre eles o antigo hospital, de elegante e distinta arquitetura, a precisar de urgente recuperação, em frente do qual fomos abordados por crianças locais, que presenteámos e com algumas das quais nos fotografámos.       

Tida como a primeira roça a ter o cultivo de cacau em São Tomé (depois de introduzido na ilha do Príncipe), há nela, segundo o guia, uma cooperativa que o produz e emprega algumas dezenas de pessoas em permanência.   

Por fim, findo o percurso de regresso, chegada ao ponto de partida matinal.


11.10.24
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

  


O sentido primordial do amor significa oferecer a essência.

Numa época como a atual, em que a realidade está sob ataque em todo o lado, em que os factos mais fiáveis são tidos como falsas notícias, em que a torrente da desinformação visa que a vontade de todos seja a de um marasmo patético num consenso feliz de verdades incontestadas, eis que o sentido primordial do amor continua a significar oferecer a essência. Mais: a passagem do tempo não alterou esta verdade.

O passado, que é muitas vezes revisto de acordo com as ações do presente, ergue-se sobre múltiplas exclusões, e por entre todas não consta que oferecer a essência não seja o sentido primordial do amor.

A realidade moderna tornou-se multidimensional e fragmentada. O lixo tem valor de autoridade e o conhecimento inútil é aceite como crença, e do que fazemos uns aos outros nessa grande constante que é a natureza humana, renasce sempre que o sentido primordial do amor significa oferecer a essência.

A coragem do amor - nestes tempos em que só a bravura física, os cinismos de quem deseja comprometimentos com qualquer tipo de poder, nestes tempos em que se desconfia de quem toma posições contra dogmas ou arbitrariedades que agridem os direitos humanos - o sentido primordial do amor, significa oferecer a essência e por isso, depois de muitas eras os roseirais…a sintonia.


Teresa Bracinha Vieira

CULTURA E LIBERDADE

  
Sophia de Mello Breyner Andresen © António Cotrim /Lusa 2007 


Dedico a crónica de hoje à memória de um amigo que nos deixou inesperadamente, quando tínhamos vários compromissos a realizar, graças ao seu entusiasmo e à sua inteligência. João Diogo Nunes Barata foi um grande embaixador de Portugal, com quem trabalhei de perto no gabinete de Mário Soares como Presidente da República, tendo desde então continuado uma excelente cumplicidade cívica e cultural, que culminou agora no Grémio Literário. Numa das muitas conversas que tivemos recordámos a extraordinária personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen, que bem conhecemos, amiga muito próxima de Mário Soares e Maria Barroso, espírito livre, que na sua aparente distração era a mais arguta analista da humanidade e da vida, que tanto partilhava as agruras domésticas como o diálogo com o melhor da humanidade. Quando lemos, por exemplo, os seus discursos na Assembleia Constituinte, sentimos um frémito, uma vez que as suas palavras ecoam sem uma ruga com marcas de eternidade. Lidas hoje, nada temos a acrescentar, e contrastam quer com as mil palavras de circunstância que o vento leva, quer com a vulgaridade que nos invade da politiquice de todos os dias. E João Diogo recordava estas lapidares palavras proferidas no hemiciclo de S. Bento: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2.9.1975). Afinal, a luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. (…) Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra dogmatismos indiscutíveis e maximalismos irreais. Por isso, importava atacar o “poder totalitário”, onde quer que esteja, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. E se falava de cultura, também importava referir a educação como objetivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderia encontrar-se para falar da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola o lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade. E João Diogo lembrava, quando era embaixador em Moscovo, o nosso memorável encontro com Mário Soares, quando nos fotografámos simbolicamente com o retrato de Jaime Batalha Reis, o embaixador português aquando da revolução de 1917, em homenagem ao espírito emancipador da geração de 1870 e à liberdade. Há quanto tempo…


GOM

O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (9)

  


9. Para lá do dualismo e a esperança


Do pior que há são os repetidores, os que não ousam pensar o novo e o diferente, os que, no fundo, não passam de ruminantes na vida intelectual.

Pedro Laín Entralgo, com quem tive o privilégio de falar várias vezes e que morreu em 2001, considerado um dos pensadores maiores da Espanha do século XX, cientista, filósofo, humanista cristão, não teve medo de pensar de modo novo, ir mais longe, confrontar-se com as dúvidas, questionar. Fê-lo concretamente no domínio da antropologia. Depois de rejeitar tanto o monismo materialista como o dualismo corpo-alma, para pensar o Homem na sua singularidade procurou um terceiro caminho, que deu lugar ao que chamou uma "antropologia integradora", "cosmológica, dinâmica e evolutiva", que viu a sua expressão brilhante, intensamente original e acessível no livro que escreveu aos 90 anos, dois anos antes da morte, síntese madura de uma extensa obra e aturada e longa reflexão, traduzido para português: O que é o Homem. Evolução e sentido da vida.  Como crente sincero e intelectual honesto e exigente, quer, sem precisar de uma alma espiritual nem de uma intervenção divina especial, mostrar a compatibilidade entre as duas afirmações cristãs essenciais sobre o Homem -- criado à imagem e semelhança de Deus e titular de uma vida que não morre com a morte -- e a concepção actual das ciências: o Homem como resultado da evolução do cosmos.

Recusa o dualismo. De facto, se o Homem fosse um composto de corpo e alma, seria preciso perguntar, por exemplo, se os pais, que apenas teriam dado origem ao corpo -- a alma viria "de fora" --, ainda são verdadeiramente pais dos seus filhos. Dada a realidade dos gémeos monozigóticos, que se formam pela divisão de um embrião, seria preciso perguntar se uma "alma" se divide em duas. Há ainda uma pergunta fundamental e decisiva: como é que um espírito finito pode agir sobre a matéria e vice-versa?

A recusa do dualismo não significa, porém, queda no materialismo vulgar. De facto, o monismo materialista, concretamente tal como foi entendido no século XIX, não dá conta da dignidade humana. Quem reduz o espírito humano e o eu a processos físicos e químicos no cérebro terá de responder à seguinte pergunta: como é que processos objectivos na terceira pessoa se transformam numa experiência subjectiva de um eu pessoal que se vive interiormente como único, como pessoa e não como coisa? Se a vida espiritual se identificasse com processos físicos e químicos, então seriam eles a decidir as minhas acções, de tal modo que se deveria concluir que não sou responsável pelo que faço. Isto significa que, apesar do valor das investigações neurobiológicas e dos avanços progressivos neste domínio, não será exagerado afirmar que a autoconsciência e o eu manterão uma reserva de insondável e incompreensível para a ciência objectivante.

Segundo Pedro Laín Entralgo, Deus cria através do dinamismo cósmico evolutivo. O dinamismo radical evolutivo em que o Cosmos consiste vai-se actualizando e configurando progressivamente em estruturas materiais cada vez mais complexas, de tal modo que surgem propriedades estruturais ou sistemáticas emergentes autenticamente novas, inéditas, que não eram previsíveis e que são  irredutíveis. O Homem na sua singularidade é dinamismo cósmico humanamente estruturado, e nele o Todo do Cosmos enquanto natura naturans (natureza naturante) toma consciência de si, nada impedindo pensar que haja noutras paragens do Universo outros seres pensantes e conscientes e que o próprio homem actual possa ser o predecessor do Homo supersapiens.

Característica constitutiva do ser humano no processo de realizar-se é a esperança. Segundo Laín Entralgo,  a esperança tem dois modos complementares: a esperança do concreto (o hábito de confiar que os projectos parciais se irão realizando bem) e a esperança do fundamental (o hábito de confiar — a confiança não é certeza — que a realização da existência pessoal será exitosa). Por sua vez, esta esperança do fundamental, que é a “esperança genuína”, assume dois modos, que não se excluem: a esperança terrena e histórica e a esperança meta-terrena e trans-histórica. Esta é própria dos crentes numa religião que afirma confiadamente a vida em Deus. Aí encontrará finalmente, como viu Santo Agostinho, aquela plenitude por que aspira na tensão constitutiva entre a sua radical finitude — não esquecer a constatação  que já aqui transcrevi: “inter faeces et urinam nascimur”: nascemos entre as fezes e a urina — e a ânsia de Infinito: “o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti, ó Deus”.

É claro que, na concepção do Homem segundo Laín, torna-se mais enigmática a imortalidade pessoal, pois a estrutura pessoal humana não pode sobreviver naturalmente à desagregação das subestruturas nela incorporadas. Por isso, alguns crêem que na morte o Homem se desfaz na aniquilação. A fé cristã,  ao contrário — e Laín acreditava — , convida a esperar, num acto de confiança radical racional, que a morte é a passagem, por dom misterioso e gratuito de Deus, a um modo de existência absolutamente inimaginável e insondável, para lá do espaço e do tempo cósmicos. O grande filósofo jesuíta José Gómez Caffarena perguntava com honradez intelectual:  "em qualquer concepção, não terá que ser inimaginável e misteriosa a resposta com que o crente, na peculiar certeza da sua fé, se atreve a ir para lá do Cosmos?"


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 5 de outubro de 2024

A VIDA DOS LIVROS

 


De 7 a 13 de outubro de 2024


Anne Applebaum acaba de publicar «Autocracia, Inc.» (Bertrand, 2024) sobre uma perigosa tendência dos ditadores pretenderem dominar as economias, paralelamente Mário Draghi apresenta um plano para a Europa. Os dois temas merecem ser considerados.


TEMPO DE INCERTEZA
Vivemos um tempo de grande incerteza, com uma inesperada relevância da irracionalidade. Neste ano em que celebramos o terceiro centenário do nascimento de Immanuel Kant, dir-se-ia que a sua memória se desvanece perigosamente. Não falo já de A Paz Perpétua: Um Esboço Filosófico (1795), que longe de ser um projeto utópico, está na lógica sequência do imperativo categórico, como apelo às nações e aos cidadãos no sentido de organizarem as sociedades segundo o primado do direito e o sentido crítico. Para tanto é necessário que os poderes se sintam limitados pela moral e pelos seus fundamentos. Depois do sangrento século XX, verificamos que os trinta gloriosos anos de reconstrução e de paz (1945-1975), tendo como pano de fundo a guerra fria, deram lugar à grande esperança de 1989 com a queda do muro de Berlim. Mas, a pouco e pouco, invadiram a vida política o medo das diferenças e as tentações irracionais, com uma perigosa fragmentação de poderes e a emergência de influências materiais descontroladas e autodestrutivas.


Pode designar-se o sistema atual como de “polaridades difusas”, caracterizado por poderes de natureza diferenciada, em que os Estados tradicionais coexistem com organizações fundamentalistas não subordinadas ao direito e à regulação. O ataque às torres gémeas de Nova Iorque em 2001 abriu caminho a uma situação internacional com intervenientes fora das regras comummente aceites, com efeitos miméticos sobre os Estados e alguns governantes, sendo paradigmática a atitude do governo da Federação Russa nos casos da Crimeia e da Ucrânia, além da situação no Médio Oriente, bem ilustrativa da complexidade atual. Acresce que a tudo isso se associa a grave ameaça, no âmbito do meio ambiente, do aquecimento global e da desregulação ecológica, os efeitos das guerras e os novos desafios no âmbito da saúde, não só ditadas pela ocorrência da pandemia, mas também pela pressão social sobre os sistemas de saúde e a cobertura de riscos sociais.


QUE PROJETO EUROPEU? 
O projeto europeu está, assim, posto à prova, até porque no sistema internacional há um vazio político e de regulação que exige a presença de protagonistas com legitimidade cívica e democrática capazes de dar sentido crítico, racionalidade e partilha de responsabilidades ao desenvolvimento de uma cultura de paz e de justiça, que exige equilíbrio de poderes que impeça a criação de vazios de poder e de legitimidade. Quando Mário Draghi apresentou recentemente o seu Plano de ação para a União Europeia, visando contrariar a decadência e a perda de relevância do velho continente o objetivo fundamental é evitar uma lógica fatalista. Para tanto é necessária uma coordenação muito maior entre os países da UE para garantir a coesão económica e social e para tornar os investimentos mais eficientes, capazes de concorrer com os principais protagonistas globais. Urge assim dar uma atenção especial aos setores cruciais que contribuam para o aumento da produtividade, como o tecnológico e o energético, bem como para a segurança europeia nos setores da defesa e do espaço. É necessário mobilizar capitais públicos e privados, com um planeamento estratégico atuante, para contrariar a tendência de declínio. A investigação e o desenvolvimento e as infraestruturas transeuropeias exigem um esforço intenso e corajoso, dotado de uma visão de conjunto, compreendendo a complexidade. Nem o mercado resolve o problema por si, nem o Estado ou a lógica pública tem soluções mágicas. É necessária a coordenação europeia das políticas industrial e de financiamento público; uma maior consolidação nas telecomunicações, defesa e energia;  o alargamento do Mercado Único às áreas da energia, financeira e de telecomunicações; a redução da regulação da atividade empresarial, privilegiando a responsabilidade; a possibilidade da emissão conjunta de dívida, cumprindo-se a regra de ouro das finanças públicas e privilegiando os investimentos reprodutivos social e economicamente; bem como a reforma dos processos de decisão comunitários.


NÃO ESQUECER ESTADOS E UNIÃO 
A complementaridade entre a União e os Estados tem de ser reforçada, para que os cidadãos se sintam ouvidos e mobilizados. Importa lembrar o projeto New Frontier de John F. Kennedy que permitiu pôr um homem na Lua antes do final da década de 1960, mobilizando as energias disponíveis e permitindo uma articulação da educação, da ciência, da tecnologia, da indústria e dos recursos financeiros do Estado e do mercado, abrindo horizontes novos na informática, nas comunicações e na transição energética. Hoje, tal como há sessenta anos, os grandes desafios para o futuro têm de estar bem presentes - a descarbonização, a digitalização e a inteligência artificial devem ser encaradas como oportunidades e não como bandeiras abstratas. E o tema da autonomia estratégica tem de ser visto com inteligência considerando, no mundo digital e das novas energias, os interesses vitais comuns e as especificidades nacionais. Os 800 mil milhões de euros necessários para o investimento anual têm de ser encarados seriamente, o que exige um maior orçamento europeu em benefício de todos. Não haverá avanços no desenvolvimento regional, na investigação científica, no capital social, na defesa e na segurança sem recursos disponíveis e sem sustentabilidade económica, social, ecológica e cultural. Se alguns receiam a maior liberalização e a desregulamentação, a verdade é que tudo depende do modo como tais objetivos serão postos em prática. Deveremos lembrar-nos da velha fórmula de Karl Schiller (1911-1994): mercado tanto quanto possível, Estado tanto quanto necessário. De facto, a regulação formal e burocrática torna-se inútil, porque cega, e a intervenção do Estado fragiliza-se se for dominada pela pressão eleitoral pelos ciclos eleitorais de curto prazo, sem a formulação de compromissos duráveis, como defendeu Knut Wicksell (1851-1926), segundo o qual a estabilidade dependia de acordos duráveis entre as principais forças políticas que permaneçam para além da natural alternância política (desde os investimentos na educação e na ciência até à legitimidade política e eleitoral). Eis por que razão a ideia de sustentabilidade ultrapassa em muito a lógica económica ou ambiental. A coesão e a confiança obrigam à ideia de sustentabilidade cultural que começa por reconhecer a importância de democracia como um sistema de valores éticos e não apenas um modo de escolha de governantes. A legitimidade, a participação, a responsabilidade, a representação e a cidadania obrigam a estabelecer condições de eficiência e de equidade. Por isso, quando o Plano Draghi aponta para objetivos audaciosos e investimentos corajosos tem como subjacente a ideia de que a Europa apenas poderá ter uma voz que seja ouvida no mundo se tiver autoridade moral para ser internacionalmente um fator de equilíbrio em nome da razão, do sentimento e do sentido crítico, para que o mundo não se torne uma selva.


Anne Applebaum, em paralelo lança um apelo para que as democracias reorientem fundamentalmente as suas políticas para combater um novo tipo de ameaça correspondente a um desejo comum de poder, riqueza e impunidade. O mundo democrático precisa de valores éticos e de democratas unidos.     


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE ARMANDO SILVA CARVALHO 

  


Vazio no meio do Mar


Quem ama o tempo como eu nesta manhã de ruídos
que se afastam de mim e me fazem sentir
vazio no meio do mar?
Quem devora este ar tão benfazejo à boca
e ao replicar das ondas
nos ouvidos como sinos de água?

Um tempo que se curva,
com o início nos joelhos dobrados na infância,
na mãe obsessiva,
e vem,
como de onda em onda,
transportando as dores, até este rochedo
que me suga os anos
e morde, devagar, a memória
da vida.


in De Amore, 2012


Empty at Sea


Who loves time like I do this clamouring morning
that moves away and makes me feel
empty at sea?
Who devours this breath of air so mouth soothing,
so wave-like,
water bells to my ears?

A bowing time,
childhood bent knees,
before the obsessive mother,
unfolding,
wave after wave,
carrying sorrow up to this rock
that sucks in my years
and bites, slowly, the memory
of life.


© Translated by Ana Hudson, 2014
in Poems from the Portuguese

 

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
O PAI E O SILÊNCIO


1. Houve um tempo, tempo de que me lembro muito bem, em que, dos dias para tudo quase todos os dias, só havia um dia especialmente assinalado. Esse era o Dia da Mãe, celebrado a 8 de dezembro, na Festa da Imaculada Conceição de Maria. Dos pobres pais não se falava, embora eu duvide que esta precedência cronológica da Mulher sobre o homem sirva de conforto ou lenitivo face à recente questão das quotas. Não era Dia da Mulher, como agora se usa, mas celebração da maternidade. Se bem me recordo, o então cardeal-patriarca aproveitava o doce dia e a doce palavra para enaltecer as mães de muitos filhos ou as mães que tinham os filhos que Deus mandava. É claro que para tanto era indispensável uma ajuda masculina, mas suspeitava-se que essa ajuda fosse prestada por motivos prazenteiros, enquanto a Mulher, pelo contrário, cumpria o seu dever.


O certo é que não me lembro de Dias do Pai, embora o 19 de março, dia de São José, fosse, nesses tempos, dia santo de guarda. A tradição do Dia do Pai confunde-se-me, em percurso autobiográfico, com a mudança do Dia da Mãe para data móvel, tão móvel que me aconteceu mesmo esquecê-la. Houve até um ano - estava uma filha minha a divertir-se na América - em que esta telefonou de lá para dar beijo à Mãe em dia dela. Enorme pasmo e enorme enleio. A filha-pródiga lembrava-se da Mãe, de além-Atlântico, com chamada que, simbolicamente, ao que creio pela única vez, não foi paga ao destinatário. Filhos outros, e marido bem pertinho na mesma casa, tinham-se esquecido por completo. As consequências só não foram mais devastadoras porque alguém reparou a tempo que os Dias da Mãe não coincidiam nem nos continentes nem nos conteúdos. Ou seja, era Dia da Mãe na América, não o era em Portugal. Ninguém tinha que pintar a cara de preto e à minha filha "americana" só lhe restava repetir a dose. Começava-se então a ouvir a frase - também eu fiz minha - que com tanta mudança tinham dado cabo do Dia da Mãe. Frase tão feita como aquela que rezava: "Cá em casa nunca se ligou ao Dia do Pai." Eu, às vezes, protestava que era injusto, mas com fraquíssima convicção. É de pequenino que se torce o pepino e em pequeninos - nem eu nem os meus filhos - tínhamos sido torcidos para o Dia do Pai. A coisa só mudou no tempo dos meus netos, há uns vinte a esta parte. Seja num dia, seja noutro, as escolas fazem tal alarido, a comunicação social tal algazarra, o comércio tal proveito, que não há perigo que qualquer das datas progenitoras passem despercebidas. Até eu passei a receber presentes no Dia do Pai. Eu que nunca os dei e, que em matéria de honrar pai, só me lembro de ter sido obrigado, em hora mais remota, a copiar do livro da 3ª Classe para as mãos paternas, o extraordinário verso por cuja fidelidade juro à fé de quem sou: "Amo o meu Pai / como não amei, não amo, nem amarei / mais ninguém / a não ser a minha Mãe." O autor era autora e certamente nunca ouvira falar do complexo de Electra, que a conclusão do verso não consegue ocultar. Mas é certo, voltando aos dias de hoje, que, se se perderam, ou se deixaram perder, quase todas as origens míticas e religiosas dos dias para tudo ou dos dias para nada (nem sequer Santo António venceu em Portugal o ignoto São Valentim, no Dia dos Namorados) o Dia do Pai é praticamente o único, cuja génese é óbvia.


2. Ou não é nada óbvia. Porque se pode perguntar - e com alguma pertinência - porque se comemora o Dia do Pai em dia de santo que pai nunca foi, São José, castíssimo esposo de Maria. Só gente muito heterodoxa foi capaz de comentar (Mt 1, 25-28 - "e nunca a conheceu até ao dia em que ela deu à luz o filho, ao qual ele deu o nome de Jesus"), observando que o texto nada diz sobre o que se passou depois. Em relação a outra passagem (Mt 12,46) em que o mesmo evangelista fala de irmãos de Jesus, exegese estabeleceu há muito que, em hebreu e aramaico, o termo utilizado designa também parentes próximos. Por último, são muito tardias e espúrias as versões que atribuem a S. José filhos de casamento anterior, pelo menos tão tardias e espúrias como as que sustentam que ele viveu até aos 111 anos. De resto, sabemos muito pouco de S. José. O Evangelho segundo S. João não lhe faz qualquer referência. Dos sinópticos, Marcos também o ignora. Dos evangelhos canónicos, Mateus e Lucas são as fontes privilegiadas, sobretudo o primeiro. Logo na genealogia de Jesus Cristo se diz, a terminar, que "Jacob gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, a que se chama de Cristo".


Depois (Mt 1, 18-28 e Mt 2, 13-26) são narrados os três sonhos de José: o primeiro impediu-o de "repudiar sem escândalo" Maria, quando descobriu a gravidez dela, "antes de terem vida em comum". Disse-lhe o Anjo nesse primeiro sonho: "José, filho de David, não temas tomar conta de Maria, tua mulher. Porque ela gerou por obra e graça do Espírito Santo. E dará à luz um filho, a quem chamarás de Jesus, pois é ele quem salvará o povo dos seus pecados' (...) Depois de acordar, José fez o que o Anjo do Senhor lhe tinha mandado e tomou Maria com ele." O segundo sonho segue-se à visita dos Magos. "O Anjo do senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma contigo o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto. E permanece no Egipto até que eu te previna. Pois que Herodes vai procurar o Menino para o mandar matar.' José levantou-se, e, de noite, levou consigo o menino e sua Mãe e fugiu para o Egipto onde ficou até à morte de Herodes."


O terceiro sonho aconteceu quando Herodes morreu. "O Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egipto, e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o menino e sua Mãe e regressa à terra de Israel, pois que morreram os que queriam tirar a vida ao Menino.' José levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e regressou à terra de Israel. Mas, informado que Arquelau sucedera a Herodes no trono da Judeia, receou voltar para lá. Avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e fixou-se numa cidade chamada Nazaré." Sempre me deu que pensar este papel dos sonhos no "amadurecimento" de José. É a sonhar que acredita na virgindade de Maria e decide viver com ela e assumir, perante os homens, o lugar de pai do Menino. É a sonhar que toma resolução de acordar Maria e o Menino e de os levar com ele numa perigosa viagem para o Egipto; é a sonhar que toma a resolução (quantos anos depois?) de voltar a Israel, embora só num quarto sonho posterior (o mais elipticamente referido) o tenha confirmado na decisão, não onírica, de se fixar na Galileia e não na Judeia. Alguns comentadores têm falado na oniromancia de José, que contrasta com os ensinamentos do Eclesiastes que recomendava desconfiança: "Os sonhos têm deitado a perder muita gente e quem neles acreditou sucumbiu" (XXXIV, 1-8). José, pelo contrário, acreditou e, porque acreditou, salvou o Maria e salvou o Menino. A fé dele é como a fé de Abraão: contra toda a evidência. Por outro lado, é José quem escolhe para o Menino o nome de Jesus e é o primeiro a saber que Jesus virá ao mundo para o resgatar do pecado.


Por fim (se fim pudesse haver em tudo isto), Mateus define José com um único adjetivo: "Justo" ("era um homem justo"). O Padre Bartolomeu do Quental, em 1661, no Sermão sobre São José (aproximável de passagens de Santa Teresa de Ávila), comenta admiravelmente o uso da palavra justo. "E o que custa a um homem justo ser filho de Deus? O que custou a José. Nada. Diz o Evangelhista que São José, como fosse justo, não quis entregar sua Esposa... não entregar, claro está, que é não fazer nada e, não fazendo nada, foi São José justo... Muito devemos hoje a São José por nos facilitar tanto com o seu exemplo uma coisa tão grande como é ser justo não fazendo nada, e foi justo (...) Os outros Santos ensinam-nos a ser justos obrando; São José é Santo de tão boa graça que nos ensina a ser justos não fazendo."


3. Depois, São José só volta a surgir nos Evangelhos (Lc 2, 41-54) no episódio, precisamente situado aos doze anos de Jesus, em que este, sem que José e Maria se apercebessem, ficou sozinho em Jerusalém, no Templo, em vez de voltar com eles para Nazaré. Quando descobriram que o tinham perdido, voltaram para trás, repetindo uma jornada de marcha. Três dias o procuraram em Jerusalém e três o não acharam. Quando finalmente o encontraram (o Menino entre os Doutores) quem o censurou foi a Mãe: "Meu filho, porque nos fizeste isto? Vê como teu Pai e eu te buscávamos, angustiados.' E Jesus respondeu-lhes: 'Porque me procuravam? Não sabem que tenho que me ocupar dos assuntos do meu Pai?' Mas eles não perceberam as palavras que ele acabara de dizer."


Mais uma vez, São José é o todo silencioso. Não disse a Maria que a pensou repudiar. Não lhe disse a razão das idas e vindas para o Egipto ou da escolha de Nazaré como morada deles. Não censurou Jesus, embora Maria lhe atribua angústia idêntica à dela. Se os Evangelhos nos reportam algumas (embora escassas) trocas de palavras entre Jesus e sua Mãe, nenhum traço ficou de qualquer palavra entre Jesus e José. Mas é no momento em que Maria lhe fala do pai ("o teu Pai") que Jesus responde citando outro Pai, que não aquele pobre velho. Velho? Se os apócrifos falam de um José muito mais velho que Maria, os canónicos não dão qualquer indicação sobre a idade. Mas todas as imagens sempre retrataram José como um velho, num lapso demasiado gigantesco para ser inconsciente, como que explicando pela idade a abstinência dele. Depois, José desaparece numa imensa elipse. Quando morreu? Não sabemos. Ele que foi o silencioso "como a terra orvalhada" (no belo verso de Claudel, que cito em tradução de Pedro Tamen) fez-se silêncio e ocultação. Que mais bela definição se pode dar do Pai e do seu papel em dia dele, do que chamar-lhe, como Claudel lhe chamou, "Patriarca interior do dia-a-dia"? Termino com antiquíssima oração: "Jesus, José e Maria / Acompanhai-me hoje, agora e sempre / e na hora da agonia."


por João Bénard da Costa

18 de março de 2005, in Público

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

Ilheu das Rolas - são tome DR CNC.jpg

 

1. LEVE-LEVE


1
. Segundo a teoria mais plausível, João de Santarém e Pêro Escobar encontraram a ilha de São Tomé em 21 de dezembro de 1470, a que deram o nome do santo do dia, pelo costume então vigente. A 17 de janeiro de 1471 chegaram à ilha do Príncipe, no dia de Santo Antão ou Santo António Abade (nome inicial), a que foi dado, posteriormente, o nome atual, no reinado de D. João II, em honra ao herdeiro da coroa.   

Por mim, foi no dia de São Martinho, em agraciamento a outro santo bem popular, que cheguei, pela primeira vez, à ilha de São Tomé. 

Espera pesarosa, das malas, no aeroporto, em espaço improvisado e inadequado, da autoria, ao que me constou, da cooperação chinesa. Mesmo assim, para melhor, dizia-se. 

Uma demora a pedir paciência, lentidão, uma espécie de leve-leve, devagar-devagar, como lema do país, que os são-tomenses parecem usar e abusar. Por tudo e por nada? 

Há quem o pense, referindo a regularidade das falhas de eletricidade, a ausência ou lacunas da internet, as estradas esburacadas, arrastamento no atendimento e serviços, a falta de investimento, o desemprego, o saciar a fome sem esforço, tudo a associar-se para abrandar o ritmo do segundo país mais pequeno de África, a seguir às Seicheles. O que não invalida posicionar-se, de momento, acima da média dos países africanos nos índices de grau de desenvolvimento humano, à frente de Angola, Moçambique e da Guiné-Bissau, por exemplo.     

Há que tentar compreender o que é, na sua autenticidade, o leve-leve de São Tomé (e da ilha do Príncipe), como filosofia de vida e marca de identidade do seu povo.        

2. No poema de Alda Espírito Santo, cantado por Kalú Mendes, pode ler-se:     

“Leve-Leve     
Não é sabotagem, nem malandragem 
(…) Não é máxima velocidade, sem fazer travagem 
(…) É guiar com acerto, sem desacerto
(…) Não é andar na paródia, noite e dia, dia e noite, parado 
E entrar na repartição, com relógio na mão, à hora que Deus quer   
Leve-leve não é isso.     
(…) É providência que traz sempre prudência, com muita conveniência 
(…) É fazer sacrifício e entrar no liceu a hora   
(…) Não é barafunda, no país que afunda, deixando estar como está, para ver como fica
(…) É não correr à toa, como tudo o que voa
Leve-leve     
É andar com passo certo, para conhecer felicidade”.    

Leve-leve é uma maneira de ser e estar na vida, conveniente, frugal, pacífica, prudente, responsável, serena e simples, “não é máxima velocidade, sem fazer travagem”, mas sim “guiar com acerto, sem desacerto”, “andar com passo certo” para conhecer a felicidade. É o não esperar por amanhã para gozar ou usufruir o que se pode ter ou fazer hoje. O que não exclui caminhar ou desacelerar num passeio ou mergulhar numa praia deserta de água morna que se avizinha da estrada.   

Não é um assunto de pontuação, andar muito depressa, a toda a velocidade, é aprender a socializar e a viver com esforço, trabalhando com acerto, prudência e sacrifício. É procurar a felicidade, não achar que é só um direito e não uma aspiração.   

Há quem diga que a felicidade está nas pequenas coisas: no nascer e pôr do sol, no aroma e florir das flores, no cheiro do cacau e do café matinal. Tem que ser mais que isso, dado ser mais que um estado de espírito, sendo essencialmente uma atividade, em que só é possível sermos felizes esforçando-nos pela felicidade e trabalhando-a sem desacerto, sem ficar parado, sem atraso, sem correr à toa, sem barafunda, não deixando estar como está, para ver como fica, o país que afunda.

Se o leve-leve é esta mensagem de resiliência, de apelo e de confiança nas capacidades dos são-tomenses, plasmada num belo poema e embalada numa suave melodia africana, contrariando as adversidades do dia a dia, há que divulgá-la e adaptá-la aos tempos atuais, preservando o que tem de bom e expurgando o seu lado pejorativo.   

3. Há a ideia, quiçá predominante, de que o leve-leve é o culto do ir devagar-devagar, devagarinho, do deixa andar, do culto da preguiça, da indolência, da inação, de o que é censurável ser aceitável nas relações são-tomenses, incluindo atrasos, incumprimentos, quebras de palavra e compromissos, com reflexos sociais e culturais a todos os níveis, desde a ausência de infraestruturas básicas, à educação, habitação, saúde, etc. Facilitando amiguismos, além do mais.   

É um leve-leve tido como socialmente paralisante, gerando a necessidade de estabelecer uma fronteira entre o que é aceitável e inaceitável. É inadmissível, por exemplo, que o injustificável se justifique, ao sabor da conveniência, com um: “é o leve-leve”.   

E a vida do povo de São Tomé não é leve, por maioria de razão leve-leve, no sentido literal do termo. É uma vida pesada, onde não se deve aceitar, como atendível e normal, a apatia e a pobreza. Há quem lhe chame uma morfina social que alivia, mas onde tudo falta e ninguém é responsável. 

Tem de ser combatido o lado depreciativo do leve-leve, que apela a uma interpretação literal e simplista da sua autenticidade, dado que o que importa é o que alia a alegria, a serenidade, a paz, o caminhar e guiar com acerto, com a preservação e a adaptação de um leve-leve sem stresse aos valores da modernidade, longe do trekking à máxima velocidade, sem fazer travagem. A fazer jus ao poema aqui escrito (e cantado).   

O que também implica não aceitar estradas, ruas e arruamentos com buracos (e que buracos, alguns!), faltas regulares de eletricidade, falhas da internet, como o testemunhei no percurso e chegada ao hotel, no primeiro dia, com reiterações diárias, o que é incompatível, em qualquer circunstância, com um desculpável e condescendente leve-leve. Leve-leve não é isso, não é fazer-se “pequeno” num encolher de ombros resignado, é caminhar com passo certo para conhecer a felicidade. 


04.10.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

De facto, um dia fomos todos os que fazíamos de muitas ruas o espaço sem fronteiras de um recreio; os que fazíamos dos montes e das nuvens as testemunhas de uma cambalhota na natureza dos risos; os que criávamos em todo o lado as paisagens das infinitudes.

Nós somos-fomos a nossa infância e nela as cartas enroladas dentro de todas as garrafas lançadas para as correntes favoráveis.

Nela atrelámos tudo o que se lhe seguiu e nem sempre se esclareceu o que era aventura.

Mas a partir de um tempo, um tudo-tempo não espontâneo, até os pais nos considerariam desconhecidos se não compreendêssemos o «tu é que tens a culpa se não percebeste a tempo.»

E o “a tempo” é um sem número de possibilidades que englobam a razão do conhecer, a força dos dentes de leite e os de imposição definitiva, inclusos bem inclusos, na bagagem dos refugiados no desembarque dos dias ‘D’ das nossas vidas.

E fomos participando no desenvolver de expectativas que envolveram relações de confiança e respeito, e fomos desafiando o que somos e também prendemos e não soltámos.

Caça.

E afinal, de facto, um dia, fomos todos, de um modo ou de outro, destinatários de missivas brancas para que em curtas ou longas-metragens aprendêssemos a fazer ficção.

E começámos o jogo em casa. Criámos específicos bastidores.

Alguns auferiram condecorações pelas performances enquanto escutavam stereos da Elis Regina com Carlos Jobim sob as mãos de Maria João Pires, e muito pretenderam que equivalessem aos tempos das gemadas batidas pelas avós, e aos outros tempos, os de hoje, tão longe, meu Deus, tão longe das antigas moradas, daquelas que se assemelharam aos olhos das pombas.

E eis-nos chegados a uma fase tão, tão embrionária.

De novo.

De nada novo.

De facto, a cobra morde a própria cauda, quase intuitivamente, e não está em causa um retorno, mas sim a repetição da história humana.

Somos ovo.

Quem nos incubou na cadeia de elos semelhantes? e novamente antes de um outro fim,

singular nascente que sob a sua frescura desejei e estive.

Teresa Bracinha Vieira

A VIDA DOS LIVROS

  

Imagem: Facebook da Brotéria 


No momento em que a memória de Tereza e Vasco Vilalva está bem presente no nosso espírito com a reabertura do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, graças à maravilhosa extensão do Parque de Santa Gertrudes pela generosidade da família Eugénio Almeida e pela possibilidade de cumprir o desígnio artístico e cívico de Gonçalo Ribeiro Telles e António Viana Barreto com o projeto arquitetónico de Kengo Kuma e paisagístico de Vladimir Djurovic, foi entregue o Prémio Gulbenkian Património – Maria Tereza e Vasco Vilalva à biblioteca da Brotéria. Trata-se do reconhecimento da importância do Património Cultural imaterial, uma vez que a intervenção galardoada contempla a inventariação, preservação, restauro e disponibilização pública da biblioteca e do Fundo do Livro Antigo da revista Brotéria. O acervo bibliográfico da Brotéria foi sendo reunido ao longo dos últimos 100 anos, integrando atualmente 160 mil volumes, dos quais 4 mil do Fundo do Livro Antigo, publicados até 1800, dedicados à História da Companhia de Jesus, Filosofia, História, História da Igreja, Teologia, Patrística, Liturgia, Sermonística, Lexicografia, Gramática, Matemática, Astronomia e Pedagogia. A limpeza, estabilização e restauro de todos os volumes esteve a cargo dos melhores especialistas e o projeto abrange o estímulo à investigação, ao gosto da leitura, ao debate de ideias, à disponibilização de espólios bibliográficos de investigadores e o acesso digital a fundos documentais do Arquivo Romano da Companhia de Jesus e ao Fundo «Jesuítas na Ásia» da Biblioteca da Ajuda. O júri presidido por António Lamas destacou a metodologia exemplar para a valorização deste precioso fundo bibliográfico. Deve salientar-se ainda que pesou a ideia de dinamização cultural da Baixa-Chiado e Bairro Alto, no centro da cidade de Lisboa, envolvendo a Igreja e o Museu de São Roque, o Museu do Chiado, os Teatros de S. Carlos, de S. Luís, da Trindade e D. Maria II, a Faculdade de Belas Artes e o Conservatório Nacional. Aliás, entre as menções honrosas atribuídas esteve o Palácio de S. Roque – Casa da Ásia, que se insere na mesma dinâmica de ação cultural. As restantes menções couberam ao Seminário Maior de Coimbra e ao Convento de Santa Clara do Funchal.


O prémio deste ano interpreta, assim, com muita felicidade o objetivo de reconhecer intervenções exemplares em bens móveis e imóveis de valor cultural que estimulem a preservação e a recuperação do património cultural. E no caso da revista Brotéria, importa recordar a referência ímpar do Padre Manuel Antunes, durante muitos anos verdadeira alma da instituição. A casa da Rua Maestro António Taborda foi o seu refúgio, o santo dos santos onde recebia tantos dos seus discípulos e amigos, como mestre de muitas gerações. Sophia de Mello Breyner referia-se com muita admiração ao Padre Antunes e evocava sentidamente o antigo fundo clássico que animou a genialidade dos dois amigos. Quando lemos os textos que o crítico subscreveu, sob várias assinaturas, podemos compreender a sua visão da cultura e do património cultural como uma vivência ativa de criação e de compreensão. Afinal, Homero era-lhe “mais presente e mais íntimo do que muitos contemporâneos e até do que alguns conhecidos”. O cuidado com os livros estava no cerne da vida de quem eles albergavam. A poeta dizia: “O tempo onde ele mora / É completo e denso…”.


GOM

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