Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quando os homens estão entre o dormir e o acordar, ainda confusos no reconhecer se são gente de ontem ou fregueses de hoje, iniciam enfim, caminhos diferentes.
Há quem tente caminhar de acordo com a sua melhor natureza e consequência.
Há quem, do seu esconderijo, revele que assim sim, e de outro modo não, e o afirme sem olhar para trás.
E há quem revire amor e morte, enquanto a arte, por sua conta.
Há também quem percorra o caminho até uma janela, no tempo certo em que o tempo avisou, mas sem que a ideia soubesse funcionar, depois, com esse aviso.
E há quem, depois da inocência cair, descubra que dormir sob todos os relentos fora descuidadamente possível.
Então, numa espécie de estranha intimidade, a doença e o antídoto no quem, ou o quê pensamos que somos. E por aí adiante.
Todos príncipes.
Todos entre o dormir e o acordar e uma janela.
Todos sob o escandaloso manto da insignificância, mesmo.
Todos a precisarem de muito e a compreenderem pouco.
A maioria:
preconceito ativo, preconceito-pertença-grupo quando entre o dormir e o acordar ou depois no caminho, não lhes assiste ideia que os alarme; ideia que marche à frente da multidão.
Há quem, sobretudo por medo.
E também muito quem, depois de tudo e afinal: possibilidades.
O tempo parou no palacete de S. João dos Bem-casados. Quando se entra na casa onde viveram Veva de Lima e Rui Enes Ulrich sentimos o ambiente de um cenário de Marcel Proust ou de Luigi Pirandello. Regresso sempre com gosto ao lugar onde se realizaram dos últimos serões literários do panorama lisboeta, lembrando os míticos encontros dos árcades com Alcipe, a Marquesa de Alorna, em que participou o jovem Alexandre Herculano. Tenho na memória as descrições de Fernanda de Castro sobre esses encontros de magia e ilusão. Os móveis, os livros, as fotografias, os damascos que vislumbramos testemunharam silenciosamente esses tempos e representam a decoração portuguesa de várias influências, de Paris até à Índia. O meu amigo Alfredo Magalhães Ramalho, que conheci no Pedro Nunes, é a alma desta tertúlia, conhecendo como as suas próprias mãos cada recanto da velha casa. E ouvimos a cada passo a voz do espírito fulgurante de Veva, filha de Carlos Mayer, um dos Vencidos da Vida com Eça, Ramalho e Oliveira Martins. “Enquanto vivos (…) talvez não houvesse, realmente, com tal conjunto, orquestra mais sumptuosa em polifonias de valores mentais, como a que eles, associados, conseguiam manter pela harmonia das suas superioridades equivalentes na zona de ideias em que habitavam”. Foi este o espírito que procurou manter vivo e que sua filha, a exemplar educadora Maria Ulrich, persistentemente trouxe até aos nossos dias.
Pediu-me o Alfredo que falasse numa das suas quartas-feiras, depois do habitual jantar em ambiente familiar, recordando os grandes dias, do tema “Duas Vezes 500”, a propósito de dois centenários marcantes – do nascimento de Luís de Camões e da morte de Vasco da Gama. E fomos transportados à análise de Toynbee sobre o início da Era Gâmica, génese da globalização, momento crucial da história da humanidade. Quando lemos Os Lusíadas podemos compreender a complexidade dessa empresa e o seu significado essencial – o dos “descobrimentos” não como glória mítica, mas como obra humana, com claros e escuros, virtudes e pecados, mas caminho que avança e obra que se constrói gradualmente. Perante o fecho do levante mediterrânico depois da conquista turca de Bizâncio, o Infante D. Henrique e D. João II apontam à Índia, procurando a passagem de África para o Índico. A morte trágica do jovem D. Afonso compromete os objetivos do Príncipe Perfeito, que designa D. Manuel como seu sucessor, celebrando-se o Tratado de Tordesilhas. O Venturoso assumiu plenamente a herança de D. João II e logo após as Cortes de Montemor-o-Novo de 1495, reuniu o seu Conselho a quem perguntou: “Vamos à Índia?”. E, ouvindo dúvidas e reticências, respondeu, contra as mesmas, determinadamente: “Urge partir!”. E Camões soube como poucos traduzir essa audácia segundo a tradição dos grandes clássicos, usando como modelo Virgílio, numa nova Eneida. De facto, o poeta possuía um saber erudito, que abarcava vários domínios do conhecimento, da geografia à botânica, da cosmologia à astronomia. A qualidade do seu estilo e o domínio rigoroso da sintaxe, o emprego adequado do vocabulário, decorrem de longas e profícuas leituras, e da convivência desde tenra idade com o latim. Não é assim por acaso que um poeta seja o símbolo da pátria, caso único entre tantos outros, numa língua nascida dos trovadores e semeada pelo mundo todo.
É soberanamente estranho e enigmático o significado de dizer "eu". Só cada um, cada uma, o pode dizer de si mesmo, de si mesma, com sentido único e irrepetível. Ninguém pode dizer "eu" na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro, outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro - outro eu, mas sobretudo e sempre um eu outro - é irredutível. É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele olhar, daquele olhar do outro - olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele, ela, me vê? O que se passará nele, nela, dentro dele, dela, quando me vê, quando me observa, quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!... O que é que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um "embrulhinho" (perdoe-se a expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro - o menino, a menina, o Kico, a Rita... - até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?
Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim. Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo. Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último - parte da subjectividade - que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu objectivo e o eu subjectivo. Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no nada. Também por isso, David Hume negou a existência do eu: quando me vejo por dentro, o que encontro é apenas uma série de vivências, mas nunca o eu, que não passa precisamente de um feixe de vivências. Não perguntava Pascal em que parte do corpo é que se encontraria o eu? Aliás, já certas correntes do budismo se tinham referido ao eu como ilusão, e o exemplo que se dá é o de uma cebola a que se vai tirando as camadas sucessivas, sem que reste um núcleo duro: da desconstrução da unidade pessoal não permanece um sujeito.
Mas a interpretação também pode seguir outro caminho. Descendo até ao abismo de mim, aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é, enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí - no eu irredutível - posso encontrar-me com o mistério do Deus criador. É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada nem para ninguém, que se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián Marías: "A realidade psicofísica do filho - corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. - 'deriva' da dos pais, e neste sentido é 'redutível' a ela. Mas o filho que é e diz 'eu' é absolutamente irredutível ao eu do pai bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro, entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que 'vem' deles, pois eu não posso vir de outro eu, já que este é um 'tu' irredutível. Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa - de uma pessoa - enquanto tal é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de uma realidade nova e intrinsecamente irredutível".
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 26 de outubro de 2024
O ano de 2025 será o da comemoração do segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, e importa preparar tal acontecimento.
CELEBRAR UM GRANDE ESCRITOR Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.
Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.
COMPREENDER O TEATRO HUMANO O romancista compreendia bem que não é possível entender o teatro humano sem referências históricas. Nesse sentido, quem melhor conhece Camilo sabe que era um bibliófilo com provas dadas e que o estudo da História foi sempre uma constante da sua vida intelectual. E é esse o tema que aqui trago, a propósito da relação que estabeleceu com Oliveira Martins. Permito-me, por isso, acompanhar um exercício de reflexão crítica a propósito da História da Civilização Ibérica e da História de Portugal, obras inaugurais da Biblioteca de Ciências Sociais. O historiador tinha especial admiração por Camilo e considerava o parecer do romancista como marca de grande rigor, quer quanto ao conteúdo quer à formulação e ao idioma. Sabemos mesmo que no caso da História de Portugal procedeu a correções ou precisões a partir da opinião camiliana, já depois da publicação da primeira edição da obra. E o certo é que, como veremos, estamos perante um exímio leitor e um criterioso crítico. É exemplar o modo como presenciamos a integração dos textos na matéria e no período a que dizem respeito. O profissional da escrita surge assim como um executor exímio da sua arte e um mestre artífice disponível para partilhar com outros que ele respeitasse os seus conhecimentos e as fontes de que dispusesse.
A feitura da História de Portugal constitui exemplo sobre como o autor constrói as suas obras. Os elementos disponíveis que chegaram aos nossos dias não mostram a versão original da obra, que se terá perdido nas andanças tipográficas, mas permitem tomar contacto com uma cuidada e meticulosa intervenção do escritor, em especial na revisão e nos acrescentos a que procede. Veja-se como, para a 3.ª edição, depois da apreciação de Camilo, o autor introduz pormenores de grande relevância quanto à embaixada de D. Manuel ao papa, quanto à matança dos judeus de 1506 ou quanto à descrição do terramoto («Casas, palácios, conventos, mosteiros, hospitais e igrejas, campanários, teatros, fortalezas, pórticos, tudo, tudo caía, tudo ardia.»), onde procura uma maior intensidade literária…
«A história do sr. Oliveira Martins lê-se devagar, atentamente, porque a cada página se encontram induções, panoramas, lances de vista que obrigam a reflexão». Quem o diz é Camilo, a propósito da «História», demonstrando um extraordinário zelo e uma sólida fundamentação. «É mister às vezes agrupar os personagens subentendidos nas ilações para que eles operem e afirmem os sucessos de que derivam as opiniões históricas do autor». O ler devagar que o autor de Amor de Perdição aconselha aos leitores corresponde à contrapartida do método usado pelo historiador: o de ligar uma leitura aturada das fontes escritas à interpretação literária, como ligação naturalista ao mundo da vida, e nunca como mera abstração formalista. As induções, os panoramas, os lances de vista obrigam, de facto, à reflexão, porque resultam em regra de profunda reflexão. E isso é muito evidente na História, onde o escritor não se exime a fazer uma interpretação dos acontecimentos, que se projeta sempre na atualidade, com a preocupação de entender a história como referida a um corpo vivo que persiste no tempo, carecendo de uma interpretação atualista.
Como diz Eduardo Lourenço, dando sequência à leitura camiliana: «num século tendencialmente positivista, Oliveira Martins é ao mesmo tempo hiper-racionalista e intuicionista. Ou mesmo mitólogo. […] Sobretudo, num tempo genericamente eufórico e culturalmente humanista a ele propõe — a meio caminho entre Schopenhauer e Nietzsche — uma espécie de pessimismo não niilista, mas trágico pelo papel que confere aos indivíduos e em particular aos representativos — de responder à Fatalidade em termos de vontade e de energia, introduzindo assim o humano, mesmo se precário ou vão, no não humano» (Oliveira Martins e os Críticos da História de Portugal, IBNL, 1995, pp. 20-21).
À medida que entravam todos os convidados, dei-me conta de que tu não estavas. Nada de estranho, vendo bem, pois não sei porque haveria de supor o contrário. Simplesmente não entravas nesse filme, não tinhas sido chamada para o casting, mesmo se, do recinto em volta onde se juntava muita gente te tinha entrevisto de repente, a olhar curiosa os salões iluminados. Não sei que lógica sustentaria esse não estares, acontecendo ainda assim à minha volta, nem sei quantos barcos haverão de naufragar em torno antes que o mar volte a ser calmo, acácias voltem a florir, etc. Há uma ilha adiante, passo por ela, ou antes, diviso-a na distância, e mesmo se pedi aos companheiros para me amarrarem ao mastro do navio, não é menos devastador o abismo que se abre, já que é abismo pressentir no sobressalto o regresso cruel do corpo adolescente. Assim no cinema disso te pude escutar, enquanto os olhos cegavam devagar no fogo de contemplar ao longe um sol que me puxava para si, e os convidados provavelmente sem entenderem razões para o seu próprio movimento, como espectros continuavam a percorrer os corredores da casa iluminada. E tilintavam cristais e uma valsa dolente a todos arrastava, enquanto o meu olhar fugia pelas janelas abertas, e as mãos sem o saberem procuravam, ainda em desespero, o que fosse talvez um pedaço de mar, como se apenas já se soubessem sossegadas no naufrágio. As mãos eram os olhos atravessados do fogo. E simplesmente não estares tornava tudo branco.
in Negócios em Ítaca, 2011
As seen by Ulysses
The guests were arriving and I noticed you weren´t there. Nothing unusual really, I don’t know why I should have imagined otherwise. You were plainly not in the film, you hadn’t been cast, even if I’d suddenly spotted you outside, among the eagerly gathered crowd, curious to see what went on in those glittery party rooms. I don’t know what logic could hold open your not being there, still taking so much space round and about me, nor do I know how many ships have yet to sink before the seas can calm down, before the acacias can blossom again, etc.. Further out there’s an island I pass by, better seen from a distance, and although I’ve asked my fellow seamen to tie me to the ship’s mast, the abyss opening before me is no less devastating. For abyss it is when, overcome, we feel the cruel return of the adolescent body. And thus, in all that cinema, I was able to hear you, as my eyes went slowly blind in the fire of the sun that sucked me far into the distance, while the guests not understanding, in all probability, the reason they themselves were moving, still promenaded like spectres along the corridors of the brightly lit house. And the crystals tinkled and a sorrowful waltz dragged itself along, while my eyes were drained away through the open windows, and my hands, still in despair, unknowingly sought what might perhaps become a piece of sea in the final lull of the shipwreck. My hands were my eyes pierced by fire. Simply because you weren’t there everything became white.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA MORRER FACE AO OUTONO
1. Esta estranha primavera de 2005 vai-se infiltrando muito outonal. Em qualquer sentido da palavra, das nuvens e do vento. Olhem bem à volta e reparem nas caras das pessoas.
Já atentaram bem no número de caras que as pessoas agora têm? O número de pessoas é grandessíssimo, eu sei, mas o número de caras é obscenamente maior, porque, nesta estranha Primavera, quase todos andam com várias. No ano passado, por esta altura, as pessoas andavam com as caras do costume. Não direi com as caras com que nasceram, porque essas, já se sabe, duram umas horas ou uns dias. Também não estou a pensar nas caras com que se fizeram gente e que acabam quando ficam gente feitas. Mas com essa, que vem depois daquela, e que é a cara com que nos habituamos a vê-las, mais ruga menos ruga, mais dente menos dente. Cara com que se começa a parecer a cara dos filhos deles, quando ficam tal pai tal filho. Cara que, às vezes, até se pega à mulher (ou ao marido) que, depois de muitos anos de matrimónio, acontece ficar parecida. Cara que, outras vezes, passa deles para o cão, igual ao dono. É estranho? Não acho nada.
Uma cara é uma cara e não há assim tantas que não se compreenda alguma economia, sobretudo quando há que baixar o consumo. Estranho é o que está a acontecer agora. Com inquietante dissipação, as pessoas mudam de cara. Experimentam uma, acham que não lhes fica bem, usam outra, depois outra e mais outra. Para mim, que levo tempo a habituar-me a uma cara nova, esta sucessão de caras assusta-me. Qualquer dia, ainda me acontece o que aconteceu a Malte na Rua Toullier, num 11 de setembro. Vou por uma rua vazia, e uma mulher deita a cara às mãos, e fica-lhe a cara nas mãos. Que visão será mais horrível? Uma cara do avesso nas mãos de uma mulher? Ou uma cabeça toda nua, esfolada viva, sem cara?
E o Malte, de Rilke para quem não saiba (se não souberem Rilke já não tenho cara para vos aparecer mais), viu isso tudo, em Paris e em setembro, há um ror de anos. Ver isso em Lisboa, em março, nos dias que correm, não há cara que aguente. Mas, com o balanço que isto leva, qualquer dia acontece. Pode ser já para a semana. Deus nos acuda, ou aquele rei que era irmão de Valentina Visconti, essa que - diz-se - morreu de desgosto.
2. De desgosto morreu também Niels Jacobsen, um médico islandês magrinho e pálido (eu, pelo menos, imagino-o assim) que, quando era mais magrinho e menos pálido, namorava, na sua gélida ilha, a quente e cúpida Maria Borman (também sou eu quem a imagina assim). A certa altura da vida (porque é que se diz "a certa altura da vida" mesmo para vidas que nunca tiveram qualquer altura?) resolveu fazer uma longa viagem pela Europa, visitar países quentes, a Itália, a Grécia, Chipre. Ela escrevia-lhe, todas as semanas, cartas que sempre começavam por "Meu Amor". Perguntava-lhe se ele se lembrava das tardes outonais em que iam os dois sozinhos passear. Ele respondia-lhe todas as semanas a contar-lhe de povos alegres e de pinhais. Mas, ao fim de seis meses, as cartas deixaram de chegar e as dele ficaram sem resposta. Escreveu à família, a pedir, por amor de Deus, que lhe dessem novas, mas a família dava-lhe de todos, menos dela. Só sabia que Maria não tinha morrido, pois recebia os jornais de Reykjavik e, das exaustivas necrologias desses tempos, não constava o nome dela. Pensou nunca mais voltar, tal o medo de a reencontrar, quente e cúpida, nos braços de outro. Mas, por fim, regressou, como desde Ulisses ou desde Telémaco, todos regressamos. A família recebeu-o em festa mas ninguém mencionou o nome de Maria. Ele também não perguntou, por orgulho ou por desespero. Só que os desesperos em causas de amor ao amor aportam, infalivelmente. Quando Greta Bruble, que ainda era contraparente, veio passar férias de Verão a Reykjavik (e tinha a voz cansada e rolava os "rs" com meiguice e, desta vez, só metade é imaginação minha), o cabelo dela fez-lhe lembrar o cabelo de Maria, a cintura dela fez-lhe lembrar a cintura de Maria. Casaram-se na Primavera, quando as nuvens se confundem com os pântanos gelados e a calma polar amacia as próprias falésias. Niels deixou de se lembrar das tardes outonais.
Depois (e entendam por depois o tempo que quiserem) chegaram uns amigos suecos, médicos como ele, novos como ele, magros como ele, que quiseram visitar os hospitais-modelo atribuídos à Islândia. Um dia passaram diante da leprosaria, onde o novo diretor, que tinha sido aluno do pai de Niels, os recebeu com afeição. Enquanto a mulher do diretor e Greta preparavam um chá, o diretor levou-os a visitar as espaçosas salas dos doentes. Havia tanta luz, havia tanta serenidade. Agora sou eu quem vos jura que não inventei nada. Viram a sala das crianças, a dos homens e, por fim, a das mulheres, que eram cinco. Levantaram-se todas e viraram-lhes as costas, para que os jovens médicos lhes não vissem as caras. Até que, de repente, Niels parou. Pareceu-lhe reconhecer uma delas, na que estava mais à direita, Maria, a antiga Maria dele. Ainda tentou fugir, mas não pôde suportar a ideia de viver o resto dos seus dias com dúvida tão terrível. Chegou mais perto e eram os cabelos castanhos de Maria, esses cabelos tão crespos que todos os pentes se partiam contra eles. E era a nuca de Maria, essa nuca nervosa que o sofrimento ainda não abatera. E eram os ombros de Maria, esses ombros tão redondos que ela mal conseguia levantar os braços para ir colher cerejas. E eram as ancas de Maria, essas ancas que ele tantas vezes abraçara, quando chegava de mansinho e lhe tapava os olhos com as mãos.
Nesse momento a forma de mulher que se parecia com Maria vacilou e tombou. As outras continuaram de pé, com os fusos de tecer na mão, "como as Parcas quando a morte vai sozinha". Niels, no regresso, ainda conduziu a carruagem, entre as falésias, sem estremecer e sem deixar que os cavalos saíssem da rota. Mas, logo que chegou a casa, adoeceu. Durante seis meses não se levantou e não disse uma palavra. E morreu face ao outono.
3. A história que acabei de contar é o resumo aproximativo de um conto de Giraudoux chamado "L'Ombre sur les Joues". Giraudoux escreveu-o em 1908, aos vinte e seis anos, num jornal para onde escreveu muitos contos. Só foi publicado oito anos depois da morte dele, em 1952, entre os "écrits de jeunesse", num livro chamado "Les Contes d'un Matin".
"Morreu face ao Outono", traduzi eu. Em francês, Giraudoux escreveu: "Et il mourut vers l'automne", muitíssimo mais bonito. Mas ninguém, no século XX, escreveu melhor francês que Giraudoux (Gide?). "L'Ombre sur les Joues" contrasta com os outros contos da juventude (da manhã) pelo seu lado trágico. Os comentadores atribuíram-no à influência de Jean-Peter Jacobsen (1847-1885) que Giraudoux, como Rilke, descobriu nos inícios do século passado. A 1 de Agosto de 1902 a rodin: "Lembro-me muito bem que, há cinco ou seis anos, quando li pela primeira vez um livro inesquecível de um grande poeta dinamarquês (Jean-Peter Jacobsen) só pensei em procurar esse homem e fazer tudo para me tornar digno de ser amigo dele e profeta no coração dele perante todos os que ainda o não tinham encontrado. Mas, no dia seguinte, disseram-me que ele tinha morrido, muito novo, muito sozinho, numa aldeiazinha muito triste, morto pelo clima cruel do seu país sombrio." Foi por causa de Jacobsen que Rilke visitou, muito mais tarde, a Dinamarca, e consequentemente, foi por causa dele que escreveu "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge". O livro que Rilke leu foi "Niels Lyhne" (1880), o livro que me levou a mim a ler Rilke, há muitos, muitos anos. Foi Rilke, ou foi Rodin, quem foi profeta de Jacobsen junto de Giraudoux? Disso, já não sei. Sei é que neste estranho março de 2005, Jacobsen, Giraudoux e Rilke me apareceram de novo, trazidos por um morto que tinha o mais sereno rosto de morto que já vi. Alguém me disse: "Eu não sou crente, mas acho que é o rosto de um santo." Pensei então em Hjerrgild, o amigo de Niels, e na oração final deste, junto ao corpo agonizante de Niel. "Se eu fosse Deus, preferia conceder a salvação eterna àqueles que morrem sem se converter." Depois, olhei à volta e reparei nas caras. E lembrei-me de outra frase de "Niels Lyhne", que vem quase a seguir àquela: "Seja como for, é bom ter um Deus a quem dirigir lamentos e orações." Como o outro Niels (o de Giraudoux) "mourir face à l'automne".
Estátua de Pêro Escobar no Padrão dos Descobrimentos, foto de Luís Pavão
4. ENTRE MEMÓRIAS DO PASSADO E O PRESENTE (II)
1. Prosseguindo viagem eis-me junto ao “Memorial da descoberta/achamento da ilha de S. Tomé a 21 de dezembro de 1470 pelos navegadores portugueses Pêro Escobar e João de Santarém”, onde fica o cruzeiro ou padrão dos descobrimentos, no local do primeiro desembarque.
O acesso é mau, agravado pela ausência da ponte, que ruiu e caiu, forçando os veículos a atravessar a água da ribeira, quando podem e consoante a época do ano, o que foi possível, no meu caso. A degradação é geral, incluindo o monumento, um edifício inativado, mesas e bancos ao ar livre a fazer lembrar tempos idos de melhor preservação.
Degradado, mas não destruído, é um património que merece ser cuidado e reabilitado, quiçá através de obras de conservação e manutenção com a ajuda de parcerias público-privadas portuguesas e do Estado são-tomense.
Apesar da deterioração, há um sossego, uma tranquilidade, uma beleza colorida pela vegetação banhada pelas águas de uma pequena praia à beira mar, que nos “alheamos” da desolação e idealizamos um turismo histórico e cultural reinventado e descomplexado.
2. De seguida, paragem na roça Diogo Vaz, uma das mais antigas, fundada em 1895, localizada num pequeno promontório elevado em relação à cota do mar e organizada sob um eixo perpendicular à costa, ladeado por terreiros em socalcos enquadrados por sanzalas e edifícios de apoio, com a casa principal (escritórios e casa do médico) no extremo oposto, com visibilidade para o mar e todo o eixo da fazenda.
Mantendo a tipologia-base em avenida, sendo a primeira estrutura do género, possibilitou aperfeiçoar e testar o modelo de roça-avenida, para a posterior construção da Rio do Ouro.
Tendo passado por várias fases de construção, reabilitação e modernização, notório na conservação dos edifícios mais emblemáticos, é um dos exemplos de sucesso, de produtividade e rendimento, entre as roças de São Tomé. Prova-o a floresta de cacaueiros de variedades nativas e não endémicas, o chocolate de qualidade que produz, já consagrado como marca, exportado e premiado internacionalmente, que comercializa numa loja elegante na marginal da capital da ilha.
3. A viagem prossegue até ao túnel de Santa Catarina, percorrendo uma estrada que é tida como a mais bonita da ilha, pelo que ouvi e li, o que pude presumir pelos reflexos solares, de tons levemente dourados e prateados, refletidos na água da praia e por entre palmeiras posicionadas uma atrás das outras, vergadas pelo vento, entre a estrada e a beira mar. Naquela hora, com a despedida solar, foi um dos momentos paisagísticos mais deslumbrantes e emocionantes que vivi em São Tomé.
Tudo a apelar a fotografias e vídeos, em vários ângulos, formatos e posições, o que é corroborado com a chegada ao túnel verdejante de Santa Catarina, escavado na rocha, onde a beleza da natureza, com a ajuda humana, predomina.
Não foi fácil chegar, dado o péssimo estado de conservação da estrada na zona de Neves, capital do distrito de Lembá, com enormes buracos, aberturas e desníveis do piso, agudizados pela queda de uma chuva forte e repentina, que deu oportunidade a porcos, cães e toda a gama de animais à solta fazerem bebedouro das covas e fendas rodoviárias, embaraçando o trânsito numa povoação desorganizada, compacta e populosa.
Mais perplexo fiquei quando me apercebi estar ali instalada a fábrica da icónica cerveja Rosema, a única do país, e os depósitos de abastecimento de combustível, tornando incompreensível a degradação que acabara de ver. Respondeu-me, quem me acompanhava, que os camiões de transporte pesado de combustível danificam permanentemente as vias por onde passam, não sendo compensada, em contrapartida, a população local com as melhorias a que devia ter direito.
O dia findava e havia que regressar ao ponto de partida, o que fizemos voltando por Guadalupe, capital do distrito de Lobata.
Deparei-me com uma cidade limpa, organizada, boa estrada de pavimento novo, passeios para peões, sinalética adequada, o que facilitou, e muito, a chegada à Cidade de São Tomé, dado o bom estado de todo o percurso. Enfim, uma surpresa, por contraste com o desleixo de Neves.
Perguntei, a mim mesmo: porquê esta disparidade, se ambas as cidades são capitais de distrito, urbes com indústria, embora Neves seja mais populosa? Não sei a resposta. Mas de uma observação atenta tive a intuitiva impressão de que em Guadalupe há habitações de qualidade acima da média, por oposição a Neves (muitas delas barracas).
Também em Guadalupe, ao passar pela igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, perguntei ao guia se havia em São Tomé algum santo ou santa de origem negra, como Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil. A resposta foi negativa, pelo que sugeri, a ser assim, que podem importar o culto do Brasil. Ou ter santos nativos e negros de São Tomé e do Príncipe, O que faz sentido, pois só têm santos brancos. Ambos, bem-dispostos, rimos. Algum tempo depois, fim de mais um dia.
Todos somos muitos eus ao mesmo tempo e muitos eus soberanos e muitos eus moldados.
E compreendemo-nos assim.
As nossas escolhas não são apenas nossas. Há que as enquadrar nas estruturas que as envolveram e envolvem e que determinaram e determinam a sequente grande fatia das responsabilidades pelas opções tomadas.
Somos seres paradoxais e contraditórios.
Somos eus que encontram dentro de si a grande praia comum a outros eus, a outras equipas de eus.
No entanto, a sociedade, hoje, quer-nos fortemente ladeados. Deseja mesmo que os caminhos que façamos sejam unicamente unidimensionais, a fim de que a multiplicidade dos eus, finde.
Na verdade, se nos reduzirmos a uma básica dimensão de um eu, o provocar-nos, ou mesmo o instar-nos à agressividade, torna-se comando fácil de obter êxito, já que deixa de existir a possibilidade de uma amplitude crítica que só se atinge pela diversidade dos eus em nós.
A terra prometida, aquela a que nos prometemos, demanda os eus que vão descobrindo erros e diferenças só conhecidos dos olhos despertos, do olhar autónomo.
Há, pois, que estarmos vigilantes ao assustador estiolamento a que nos querem submeter.
E qual o papel da arte neste contexto?
É único!
Pois que a arte só surge dos debates dos eus: da luta contra o que é estreito.
A arte constrói entendimentos e controvérsias; a arte coloca em causa; a arte não esquece; a arte pega na ponta que se não via, percorre o âmago e expõe o lugar onde as coisas são, e por não serem onde estão, cria mundos, cria possibilidades e complicações e combustões, tudo tão íntimo, tão verdade, tão multidão, tão vários ângulos de luz de todos os eus em nós!
Tempos houve em que as intervenções no Parlamento constituíam momentos profundamente sentidos pelos cidadãos, a que assistiam com vivo interesse. Se estudarmos o século XIX e o início do século XX, encontramos bons exemplos dessa vivência cívica, que nos transportava à antiguidade clássica, de Péricles a Cícero. Hoje relemos com gosto tais marcos fundamentais da história humana. Junto da Assembleia da República temos a figura de José Estevão Coelho de Magalhães, único deputado com direito a ser representado de corpo inteiro, autor de intervenções míticas. Perguntado um dia sobre se se considerava o primeiro dos oradores parlamentares, ele indicou outro nome, indiscutivelmente célebre, com quem terçou armas retóricas em S. Bento e que se elevou à qualidade de interlocutor maior. Referia-se a Almeida Garrett e ainda hoje as palavras de ambos merecem lembrança – são célebres os discursos que ficaram conhecidos como do Porto Pireu, e que chegaram a fazer parte das seletas escolares.
Em fevereiro de 1840, na vigência da Constituição de 1838 e sob um governo de setembristas moderados, José Estevão evocou aquele louco que em Atenas se declarou dono do Porto Pireu e de todos os navios que nele entravam. Criticava, assim, a bancada do governo ordeiro em funções, que pretenderia ter o exclusivo da razão. E o que estava em causa era a necessidade de uma partilha de responsabilidades, em nome de uma governação para todos. Coube a Garrett considerar em resposta que ser ordeiro significava cooperar, denunciando que apenas não o queriam os ‘anónimos conspiradores’ que viviam ‘cobardemente agachados’ em ‘escondidas águas-furtadas’. Haveria que salvar a ordem constitucional, o que pressupunha um entendimento. Infelizmente não houve tal acordo e em 1842 Costa Cabral restauraria a Carta, contra o compromisso de 1838. O episódio merece recordação, porque a voz de Garrett foi a do médio prazo e do interesse comum, contra o imediatismo. Anos depois, Viagens na Minha Terra, obra-prima da literatura romântica, ilustrando o encontro em Santarém de Garrett com Passos Manuel, o herói de Setembro de 1836 e da Constituição de 1838, daria o sinal de que, como aquele dissera em S. Bento, haveria que cooperar e defender o “interesse na nação”, em lugar de um meio termo e de um radicalismo exclusivos. As lições da história apelam ao bom senso em lugar do imediatismo.
E se refiro os dois maiores oradores parlamentares dos alvores do nosso constitucionalismo, devo lembrar o outro nome maior de oitocentos, António Cândido Ribeiro da Costa, “Águia do Marão”, como lhe chamou Camilo, que foi o orador sagrado nas exéquias de Alexandre Herculano, tendo pertencido, por sugestão de Oliveira Martins, ao grupo dos onze que passaria à história com a designação algo irónica de “Vencidos da Vida”. E a sua conterrânea Agustina Bessa Luís disse dele ser necessário “tirar do poço da memória a água pura que nele vive”. Conhecido como “Boca d’Oiro” pelo extraordinário dom da palavra, atraindo centenas de ouvintes às suas intervenções parlamentares, no que se aproximou de José Estevão e Garrett, afirmaria na última homenagem que lhe foi prestada na Academia das Ciências, sob a presidência de António José de Almeida: “Nestes tempos fala-se muito, mas medita-se pouco”…
Mas afinal quem é o autor das minhas acções? "Nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se haverá máquinas com consciência." Foto: Igor Martins / Global Imagens
11. Máquinas com consciência?
O que diz alguém, quando diz “eu”? Afirma-se a si mesmo como sujeito, autor das suas acções conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, na abertura e em contraposição a tudo.
Mas há observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?
Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nesta direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu, do não-eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista, deu-me, há anos, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o rio Douro. O que é o rio Douro? Onde está o rio Douro? Ele não existe como substância, pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um rio.
Mas há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. O que se passa é que, não se tratando de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível.
É e será sempre enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência. É claro que o eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro do corpo – o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é acentuado pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e químicos no cérebro – processos neuronais da ordem da terceira pessoa – para a experiência subjectiva na primeira pessoa?
Apesar de se não afastar por princípio a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz disse numa entrevista: “Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu nem como é que o cérebro é capaz de gerar significados.”
E sou livre ou não? É claro que, como escreve o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade – “as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis.”
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? “Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem pensa”, escreveu o filósofo Th. Buchheim.
Neste domínio, nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se haverá máquinas com consciência. O físico Carlos Fiolhais, apresentou recentemente num dos seus escritos semanais no Correio da Manhã precisamente à volta da Inteligência Artificial uma famosa aposta precisamente sobre a consciência:
“Em 1994, em Tucson, nos Estados Unidos, realizou-se uma conferência intitulada “Em direcção a uma base científica da consciência.” O neurocientista Christof Koch defendeu aí que a consciência tinha uma base física: dar-se-iam disparos síncronos de neurónios 40 vezes por segundo. O filósofo David Chalmers retorquiu, dizendo que era impossível descrever a consciência por um fenómeno físico. Chamou ao entendimento da consciência “o problema difícil”.
Passados quatro anos, os dois reencontraram-se e, mantendo as suas posições, fizeram uma aposta: o primeiro apostou com o segundo uma caixa de garrafas de vinho que, nos próximos 25 anos, os cientistas iam descobrir um comportamento neuronal claramente responsável pela noção do “eu”.
Numa reunião da Associação para o Estudo Científico da Consciência realizada em Nova Iorque em fins de Junho passado, os dois voltaram a encontrar-se. O antigo modelo de Koch estava ultrapassado, havendo outros em contenda. Mas nenhum deles era claro, dando uma resposta inequívoca, disse Chalmers.
O neurologista teve de admitir: “É claro que as coisas não são claras.” E foi buscar uma caixa de garrafas de vinho português, no qual se destacava uma de Madeira antigo.
O perdedor, pretendendo desforrar-se, propôs que repetissem a aposta: apostou que daqui a mais 25 anos o assunto estará finalmente claro. Chalmers aceitou com um sorriso.”
E Carlos Fiolhais, com o seu humor: “Os cientistas gostam de fazer apostas. Mas é por saber que os cientistas perdem apostas que sigo um precioso conselho da minha avó: “teima, teima, mas nunca apostes.” E acrescenta: “Estou em crer que as máquinas só terão consciência no Dia de São Nunca.”
Tenho a mesma opinião.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 19 de outubro de 2024